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Embora, como se viu, resulte sempre dificultosa a identi ficação desta ou daquela parcela de atividade econômica em sentido

A NOÇÃO DE ATIVIDADE ECONÔMICA; O DIREITO ECONÔMICO

42. Embora, como se viu, resulte sempre dificultosa a identi ficação desta ou daquela parcela de atividade econômica em sentido

amplo como serviço público ou como atividade econômica em sentido estrito, hipóteses há nas quais o próprio texto constitucional eleva algumas delas à primeira categoria.

Cumpre distinguir, desde logo, os serviços públicos privativos dos serviços públicos não privativos. Entre os primeiros, aqueles cuja prestação é privativa do Estado (União, Estado-membro ou Mu- nicípio), ainda que admitida a possibilidade de entidades do se- tor privado desenvolvê-los, apenas e tão-somente, contudo, em regime de concessão ou permissão (art. 175 da Constituição de 1988). Entre os restantes — serviços públicos não privativos — aque- les que em edições anteriores deste livro equivocadamente afir- mei terem por substrato atividade econômica que tanto pode ser desenvolvida pelo Estado, enquanto serviço público, quanto pelo

setor privado, caracterizando-se tal desenvolvimento, então, como modalidade de atividade econômica em sentido estrito. Exemplos tí- picos de serviços públicos não privativos manifestar-se-iam nas hi- póteses de prestação dos serviços de educação e saúde.

O raciocínio assim desenrolado era evidentemente errôneo, visto ter partido de premissa equivocada, qual seja, a de que a mesma atividade caracteriza ou deixa de caracterizar serviço público conforme esteja sendo empreendida pelo Estado ou pelo setor privado. Isso, como se vê, é inteiramente insustentável.

Assim, o que torna os chamados serviços públicos não privati- vos distintos dos privativos é a circunstância de os primeiros po- derem ser prestados pelo setor privado independentemente de concessão, permissão ou autorização, ao passo que os últimos apenas poderão ser prestados pelo setor privado sob um desses regimes.

Há, portanto, serviço público mesmo nas hipóteses de pres- tação dos serviços de educação e saúde pelo setor privado. Por isso mesmo é que os arts. 209 e 199 declaram expressamente se- rem livres à iniciativa privada a assistência à saúde e o ensino - não se tratassem, saúde e ensino, de serviço público razão não haveria para as afirmações dos preceitos constitucionais.

Não importa quem preste tais serviços - União, Estados-mem- bros e Municípios27 ou particulares; em qualquer hipótese haverá

serviço público.

Dir-se-á, então — ainda que isso não seja rigorosamente cor- reto, como demonstrarei mais adiante —, que a definição consti- tucional de determinada atividade econômica em sentido amplo como serviço público afasta qualquer dúvida que se pudesse opor a sua caracterização como tal. Quer se trate de serviço público privativo, quer se trate de serviço público não privativo, quando a eles faça expressa referência a Constituição, especificadamente, o debate classificatório não teria mais razão de ser.

Seja como for, temos que serviços de educação e saúde, em qualquer hipótese, quer estejam sendo prestados pelo Estado, quer por particulares, configuram serviço público — serviço público não privativo, como vimos.

Em relação à educação, veja-se, da jurisprudência do STF, ADIs 1.007 e 1.266.

Quanto aos serviços públicos do tipo privativo, ao texto do art. 21 da Constituição de 1988 extraímos a conclusão de que há ser- viço público, de titularidade da União, na prestação dos serviços referidos nos seus incisos X, XI e XII;28 ao texto do § 2a do art. 25,

a conclusão de que há serviço público na prestação de serviços locais de gás canalizado; ao texto do art. 30, V, a conclusão de que há serviço público na prestação de transporte coletivo local.29

Importa, contudo, verificarmos se, efetivamente, basta a mera leitura do texto constitucional para identificarmos determinadas atividades como concernentes a serviços públicos por definição cons- titucional. Pois é certo que a Constituição encerra todos os ele- mentos e critérios que permitem a identificação de quais ativida- des empreendidas pelo Estado consubstanciam serviço público. Relembro, neste passo, a primorosa observação de Ruy Cirne Lima: "A definição do que seja, ou não, serviço público pode, entre nós, em caráter determinante, formular-se somente na Cons- tituição Federal e, quando não explícita, há de ter-se como supos- ta no texto daquela. A lei ordinária que definir o que seja, ou não, serviço público terá de ser contrastada com a definição expressa ou suposta pela Constituição".30

Duas outras linhas de indagação merecem, contudo, atenção.

43. De um lado, a referência do art. 30, V da Constituição de 1988 a "serviços públicos de interesse local" mantém em pauta o debate a propósito do que significa "interesse local". Quando o serviço público — porque de interesse local — é atribuído à titulari- dade do Município e não da União ou do Estado-membro?

A questão é relevante não apenas porque reclama a reafirmação do (peculiar) interesse local como interesse predominantemente lo- cal, mas também na medida em que cumpre explicitarmos a quem — Municípios, em conjunto, ou Estado-membro — atribuída a com- petência para organizar e prestar, nas regiões metropolitanas, nas

28. A propósito da aparente superposição entre os preceitos dos incisos XI e XII, a, na alusão a "demais serviços de telecomunicações", v. José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, 33a edv 2010, p. 498.

29. V. tb. art. 21, XII, "e", da Constituição de 1988.

aglomerações urbanas e nas microrregiões, os serviços públicos que assumem o caráter de função pública de interesse comum.31

A afirmação de que um serviço público — um interesse, um pro- blema — é de (peculiar) interesse local não supõe a afirmação de que seja ele considerado como único e exclusivo do Município. É fora de dúvi- da que tudo quanto seja de interesse local — municipal, pois — refle- te-se, em última instância, como de interesse estadual e federal. Em contrapartida, não há interesse estadual ou federal que não respeite, também, ao interesse dos Municípios. O que distingue o peculiar inte- resse local daqueles é a circunstância de ser ele de caráter predominan-

temente local (a propósito, a antológica exposição de Sampaio Dória, "Autonomia dos Municípios", in Revista da Faculdade de Direito de São

Paulo XXIV/419).

44. De outro lado, cumpre verificar se, efetivamente, a mera análise do texto constitucional, por si só, permite identificar, sem- pre e em qualquer circunstância, determinada parcela da ativida- de econômica em sentido amplo como serviço público (privativo).

Linhas acima, após ter anotado que a definição constitucio- nal de determinada atividade econômica em sentido amplo como ser- viço público afasta qualquer dúvida que se pudesse opor a sua caracterização como tal, afirmei da leitura do art. 21 do texto cons- titucional extrairmos a conclusão de que há serviço público na prestação, pela União, também dos serviços referidos no seu inci- so XXIII. Esta afirmação, todavia, deve ser tomada como objeto de reflexão.

A distinção entre atividades econômicas que são obrigatoria- mente serviços públicos (serviços públicos privativos), atividades econômicas que podem ser serviços públicos (serviços públicos não privativos) e atividades econômicas que não podem ser serviços públicos (atividade econômica em sentido estrito) não é nova, tendo sido originariamente, entre nós, postulada por Celso Antônio Bandeira de Mello.32 Devo, parenteticamente, enfatizar a circuns-

tância de, a meu juízo, ser outra, distinta da concebida por Celso Antônio, a característica dos serviços públicos não privativos, como linhas acima anotei.

31. Art. 25, § 32, da CF 88. Permanecem relevantes, creio, as observações que a propósito do tema desenvolvi em meu Direito Urbano, cit., pp. 32 e ss.

As atividades econômicas em sentido estrito, embora de titularidade do setor privado, podem, não obstante, ser explora- das pelo Estado. Isso poderá ocorrer tanto nas hipóteses enuncia- das pelo art. 173 da Constituição — isto é, se a exploração direta, pelo Estado, for necessária aos imperativos da segurança nacio- nal ou a relevante interesse coletivo — quanto nos casos nos quais tal tenha sido determinado pela própria Constituição. Por isso mesmo é que o aludido art. 173 dispõe: "Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta...".

A atuação do Estado no campo da atividade econômica em sentido estrito, como agente econômico, é prevista, pelo texto constitucional, no seu art. 177.33 Cuida-se, aí, de atuação em regi-

me de monopólio. Apenas esse caso justificaria, já, a menção ini- cial, contida no preceito veiculado pelo art. 173 do texto constitu- cional. Além dele, contudo, outro mais encontramos precisamen- te no referido inciso XXIII do art. 21.

Exploração de serviço e instalações nucleares de qualquer natureza e exercício de monopólio estatal sobre a pesquisa, a la- vra, o enriquecimento e reprocessamento, a industrialização e o comércio de minérios nucleares e seus derivados seguramente não constituem serviço público. Trata-se, aí, de exploração, pelo Esta- do, de atividade econômica em sentido estrito, em regime de monopólio. Tanto é assim, de resto, que justamente o art. 177, no seu inciso V, reafirma constituírem monopólio da União "a pes- quisa, a lavra, o enriquecimento, o reprocessamento, a industria- lização e o comércio de minérios e minerais nucleares e seus deri- vados". Literal reprodução, vê-se para logo, da dicção inscrita no segundo termo do inciso XXIII do art. 21 do texto constitucional.

Daí a verificação de que a mera atribuição de determinada competência atinente à prestação de serviços ao Estado não é su- ficiente para definir essa prestação como serviço público. Cum- pre verificar, sempre, quando isso ocorra, se a atribuição consti- tucional do exercício de determinada competência ao Estado aten- de a imposição dos interesses do trabalho, no seu confronto com os interesses do capital, ou se, pelo contrário, outras razões de- terminaram a atribuição desse exercício pelo Estado.

33. Até a Emenda Constitucional n. 13/96 previa-a, também, o art. 192, II, in

No caso, assim como naquele do art. 177 — monopólio do petróleo e do gás natural —, razões creditadas aos imperativos da segurança nacional é que justificam a previsão constitucional de atuação do Estado, como agente econômico, no campo da ati- vidade econômica em sentido estrito. Não há pois, aí, serviço pú- blico.

E sob detidos cuidados, pois, que se deve tomar como indi- cativa da elevação de algumas parcelas da atividade econômica em sentido amplo à categoria de serviço público a circunstância de o texto constitucional atribuir a sua exploração à competência do Estado.

45. Alcançado este ponto de minha exposição, assume efeti- va relevância a afirmação de Ruy Cirne Lima, conduzindo-nos à busca de critérios ou subsídios, extraídos da Constituição de 1988, que nos permitam discernir se e quando determinadas parcelas da atividade econômica em sentido amplo podem — mais do que isso, devem — ser assumidas pelo Estado como serviço público, a ele então incumbindo o dever de prover a sua prestação. Impõe-se, ademais, ao mesmo tempo, verificarmos se aquelas acima tidas como atividades de serviço público efetivamente o são.

O art. 173 do texto constitucional brasileiro evidentemente não respeita, restringindo-a — isso é óbvio, curial, evidente —, à conversão de qualquer dessas parcelas em serviço público, visto que cogita de atividade econômica em sentido estrito, aludindo a imperativo da segurança nacional e a relevante interesse coletivo. Por isso, incumbe ao estudioso da Constituição do Brasil buscar tais critérios e subsídios no seu todo (dela, Constituição), o que exige a prévia enunciação de um conceito de serviço público.

Desejo insistir neste ponto: o art. 173 evidentemente respeita à exploração da atividade econômica em sentido estrito, pois per- mite ao Estado empreender uma determinada atividade. O Esta- do não necessita de permissão, autorização, para prestar serviço público. A prestação de serviços públicos é dever do Estado. De mais a mais, segurança nacional e relevante interesse coletivo não jus- tificariam a prestação de serviço público, mas sim de atividade econômica em sentido estrito. Interesse coletivo não é interesse social. Este está ligado à coesão social, aferido no plano do Esta- do, plano da universalidade. Os interesses coletivos são aferidos

no plano da sociedade civil, expressando particularismos, inte- resses corporativos.

Um determinado aspecto deve, porém, ser desde logo subli- nhado: a Constituição autoriza o Estado a explorar diretamente a atividade econômica exclusivamente nas hipóteses expressamente por ela previstas e quando essa exploração se impuser como ne- cessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interes- se coletivo, "conforme definidos em lei".

Recusada a concepção formal de serviço público — serviço público é o serviço gerido em regime de Direito Administrativo34

(regime especial marcado pela submissão dos interesses priva- dos aos interesses públicos) [Jèze] —, encontraremos em Leon Duguit a conhecida descrição, assim enunciada: serviço público é "toute activité dont 1'accomplissement doit être assuré, réglé et controle par les gouverants, parce que l'accomplissement de cette activité est indispensable à la réalisation et au développment de 1'interdépendence social, et qu'elle est de telle nature qu'elle ne peut être réalisée complètment que par 1'intervention de la force gouvernante " .35

A doutrina brasileira, na expressão de Cirne Lima, diz ser serviço público "todo serviço existencial, relativamente à socie- dade, ou, pelo menos, assim havido num momento dado, que, por isso mesmo, tem de ser prestado aos componentes daquela, direta ou indiretamente, pelo Estado ou outra pessoa administra- tiva".36 Vê-se bem, destarte, a caracterização dele, no Brasil, pelos

mesmos traços que o distinguem na conceituação de Duguit: ser- viço público é atividade "indispensável à realização e ao desen- volvimento da interdependência social".

Serviço público, diremos, é atividade indispensável à consecu- ção da coesão social. Mais: o que determina a caracterização de determinada parcela da atividade econômica em sentido amplo como serviço público é a sua vinculação ao interesse social.

34. De outro modo dir-se-á que o serviço público se caracteriza pela sujei- ção a um regime exorbitante do direito comum.

35. Traité de Droit Constitutionnel, 3a ed., t. 2, Paris, E. de Boccard, 1928, p. 61. 36. Princípios de Direito Administrativo, 7- ed., São Paulo, Malheiros Editores, 2007, pp. 203-204.

Daí por que diremos que, ao exercer atividade econômica em sentido amplo em função de imperativo da segurança nacional ou para atender a relevante interesse coletivo, o Estado desenvolve ati- vidade econômica em sentido estrito; de outra banda, ao exercê-la para prestar acatamento ao interesse social, o Estado desenvolve serviço público.

Detida atenção dedicada a essa circunstância permitirá ao estudioso do Direito Brasileiro observar que são distintos entre si o interesse coletivo e o interesse social, ainda que ambos se compo- nham na categoria interesse público.

46. Uma das características da Constituição de 1988 está em

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