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A tradução como objeto do etnógrafo, recurso do tradutor

O refrão-caminho

Canto 2: Tiñaradɨdo/Iapi'ido Ko koooo


4. A tradução como objeto

4.2. A tradução como objeto do etnógrafo, recurso do tradutor

O que me interessa na proposta de Hanks e Severi, e nos artigos que eles introduzem, é seu convite para pensar a tradução como objeto etnográfico. O método do equívoco controlado se desenvolvia a partir dos estudos das traduções efetuadas pelos xamãs, ou seja,

Dentre estes pode-se recorrer à tese de Soares (2011), que distingue explicitamente diversas formas de 74

tradução de um mundo ou objeto em um outro. Além daquelas ditas em adição, formando uma singularidade composta, em hierarquia (implicando formas de representação que sujeitam a diferença ontológica a uma inferioridade epistemológica), em inclusão por transformação e mistura de elementos de um mundo a outro, ou em co-existência, há uma dita ‘em conflito’ que implica que diferenças entre cada mundo sejam percebidas pelos atores como incompatíveis entre elas (ibid:396).

tomadas igualmente como objeto. Antes de perseguir esta questão das traduções xamânicas, me detenho sobre alguns exemplos de estudos que escolhem, todos de maneira distinta, pensar a tradução como objeto ou ‘motivo etnográfico’.

O primeiro e mais sucinto dos exemplos é aquele que cabe a uma consideração das traduções êmicas no próprio processo de tradução. Heurich, na sua tese, traduz por ‘com’ o uso araweté do caso relativo (habituadamente traduzido por ‘em relação a’ ou ‘por causa de’). A ‘traição’ da língua alvo deve-se a que os Araweté traduzem em português por ‘com’ o uso do caso relativo, de tal forma que, conforme os termos do autor, “aparecem relações onde se pensaria em associações” (2015:66). Em um segundo caso, a consideração das traduções araweté leva o autor a compor um neologismo, a meio-caminho entre a forma araweté e a tradução êmica do termo Maɨ ĩ’ã. Traduzido por ‘maivião’, já que o veículo dos Maɨ está mais correntemente descrito e traduzido como avião, a solução tradutória teria também a vantagem de manter uma similaridade sonora com o original (2015:189). Nestes casos, levar em conta a tradução êmica envolve afetar (ou trair docemente) a língua de chegada para criar uma ressonância de relação, e uma similaridade sonora  : uma tocando o sentido, e a outra, a forma. Gongora, para o caso Ye’kwana, propõe uma solução tradutória semelhante para o termo iyääjäkä que poderia ser traduzido como por

causa disso, mas é traduzida pelos próprios ye’kwana como com em português (2017:388). Os

dois autores propõem de alguma forma um ensaio de simetrização na tradução, que se traduz por uma transferência (onde a tradução é equivalente a um transporte mesmo) da tradução ou por um ensaio de ressonância com a tradução local.

4.3. Entor no, contor no, retor no às traduções

Schuler Zea (2008) propõe observar, em um artigo sobre o que ela chama d’o genitivo da

tradução, três imagens conceituais waiwai que permitiriam desvelar um ‘modelo

intersubjetivo da tradução’ neste povo. Este modelo comporia uma alternativa a dois modelos tradutivos hegemônicos encontrados na teoria da tradução, que a autora chama de ‘objetivos’ e ‘subjetivos’. É importante apontar que aqui a antropologia também é considerada como tradução, fazendo com que a autora empregue as expressões de tradução, antropologia, e tradução antropológica juntas e de modo intercambiável, de tal forma que a tradução waiwai vem constituir também uma antropologia waiwai (ou etno-antropologia waiwai). O objetivo, semelhante àquele de Viveiros de Castro, é que a tradução e/ou antropologia waiwai venha ‘contaminar e (re)orientar’ nossa própria antropologia.

O primeiro modelo ocidental da tradução se fundaria sobre quatros premissas ou pressupostos: a transparência (que teria por efeito o apagamento do tradutor), a unilateralidade (onde a tradução seria exterior às línguas, enquanto o entrelaçamento entre línguas pareceria mais bem um recurso do processo tradutório), a apropriação, “segundo a qual produções de uma língua passam a estar à disposição de outra através da tradução” (que reproduziria então as relações centro-periferia, dominado-dominante e remeteria ainda a uma noção de propriedade e de identidade), e por fim de neutralidade (que constituiria mais bem uma neutralização da diferença própria do original e qualificaria a inserção no meio cultural alvo). O segundo modelo, dito “subjetivo”, constituiria o polo simétrico ao primeiro, instituindo o sujeito tradutor no centro da tradução, onde a tradução dá conta da intervenção do sujeito da tradução, no caso, o antropólogo-tradutor.

Com o intuito de abordar este modelo “intersubjetivo” (dado que a tradução é primeiramente uma construção de relações com outros sujeitos, humanos e não-humanos), Zea descreve três imagens conceituais waiwai. A primeira é encontrada nas expedições dos Waiwai à procura dos enîhni komo, traduzido como ‘povos não-vistos’, cujo motivo, destaca a autora, não está situado no contato com estes outros, mas no que lhes precede: o rastro, a ressonância, o pressentimento em vez do encontro efetivo, e mais precisamente a forma que assume o caminho desta procura, o yesamarî, ‘caminho indireto’ ou ‘rodeio’ persistente e constantemente reiterado (mesmo que o encontro com outros grupos satisfaça um motivo político, assinala a autora, enquanto busca de conhecimentos, as expedições sempre devem ser reiteradas, o yesamarî sempre deve ser refeito, como um marco para a identidade-para- se-fazer waiwai). No seio desta procura, a imagem dos enîhni komo dá relevo a uma lógica relacional e intensiva, em vez de substancial, pois os ‘povos-não-vistos’, objeto interminável da procura, existem enquanto não-vistos, e não pelo fato de estarem descobertos (por isso, para a autora, a imagem dos enîhni komo é uma obviação, ela não representa nem substitui nada). Assim, a forma da relação entre os Waiwai e os enîhni komo é tal que não se podem distinguir as duas posições de maneira discreta. A imagem dos povos-não-vistos viria participar da transformação dos Waiwai de tal forma que atuaria como instância mediadora entre as duas posições.

Em segundo lugar, Schuler Zea propõe observar como o yewru yekatî, traduzido por ela como ‘alma-olho’, que aparece apenas quando uma pessoa vê outra, pode ser associado ao fato de que, entre os Waiwai, ver implica ser visto (ver é então, a uma só vez, ação e paixão), ideia que ela denomina de reflexividade, ou ainda, impropriedade, isto é, que a

imagem de si é percebida no domínio do outro. A última imagem conceitual descrita pela autora concerne à forma de tradução que ela descreve para os ‘rituais de tradução’ (mais conhecidos na literatura etnográfica como ‘animal imitation games’) e durante os quais, conforme assinala a autora, os waiwai traduzem outros (tais como os donos-das-roupas dos tamanduá-bandeira, de alguns porcos, onças, de um tipo de abelha…). Conforme Zea, a singularidade destas ‘traduções’ é sua forma relacional, compreendida como uma repetição, onde as roupas que vestem os waiwai fazem com que virem duplos, gerando diferenças em vez de produzir, como faria a imitação, uma identidade. Conforme a etnógrafa, a repetição aparece como um meio oblíquo de evocar estes donos-de-animal (pois ver-lhes e assim ser visto por eles é algo repleto de riscos), um meio de entrever ou transver. A autora decifra nesta forma de tradução dos outros uma ‘mimesis’, numa translação do outro que não pode ser feito presente (dado o perigo que uma tal presença implicaria) mas que sobreviveria através da tradução. A autora vê nisso também um pacto entre original e tradução, pacto este que seria constitutivo do modelo intersubjetivo.

É por essa via que Zea identifica, nesta forma de ‘tradução’ waiwai, uma afinidade com certos pensadores da tradução. A ideia de uma tradução que tornaria possível a sobre-vida do original poderia ser conectada com a teoria benjaminiana de uma renovação ou transformação dando ao original uma outra vida, exposta n’A Tarefa do

tradutor  (1969  [1923]). A teoria da tradução waiwai formaria um análogo invertido dos

desenvolvimentos consequentes de De Man (1985) segundo o qual, ao canonizar, fixar o original (já que depois traduzir-se-á apenas o original), a tradução ironicamente revelaria

uma instabilidade, uma errância do original . Os Waiwai, por sua vez, partiriam já da 75

incerteza, e para eles a tradução, como troca de olhares sempre diferentes, levaria a uma “forma transitória de apoio transversal”. Enfim, e de modo mais geral, a divergência das formas substanciais de identidade e da lógica da propriedade, que faz da tradução dos Waiwai uma ‘transformação’, teria que ser aproximada da necessidade de pensar a tradução como transformação afirmada por Derrida. A conexão (a autora propõe “à distância”, e poder-se-ia adicionar “parcial”) das formas de tradução waiwai com essas diferentes teorias se efetua ou se justifica por duas premissas: trata-se de considerar configurações como imagens do pensamento comparáveis aos conceitos científicos (porque cada um comporia, entre metáfora e formulação lógica, uma relação invertendo o outro) e em vez de ver nessa conexão uma aplicação de uma teoria exterior ao objeto etnográfico, de pensá-la pela ressonância e pela sinuosidade, como um yesamarî, um caminho tortuoso que permitira tanto aos Waiwai juntar longínquas teorias, como à antropóloga se aproximar, girando em torno dos Waiwai, dessas teorias.

Com essas duas premissas, Schuler Zea desenha um movimento particular. Depois de ter afirmado seu afastamento de dois modelos ocidentais do traduzir, trata-se de recomeçar, a partir de práticas que a etnógrafa delimita como formas de tradução, teorias implícitas

A errância do original é, com De Man, permanente por não possuir outro ponto de partida. Esta 75

ausência de ponto de partida, ou de um ‘homeland’ do qual o original seria uma figura de exílio não está mais longamente detalhado pela antropóloga. Permito-me aqui reencontrar a citação de De Man (1985) lá onde Schuler Zea a deixa: “Menos ainda existe algo como uma reine Sprache, uma língua pura, que não existe exceto como disjunção permanente que habita todas as linguagens como tais, inclusive e especialmente a língua que se chama sua própria. O que há de ser a sua própria língua é a mais deslocada, alheia de todas” (1985:44). No escrito de De Man, a errância do original é uma interpretação e retradução crítica do tropo de Benjamin do original como fragmento de vaso cuja tradução igualmente fragmento teria que seguir os contornos, sua “manner of meaning”. Trata-se entre outras coisas para De Man de recusar a tese da ‘Ur-Sprache’ (ou reine Sprache) da qual toda tradução se valeria para compor suas ressonâncias e ao mesmo tempo se aproximaria, que ele considera imputada por traduções sucessivas do tropo do vaso quebrado da obra de Benjamin. Se seguirmos o jogo do raciocínio de Zea sobre o modelo intersubjetivo da tradução waiwai, onde cada imagem conceitual está respectivamente associada a um não-ver, e transver por traduções em ressonância, redundância, repetição e transformação, e que admitamos que se trata de uma proposta de pensar as traduções no seio do esquema perspectivista ameríndio, a conexão ‘à distância’ ao Benjamin de De Man parece mais interessante ainda. Conforme De Man, os fragmentos de vaso quebrado que são a tradução e o original se seguem um e o outro metonimicamente (a tradução não seria uma metáfora do original) e não constituirão jamais uma totalidade, apenas fragmentos de fragmentos: “A tradução é o fragmento de um fragmento, está quebrando o fragmento para que o vaso siga quebrando, constantemente e jamais o reconstitui; não havia vaso no começo, ou não temos conhecimento deste vaso, ou não temos ciência dele, acesso a ele, portanto para todos intentos e propósitos, jamais houve vaso” (ibid). Que se trate de perspectivas não totalizáveis, de formas de aquisição de palavras (cantos, narrativas) ou do tema recorrente da divergência original dos seres (e seus dualismos em perpétuo desequilíbrio) e de suas linguagens, o Benjamin de De Man, que não procuraria mais reencontrar uma ‘língua adâmica’ (Carneiro da Cunha, 1998), me parece assim não apenas talvez mais interessante mas também aponta uma das particularidades da tradução (ou comparação) das formas de tradução encontradas nos mundos ameríndios nos termos de teorias tradutórias ocidentais: o fato de poder operar no jogo das múltiplas traduções destas teorias tradutórias (onde a tarefa do tradutor benjaminiano se desdobra, por exemplo, como homônimo).

do traduzir por trás de práticas associadas ao que a autora chama de imagens conceituais. Com isto a autora envolve ou situa seu raciocínio em torno das teorias do traduzir waiwai. Conectando-as com teorias pósmodernas da tradução, o raciocínio toma depois um contorno, entre teorias do traduzir distantes, para finalmente efetuar um retorno e ancorar- se, de novo, no seio da teoria implícita waiwai antes elicitada. Com Schuler Zea, a conclusão que ressitua sua própria prática tradutória no seio daquela que ela descreve no seu repertório waiwai de imagens conceituais, age como controle de uma tradução que até então seguia passo a passo a forma e a autoridade da tradução cultural tal como está descrita por Asad (1986). Redesenhando sua tradução antropológica como uma produção do original (é a imagem do yesamarî, mais do que a teoria implícita que ela infere dela, que parece enfatizada), a autora atenta para um curto-circuito da tendência das traduções antropológicas em agir como representações textuais autoritárias, tentando, pois, uma inversão (parcial) das relações de poder entre os dois polos.

4.4. ‘Com’ as traduções

Perrone-Moisés, no seio de sua tese Festa e Guerra, elabora toda uma proposta de transformação da etnologia americanista, partindo do que ela chama de um ajuste de

vocabulário inspirado pelas soluções tradutórias ameríndias em termos de festa* e guerra*. Ela

observa a maneira pela qual, desde os escritos pivôs de Overing (1976), DaMatta, Seeger, e Viveiros de Castro (1979) — também destacados como tais por Pinheiro Dias (2017:55) — a etnologia das terras baixas ganhou consciência da inadequação das categorias antropológicas (pela maioria oriundas das etnologias africana e melanesiana) das quais dispunha. Reconhecendo os esforços tradutórios desde então desdobrados, ela sustenta também a necessidade de seguir com esta terapia da linguagem, seguindo a expressão de Strathern, para mais longe. Perrone-Moisés leva ao seu limite o adágio da tradução como traição: se uma tradução antropológica não trai a língua de chegada, é então que trai aquela de partida. Permito-me aqui reproduzir algumas passagens do raciocínio da autora — que aliás poderia ser prontamente aplicado como crítica desta dissertação, que tampouco escapa de um uso de categorias que reproduzem divisores inadequados:

A “religião” desaparece entre os americanistas, mas parece ser apenas camuflada sob outros termos — xamanismo, cosmologia —, sem ser propriamente descartada como domínio particular […]. Tudo indica, na verdade, que tais categorias têm sido grandes produtoras de “ruído”, dificultando nossa apreensão.

Na tentativa de traduzir as dinâmicas e declarações ameríndias em tais categorias, multiplicamos plurais e “híbridos”: sociocósmicos, sociopolíticos, cosmopolíticos. Traduções, digamos assim, user-friendly, na medida em que permitem ao destinatário seguir operando com suas próprias categorias, ressaltando entre elas relações; tais termos compostos acoplam (e, portanto, mantêm) recortes inoperantes. Mas tais recortes não são — aparentemente sempre soubemos disso — transculturais. Uma expressão como “cosmopolítica” pode ser (como de fato tem sido) produtiva entre nós, exatamente porque obriga a imbricar dois planos que o pensamento moderno distingue. Não parece fazer sentido onde “sociedade” se estende ao que chamamos de “cosmos”, conjunto de coletivos diversos com quem se praticam relações que aqui proponho [festa/ guerra]. “Cosmos”? “Política”? Tais traduções não traem as categorias da língua de chegada e, por isso mesmo, traem as linguagens ameríndias que se propõem a traduzir. […] As análises expressamente concebidas como “de organização social” tornaram-se raras, enquanto trabalhos dedicados a cosmologias se movem por sociedades ameríndias, nas quais incluem-se gentes que costumamos chamar de “espíritos”, o que talvez explique porque as festas continuaram sendo estudadas, mas sempre retalhadas pela categoria “ritual” (2015:10-11).

Mesmo quando associadas em palavras duplicadas, os divisores ocidentais (“religião/ política; sagrado/profano; ritual/cotidiano; cerimonial/mundano; sociologia/cosmologia”) perpetuam-se, produzindo na análise falsos problemas. Assim, como no pequeno herbário de Gross, nenhuma categoria ocidental oriunda do léxico da política (nem da religião) apreende plenamente a singularidade das práticas e dos pensamentos ameríndios, não porque a política se afogaria em todas partes de um cosmos, mas porque ‘as partes são outras’.

É notável que a autora, como protótipo na disciplina da mes-estima tradicional das traduções locais, remete às traduções de Boas (estudadas por Goldman) — que encontramos antes com Berman e a questão das historien retraduzidas como ‘mito’ ou ‘legenda’ — e a sua substituição das traduções das notas de Hunt, como no caso de cantar por ‘dizer’, implicando desde então discursos ali onde nobres Kwakwaka’wakw cantam (Perrone-Moisés, 2015:18).

A tese de Perrone-Moisés se propõe a efetuar verdadeiramente um passo simétrico: trata-se de levar a sério as traduções no ‘português dos índios’, costumeiramente relegadas às notas de rodapé. São traduções nas quais emergem os papeis relacionais recorrentes do amigo e do inimigo, do anfitrião e do convidado, que desenham de maneira explícita, o que a autora reconhece como duas matrizes relacionais em perpétuo desequilíbrio (Lévi- Strauss, 1991) que regem os mundos ameríndios: a festa e a guerra. ‘Levar a sério’ não é entender literalmente, mas pensar a partir das traduções dos ameríndios acerca daquilo que estão fazendo quando os antropólogos usualmente, descrevem, notadamente ‘rituais’ ou,

por exemplo (mais recentemente), ‘práticas cosmopolíticas’. As traduções no ‘português dos índios’ (liderança*, festa*, alegria*) são portanto o objeto de estudo e também seu ponto de partida, meio e abertura. Assim, no caso da festa*:

A tradução é precisa: trata-se de eventos coletivos que reúnem anfitriões e convidados em torno de fartura de comida e bebida, dança e canto, jogos... e têm o alegrar-se juntos como objetivo. Até aqui não há traição à língua de chegada, aparentemente. As festas dos índios, entretanto, apresentam o que nos aparece como mistura de solenidade com festividade, o que desafia nossa “intuição cultural”. É, provavelmente, a centralidade das tais festas nas vidas dos índios que impele ao emprego de termos entre nós relacionados a eventos mais “sérios”, tidos por igualmente mais “sérios”, porque técnicos. Enfatizando a recorrente presença de convidados de outros planos (espíritos, ancestrais), a importância (que uma simples “festa”, vista daqui, não pode ter) desses eventos na vida social dos índios e os protocolos minuciosos que as regem, a palavra “ritual” puxa as festas dos índios para o campo do “religioso” (ibid:19).

Neste caso, importa assinalar o quanto, ao escolher as traduções ameríndias como objeto, a autora consegue desdobrar todo um esquema teórico panameríndio e cujos seguimentos podem assinalar uma possível reforma dos enfoques da etnologia americanista. De uma precisão cativante, a proposta de Perrone-Moisés tem a virtude de abalar o olhar levado para as etnografias tanto passadas como por vir. Antes de seguir com o exemplo seguinte, convém enfatizar que, partindo das traduções nativas, quando Perrone-Moisés propõe parar de pensar em termos de ritual o que os ameríndios traduzem como festa, levar a sério implica — além de se desatar de uma noção de ritual para pensar grande parte dos motivos etnográficos destacados e descritos pelos etnólogos — igualmente que as festas não sejam focadas por um prisma teatral:

Tampouco é teatro: filosofias que têm por eixo a crônica instabilidade de corpos e perspectivas garantem que quando os índios dizem que a pessoa atrás da máscara não é sua conhecida, ou que das flautas sai a voz do sapo, não se trata de figura de expressão. Levar a sério os nativos significa, nesse caso, deixar de tratar como metáfora ou figura de linguagem aquilo que a nos assim parece (2015:16).

A autora aqui aponta para uma questão particularmente espinhosa na etnologia ameríndia, como se verá no exemplo seguinte, e que persegue uma discussão iniciada no segundo capítulo desta dissertação sobre a definição de instâncias de artes verbais ameríndias em termos de performance. Levar a sério implica levar em conta os conceitos de pessoa e de self vigentes nos mundos ameríndios. Apoiando-se numa grande variedade de estudos nos mundos ameríndios em torno da fabricação e da instabilidade crônica dos corpos(-pessoas), seguindo a linda expressão de Taylor, a autora (Perrone-Moisés, 2014)

resume assim as relações que a performance e o self ou a identidade entretêm nos mundos ameríndios:

We must think instead of being, indeed of identity itself, as constituted through (continuous) performance. Decades of research among lowland South American groups have shown that in Tupi (and much Amerindian) thought, a person is given not an essence but rather a process (2014: 122).

Decorre daí que se a “Identidade (o Self) é uma performance”, a ideia mesma de