• Nenhum resultado encontrado

Paralelamente ao desempenho da função de integração e modernização capitalista, originariamente referida como de acu-

mulação, o Estado implementa duas outras, a de legitimação e a de repressão.59

No exercício da função de legitimação o Estado pretende atribuir ao sistema capitalista e à sua ordem política o reconhecimento de que sejam corretos e justos. Neste sentido, observa Habermas (Zur Rekons-

truktion des Historischen Materialismus, cit., pp. 271 e 272; pp. 243 e 244 na tradução espanhola) que a legitimidade constitui uma pretensão de validez discutível, de cujo reconhecimento (ao menos) fático depende (também) a estabilidade de uma ordem de dominação. Enfatiza, po- rém, o fato de que os problemas de legitimidade só afetam as ordens políticas: apenas elas podem ter e perder legitimidade e somente elas requerem legitimidade.

59. V. Edward S. Greenberg, "A regra de classe sob a Constituição", in /l

No exercício da função de legitimação o Estado, promovendo a mediação de conflitos de classe, dá sustentação à hegemonia do capital. Atuando como agente unificador de uma sociedade eco- nomicamente dividida e, ademais, fragmentada em grupos de in- teresses adversos, promove - e o direito positivo é o instrumento primordial dessa promoção - o que tenho referido como a trans- formação da luta social em jogo.60

Papel dos mais relevantes é desempenhado, nesse contexto, pela Constituição formal, que, enquanto sistema semântico ideologizado, constitui o modo de institucionalização - porque lhe dá forma - do mundo capitalista.61 Constitui, porém, uma

interpretação parcial desse mundo, ou seja, da ordem capitalista, que é de ser completada pela Constituição material. Essa inter- pretação parcial introduz uma falsa consciência desse mundo, à qual não se pode escapar mercê da repressão.

A Constituição, como ensinou Ferdinand Lassalle,62 é a expressão escrita da soma dos fatores reais do poder que regem uma nação; incor- porados a um papel, já não são simples fatores reais do poder, mas fato-

res jurídicos, são instituição jurídica. Daí a concepção da oposição entre

constituição real e efetiva e Constituição escrita. A Constituição escrita é boa e duradoura enquanto corresponder à constituição real e encon- trar suas raízes nos fatores reais do poder hegemônicos no país; onde a Constituição escrita já não corresponder à constituição real instalar-se- á um conflito no qual a primeira sucumbirá.63

Observe-se neste passo que a repressão capitalista não se ma- nifesta necessariamente ex post, como instância subseqüente à da legitimação. A repressão está imiscuída na concepção de hegemonia, de modo que ela se manifesta em um primeiro momento como auto-repressão, suficiente para colocar em situação de lealdade e

60. V. meu O direito posto e o direito pressuposto, pp. 115-117. Lembre-se que o Estado moderno não é um todo homogêneo, no seu interior desenrolando-se também a luta de classes.

61. V. Umberto Eco, Tratado Geral de Semiótica, p. 245. O Estado, por outro lado, pode e deve ser visualizado como â forma da sociedade capitalista, como a forma atual do político (Michel Miaille, El estado dei Derecho, p. 28).

62. A essência da Constituição, ob. cit., p. 19. 63. Lassalle, ob.cit., p. 41.

adesão ao capitalismo a massa quantitativamente mais significa- I iva da sociedade civil.

E, naturalmente, tanto maior será o grau de eficácia da legi- timação e da auto-repressão capitalista quanto mais convincente lorem os mitos na Constituição formal.

12. A Constituição formal, em especial enquanto concebida como meramente programática - continente de normas que não são normas jurídicas, na medida em que define direitos que não garante, na medida em que esses direitos só assumem eficácia plena quando implementados pelo legislador ordinário ou por ato do Executivo -, consubstancia um instrumento retórico de do- minação. Porque esse o seu perfil, ela se transforma em mito.

O mito é forma específica de manifestação do ideológico no plano do discurso (cf. Warat,Mífos e teorias na interpretação da lei, Síntese, Porto Alegre, 1979, p. 127). A respeito do tema, desenvolvi as seguintes observações em meu A Constituinte e a Constituição que teremos, Ed. RT, São Paulo, 1985, pp. 20-22: "A ideologia, mediatizada pela linguagem, é fonte de produção de sentido. Não, porém, na acepção comum de sentido, mas como valor de referência. A ideologia não produz significa-

dos que valham por si mesmos, mas valores-verdades que se auto- referenciam, ou seja, valores referenciais que são verdadeiros ou falsos conforme suas relações com as pautas ideológicas que compõem sua instância de enunciação, seja como conformidade, seja como contraste. O valor do verdadeiro ou falso, assim, no âmbito da ideologia, é arbitrá- rio, formal - não ontológico, conteudístico. Por isso mesmo a ideologia é referencial ou monossignificativa, desconhecendo no real, por não reco- nhecer, tudo quanto seja com ela incompatível. Nisso é que o discurso ideológico e o discurso mítico se aproximam: ambos instauram um horizonte objetivo para os comportamentos e atitudes do homem, em- bora o primeiro se insira e viva da História e o segundo se desenvolva em uma realidade não-histórica, atemporal e sem espaço. Note-se que o mito aparenta ser uma revelação do que foi e permanece sendo. Não obstante, o mito funciona como recurso lingüístico no discurso ideoló- gico de quem tem condições de, através dele, exercer dominação so- cial. Os mitos são descritos como formas de fé popular que não nasce- ram da reflexão racional do povo, mas de sentimentos pré-racionais, emotivos. Desvendados, porém, desnuda-se a racionalidade deles em quem os inventa, o que evidencia não serem senão uma manifestação cultural. O mito, em verdade, não passa de uma invenção, conscionlr

ou inconsciente, do homem ou de um grupo de homens, cuja finalida- de é a instauração de uma (nova?) ordem. Penso possamos sustentar, assim, que o momento da 'desmitização da cultura', no iluminismo racionalista, estruturado sobre a afirmação da obscuridade dos mitos, característica - conforme se alegou - das Idades Antiga e Média, não consubstanciou senão um momento de substituição de mitos. Mitos irra- cionais ou inconscientes são, então, substituídos por outros, mitos tam- bém, porém definidamente conscientes e racionais nos que os inven- tam - como racionais e conscientes, embora hermeticamente, foram aqueles nos que os inventaram. Invenção nítida do homem (ou de um grupo de homens), os mitos modernos - não o mito para o homem, como o mito drumondiano de 'fulana', mas o mito para o povo - são como expressões esotéricas, a serem 'consumidas' pela sociedade. São, as- sim, impostos à sociedade, funcionando como instrumentos lingüísticos de dominação que tanto mais prosperam quanto mais sejam acredita- dos. As Constituições formais inúmeras vezes consubstanciam moda- lidade exemplar de mito moderno. Por um lado, instalam no seio da coletividade a convicção de que se vive sob a égide do Estado de Direi- to: se a Constituição, documento formal, existe, temos instituído o re- gime do Estado de Direito. Por outro - sobretudo a partir do instante em que, tocadas por um gesto de brilhantismo invulgar, a burguesia faz incluir nela um capítulo atinente aos direitos econômicos e sociais - funcionam como anteparo às expansões da sociedade, amortecida naquilo que seria expressão de sua ânsia de buscar a realização de as- pirações econômicas e sociais. A Constituição, então, instaura o 'Esta- do Social' e passa a ser exaustivamente 'consumida' pela sociedade. Pouco importa que suas disposições tenham caráter programático, con- templem direitos não juridicamente exeqüíveis, isto é, não garantidos. Outro lance de brilhantismo invulgar encontra-se na teorização da dis- tinção entre direitos e garantias. Pacificam-se as consciências das or- dens privilegiadas e os néscios encontram o conforto próprio aos que vivem sob a égide da Constituição, devidamente conformados - seja porque se tornam pacíficos, seja porque seus comportamentos assu- mem padrões predeterminados, na dupla denotação do vocábulo. A Constituição, assim - isto é, o documento formal denominado 'Consti- tuição' -, desnuda-se como instrumento de dominação ideológica. É mito que acalentamos, dotado de valor referencial exemplar, na medi- da em que contribui eficazmente para a preservação da ordem que não se pretendia instaurar, mas, simplesmente, manter. Não importa - repi- ta-se - que os direitos econômicos e sociais nela instituídos não se rea- lizem em relação a cada qual ('fulana sequer me vê') se cada qual pode se refestelar no gáudio de viver sob a égide da Constituição". V. tam- bém Alicia E. C. Ruiz, "La ilusión de lo jurídico", in Crítica Jurídica,

Revista Latinoamericana de Política, Filosofia y Derecho, 4,1986, Universidad Autônoma de Puebla, pp. 161 e ss.

Por isso mesmo é que se pretende, sempre, conferir racionalidade à Constituição. O episódio da instituição de uma "comissão de notáveis", incumbida da elaboração de um anteprojeto que se prestaria a servir de modelo para os constituintes da "Nova República", em 1987, é bem expressivo dessa circunstância. Essa "comissão de notáveis", de toda sorte, não deixaria Aristóteles de qualificá-la como oligárquica. Recorro a trecho de A Política: "Cependant il peut exister aussi certaines magis- tratures particulières à des formes spéciales de gouvernement, par exemple 1'office des conseillers préparateurs. Cet office n'a rien de dé- mocratique, bien qu'un Conseil soit de nature populaire, car il faut bien qu'il y ait quelque corps du genre de ce dernier qui aura le soin de préparer les délibérations du peuple, pour lui éviter d'être distrait de ses occupations; mais si les membres qui composent cette commission préparatoire sont en petit nombre, on est en pleine oligarchie, et comme c'est une nécessité que les conseillers préparateurs soientpeu nombreux,

il en resulte í]it'ils constihienl bien im élémcnt oligarchique" (grifei) (IV, 15, Irad. de |. Tricol, l.ibrairie Philosophique J. Vrin, 4a tir., Paris, 1982, p.

Mítica foi a Constituição Mexicana, de 1917, dedicando um longo capítulo à definição de princípios aplicáveis ao trabalho e à previdência social, sem porém institucionalizar os direitos que enunciou - atribuiu ao Congresso da União a emissão de leis que o fariam.

A Constituição de Weimar, de 1919, é também programática. Nela e na do México, ademais, a evidência do projeto ideológico que contemplam, de amortecimento do conflito de classes, é fla- grante. Veja-se o art. 165: "Os operários e empregados são chama- dos a colaborar, em comum, com os patrões em igualdade de di- reitos, na regulamentação das condições de salários e de traba- lho, assim como no conjunto do desenvolvimento econômico das forças de produção". A mexicana remete a composição dos con- flitos entre capital e trabalho a Juntas de Conciliação e Arbitra- gem (art. 123, A, XX) e admite como lícitas as greves "quando tiverem por fim conseguir o equilíbrio entre os diversos fatores de produção, harmonizando os direitos do trabalho com os do capital" (art. 123, A, XVIII). A de Weimar, além de tudo, menos do que encaminhar uma organização coletivista - Conselhos Operá- rios e Conselhos Econômicos - introduz um modelo de organiza- ção econômica corporativista (veja-se o art. 156, parte final).

Na mesma linha prosperam as Constituições formais capita- listas que se seguem a elas, seja na provisão da institucionalização de um "Estado Social", seja na implantação do "capitalismo so- cial", noção que não resiste nem mesmo à contradição dos vocá- bulos que integram a expressão que a designa - só o processo de produção é social; o processo de acumulação capitalista é essen- cialmente individualista.

13. A legitimação da hegemonia do capital, nutrida pela

Outline

Documentos relacionados