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A síntese imediatamente acima enunciada nos permiti ria, desde logo, alinhar, em bosquejo classificatório, os princípios

OS PRINCÍPIOS E A INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO

62. A síntese imediatamente acima enunciada nos permiti ria, desde logo, alinhar, em bosquejo classificatório, os princípios

explícitos contemplados na Constituição da República Federativa do Brasil.

Anteriormente a isso, todavia — e mesmo para informar tal bosquejo — parece-me oportuna a consideração de subsídios à análise dos princípios jurídicos introduzidos por Ronald Dworkin, da classificação que, dos princípios jurídicos constitucionais, é construída por José Joaquim Gomes Canotilho e da exposição de José Afonso da Silva.

Penetrando o tema, Dworkin2 observa que, em determina-

dos casos, sobretudo nos casos dificultosos, quando os profissio- nais do direito arrazoam ou disputam sobre direitos e obrigações legais, fazem uso de pautas (standards) que não funcionam como regras, mas operam de modo diverso, como princípios, diretrizes (policies) ou outra espécie de pauta. Propõe-se, então, a usar o vo- cábulo princípio genericamente, para referir, em conjunto, aquelas pautas que não são regras; em outras ocasiões, no entanto — ad- verte — é mais preciso, distinguindo entre princípios e diretrizes.

Dworkin chama de diretrizes as pautas que estabelecem obje- tivos a serem alcançados, geralmente referidos a algum aspecto econômico, político ou social (ainda que — observa — alguns objetivos sejam negativos, na medida em que definem que deter- minados aspectos presentes devem ser protegidos contra altera- ções adversas). Denomina princípios, por outro lado, as pautas que devem ser observadas não porque viabilizem ou assegurem a busca de determinadas situações econômicas, políticas ou so- ciais que sejam tidas como convenientes, mas, sim, porque a sua observância corresponde a um imperativo de justiça, de honesti- dade ou de outra dimensão da moral.

Assim — segundo Dworkin (idem, ibidem) — a pauta de acordo com a qual deve ser reduzido o número de acidentes de automóvel é uma diretriz e a pauta que estipula que a ninguém aproveita sua pró- pria fraude (torpeza) é um princípio. Essa distinção, no entanto — é o próprio Dworkin (idem, p. 44) quem o diz — pode resultar compro- metida na medida em que se construa um princípio que estabeleça um objetivo social (v.g., o objetivo de uma sociedade na qual ninguém ob- tenha proveito de sua iniqüidade) ou se construa um objetivo que es- tabeleça um princípio (v.g., o princípio de que o objetivo proposto pela diretriz é meritório) ou, ainda, na medida em que se adote a tese utilitarista, de acordo com a qual os princípios de justiça são enuncia- dos de objetivos mascarados (assegurando-se a máxima felicidade do maior número de pessoas). Se, nestes termos, contestada a distinção, em determinados contextos — conclui — resultariam absolutamente desvirtuadas as suas aplicações.

A proximidade entre as diretrizes e as normas-objetivo3 é, des-

de logo, evidente.

2. Taking rights seriously, 5a imp., Londres, Duckworth, 1987, p. 22. 3. V. sobre as normas-objetivo, meu Ensaio e discurso sobre a interpretação/

63. Canotilho, por outro lado, tendo sob consideração a Cons- tituição de Portugal, classifica os princípios jurídicos constitucio- nais em:4

a) princípios jurídicos fundamentais, assim entendidos os "prin- cípios historicamente objectivados e progressivamente introdu- zidos na consciência jurídica geral e que encontram uma recep- ção expressa ou implícita no texto constitucional" (aí os princípios da publicidade dos atos jurídicos; da proibição do excesso — o que importa exigibilidade, adequação e proporcionalidade dos atos dos poderes públicos; o princípio do acesso ao direito e aos tribu- nais; o princípio da imparcialidade da Administração);

b) princípios políticos constitucionalmente conformadores, enten- didos como tais os "princípios constitucionais que explicitam as valorações políticas fundamentais do legislador constituinte" (aí os princípios definidores da forma de Estado — onde os princípi- os da organização econômico-social; os princípios definidores da estrutura do Estado — unitário ou federal, com descentrali- zação local ou autonomia local; os princípios estruturantes do regime político — princípio do Estado de Direito, princípio de- mocrático, princípio republicano, princípio pluralista etc.; e os princípios caracterizadores da forma de governo e da organiza- ção política em geral — separação e interdependência dos pode- res, princípios eleitorais etc.);

c) princípios constitucionais impositivos, entendidos assim os princípios constitucionais nos quais "subsumem-se todos os prin- cípios que no âmbito da constituição dirigente impõem aos ór- gãos do Estado, sobretudo ao legislador, a realização de fins e a execução de tarefas"; tais princípios — adverte Canotilho5 — são

muitas vezes designados por "preceitos definidores dos fins do Estado", "princípios diretivos fundamentais" ou "normas progra- máticas, definidoras de fins ou tarefas" (aí o princípio socialista, o princípio da socialização dos meios de produção etc.);

d) princípios-garantia, nos quais incluídos "outros princípios que visam instituir directa e imediatamente uma garantia dos ci- dadãos"; a eles é "atribuída a densidade de autêntica norma jurí-

4. Direito Constitucional, 3a ed., cit., pp. 200/203. 5. Idem, p. 202.

dica e uma força determinante positiva e negativa"; por se tradu- zirem no estabelecimento direto de garantias para os cidadãos, são chamados de "princípios em forma de norma jurídica" (aí o prin- cípio de nullum crime sine lege e de nulla poena sine lege, o princípio do juiz natural, os princípios de non bis in idem e in dúbio pro reo).

Por certo, ainda que, ao menos parcialmente, os princípios constitucionais impositivos, na medida em que impõem aos órgãos do Estado a realização de fins, são colhidos no mesmo veio onde se encontram as diretrizes, de Dworkin, e as normas-objetivo con- templadas no nível constitucional.

José Afonso da Silva,6 finalmente, denomina normas constitu-

cionais de princípio aquelas em que se subdividem as normas cons- titucionais de eficácia limitada (de princípio institutivo e de princí- pio programático). Ao fazê-lo, contudo, salienta a necessidade de distinguirmos entre normas constitucionais de princípio, normas cons- titucionais de princípios gerais (normas-princípio) e princípios gerais do direito constitucional.

Nas normas constitucionais de princípio o vocábulo princípio aparece na acepção própria de começo ou início. Trata-se de nor- mas que contêm o início ou esquema de determinado órgão, en- tidade ou instituição, deixando a efetiva criação, estruturação ou formação para a lei complementar ou ordinária.

As normas-princípio (normas constitucionais de princípios gerais) são verdadeiras normas fundamentais, na medida em que as nor- mas particulares são, delas, meros desdobramentos analíticos. Outras, embora sejam fundamentais, contêm princípios gerais, e por isso informam toda a ordem jurídica nacional. O que distingue as normas constitucionais de princípios gerais e as normas-princípio das normas constitucionais de princípio é a circunstância de que es- tas são de eficácia limitada e aplicabilidade indireta — ou seja, dependem de legislação ou de outra providência — ao passo que as primeiras são de eficácia plena e aplicabilidade imediata.

Quanto aos princípios gerais do direito constitucional, José Afonso da Silva7 observa que, na sua globalidade, formam temas de uma

6. Aplicabilidade das normas constitucionais, 7a ed., 3a tir., São Paulo, Malheiros Editores, 2009, pp. 107-108.

teoria geral do Direito Constitucional. Alguns deles, no entanto — e apenas alguns deles — porque induzidos na realidade histó- rica de cada povo, compõem-se no Direito Constitucional de de- terminado povo. Trata-se, então, não de normas constitucionais de princípio (nem de normas constitucionais de princípios gerais ou de normas-princípio), mas de princípios induzidos de um con- junto de normas.

64. Percorrido o nosso novo texto constitucional, nele imedia- tamente colheremos séries de princípios jurídicos explícitos, que se pode organizar segundo este ou aquele dos critérios classificató- rios que acabamos de examinar.

V., no item 26, referência à exposição de Carrió, que evidencia ser a decisão por uma classificação semelhante à opção que se faça entre o sistema métrico decimal e o sistema de medição dos ingleses; se o pri- meiro é preferível em relação ao segundo, não é porque aquele seja verdadeiro e este falso, mas sim porque o primeiro é mais cômodo, mais fácil de manejar e mais apto a satisfazer, com menor esforço, cer- tas necessidades ou conveniências humanas.

Sem que nenhuma pretensão de exauri-los assumamos, des- de o critério tomado por Dworkin teremos:

• princípios — art. I2, caput e incisos; art. 22; art. 4a; art. 5a,

caput e incisos; art. 170, caput (parcialmente) e incisos;

• diretrizes — art. 32; parágrafo único do art. 4Q; art. 170, caput

(parcialmente).

A propósito, aqui, já na primeira visualização do texto veri- ficamos que a dignidade da pessoa humana comparece, no art. I2,

III, como princípio e, no art. 170, caput, como diretriz ("assegurar a todos existência digna").

Também sem pretender colhê-los na sua totalidade, a partir do critério classificatório de Canotilho divisaremos:

• princípios jurídicos fundamentais — art. 52, XXXV e LV; art.

37, caput;

• princípios políticos constitucionais conformadores — art. 170 (forma de Estado); art. I2, caput (estrutura do Estado); art. Ia, V

(regime político); arts. 2- e 14 (forma de governo e organização política);

• princípios constitucionais impositivos — art. 3° e art. 170, caput ("assegurar a todos existência digna");

• princípios-garantia — art. 5a, III, VIII e XXXIX.

Ainda sob a mesma ressalva — isto é, sem que se os preten- da esgotar — tendo sob consideração a exposição de José Afonso da Silva teremos:8

• normas constitucionais de princípio — art. 18, § 3a;

• normas-princípio ou normas fundamentais — art. Ia, caput e

seu parágrafo único e art. 2a;

• normas constitucionais de princípios gerais — art. 5Q, caput, in

limine, e incisos I, II e XXXVI, e art. 17.

José Afonso da Silva, ainda, em obra mais recente9 distingue

princípios político-constitucionais — que são normas-princípio, prin- cípios constitucionais fundamentais que expressam as decisões políticas fundamentais — integrados no Direito Constitucional positivo (arts. Ia a 4a da Constituição de 1988) e princípios jurídico-

constitucionais — que são princípios constitucionais gerais, infor- madores da ordem jurídica nacional. Além deles, permanece a referir os princípios gerais do Direito Constitucional, que formam temas de uma Teoria Geral do Direito Constitucional. Estes, se- gundo observa,10 "se cruzam, com freqüência, com os princípios

fundamentais, na medida em que estes possam ser positivação daqueles".

65. Esses subsídios, que devem ser adicionados aos que de- senvolvi em meu Ensaio e discurso sobre a interpretação /aplicação do direito, prestam-se a auxiliar a interpretação/aplicação da ordem econômica na Constituição de 1988.

Esta, como penso demonstrar nesse ensaio e discurso, é in- terpretação/aplicação de textos, não de normas, visto que o direi-

8. Adapto ao texto de 1988 as referências do autor à Emenda Constitucional n. 1/69.

9. Curso de Direito Constitucional Positivo, 33a ed., São Paulo, Malheiros Editores, 2010, pp. 91 e ss.

to é alográfico; mas não apenas de textos, senão de textos e de fatos; e mais: interpretar/aplicar o direito é concretizá-lo, ir dos textos e dos fatos à norma jurídica geral e, em seguida, à norma de decisão, no desenvolvimento de uma prudência; por isso não existe, no direito, uma única solução correta, senão várias.

Em síntese: a interpretação do direito tem caráter constitutivo — não, pois, meramente declaratório — e consiste na produção, pelo intérprete, a partir de textos normativos e dos fatos atinentes a um determinado caso, de normas jurídicas a serem ponderadas para a solução desse caso, mediante a definição de uma norma de decisão. Interpretar/aplicar é dar concreção [= concretizar] ao direito. Neste sentido, a interpretação/aplicação opera a inserção do direito na realidade; opera a mediação entre o caráter geral do texto normativo e sua aplicação particular; em outros termos, ain- da: opera a sua inserção na vida. A interpretação/aplicação vai do universal ao particular, do transcendente ao contingente; opera a inserção das leis [= do direito] no mundo do ser [= mundo da vida], Como ela se dá no quadro de uma situação determinada, expõe o enunciado semântico do texto no contexto histórico pre- sente, não no contexto da redação do texto. Interpretar o direito é caminhar de um ponto a outro, do universal ao particular, confe- rindo a carga de contingencialidade que faltava para tornar ple- namente contingencial o particular.

Tudo isso, insisto, está demonstrado no ensaio e discurso ao qual remeto o leitor.

Não obstante, algumas breves notas sobre a interpretação/ aplicação da Constituição podem e devem ser ainda alinhadas.

66. O que peculiariza a interpretação da Constituição, de

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