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2 ‘For mas de arte’

3. Gêneros e modos de palavras

3.1. Do gênero levado

Num dossiê consagrado aos ‘discursos do ritual’, Déléage assinala como se deve tanto comparar estruturas poéticas de gêneros discursivos diferentes, quanto se interessar pelo que que pensam os Ameríndios a respeito de seus próprios discursos e, notadamente, estudar as propriedades reflexivas que permitem sua diferenciação (Déléage, 2011). Volto- me, aqui, para a questão das classificações e gêneros fundados sobre critérios êmicos.

Seeger, por exemplo, descreve as distinções kisêdjê de quatro diferentes gêneros de ‘arte vocal’: os kapérni, ou ‘discurso’, os sarén, de ‘instrução’, os ngére, ‘canto’, e sangére, ‘invocação’ (ainda que a tradução êmica de ngére seja música*, o autor prefere a tradução de ‘canto’, já que não se encontra nos ngére o que se costuma chamar de ‘música instrumental’ [aqui similarmente a Heurich, 2015 & Gongora, 2017]). Partindo destas distinções êmicas, o autor desdobra uma descrição de cada gênero e dos seus diferentes tipos [kinds], que parecem diferenciados conforme sua finalidade e contextos de performance. Em seguida, pela comparação dos seus ‘textos’, ‘fraseados’, ‘relações de tom’

O uso dos termos “terapêutico” e “ecológico”, que poderiam surpreender o leitor, são discutidos e

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e ‘autoridade textual’, o autor analisa as outras diferenças implicadas nesta diferenciação (Seeger, 1987:25).

No seu estudo dos cantos sharanahua, Déléage estuda também as diferenças que permitem aos Sharanahua distinguir vários gêneros de palavras. O autor retoma assim três gêneros sharanahua: os shudipafo ou yoshifo, ‘palavras dos ancestrais’ que emergem em situações pouco ritualizadas e diferem conforme o gênero do narrador e os grupos etários implicados; os cantos rabi, com valor de ‘aprendizagem’ e enunciados durante os rituais coletivos de absorção de ayahuasca; por fim, os cantos ‘terapêuticos’ coshoiti entoados por xamãs locutores mas cujo enunciador é o yoshi anaconda (2009). Aqui, a diferenciação êmica, primeiramente relacionada a uma descrição de sua função e dos contextos de performance dos cantos (aprendizagem, terapêutica…), desenha para o autor uma ‘epistemologia sharanahua’. O estudo dos princípios de diferenciação entre diferentes gêneros de palavras permite ao autor distinguir os critérios sharanahua implicados, tais como a proveniência das palavras, e o valor epistemológico associado a certos regimes enunciativos pela análise das relações complexas entre locutor e enunciador, ou cantor e detentor ou dono das palavras, que se encontram atualizadas na performance dos cantos. O critério de diferenciação, que pode ser entendido como epistêmico, permite ao autor desdobrar uma análise dos princípios composicionais dos diferentes gêneros de palavras, dos seus marcadores evidenciais e epistêmicos e, assim, das relações implicadas no evento de um canto.

É notável que um critério epistêmico é encontrado de outra forma no estudo de Tedlock consagrado às narrativas Zuni. O antropólogo descreve como as narrativas telapnaawe são consideradas como pertencendo à ficção , a diferença dos chimiki’ana’kowa que são 28

‘literalmente verdadeiros’ e impregnados assim de ‘afirmações etiológicas’. Os dois gêneros de narrativas situam os eventos narrados igualmente em dois tempos diferentes do inoote (o ‘long ago’ que não é aquele da narração), os primeiros enquanto o mundo já estava ‘endurecido’, os segundos enquanto o mundo era ainda macio. O critério epistêmico é mais bem aqui um critério de conteúdo, relativo ao tempo e aos eventos contados na narrativa. Esta diferença epistêmica de conteúdo (que cabe ao que se pode reconhecer como pertencendo aos regimes de verdade), acompanha-se de critérios formais. Assim, reconhece-se em primeiro lugar um telapnaawe pelo seu quadro ou keying device formular e simétrico que

Mais exatamente, se seguirmos as falas trazidas pelo autor, os telepnaawe são “apenas histórias”, aparecem

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como ficção nos termos do autor quando são confrontados com a espinhosa questão da crença dos Zuni em suas histórias.

forma, por etapas ou gradientes, a entrada e a saída para dentro e fora da narrativa. Um

telapnaawe está introduzido pelo narrador por SO’NAHCHI/ (antigamente “Now we are

taking it up”) e uma resposta do auditório /EESO/ (“yes indeed”) à qual se encadeam / SONTI INO ——TE/ (“now it begins to be made loooong ago”), uma nova reafirmação da audiência, e uma lista das personagens principais e das suas moradas. A fórmula de fechamento é uma afirmação etiológica, seguida enquanto a audiência se levanta e se alonga, de /Le’n inoote teyatikya, LEE——SEMKONIKYA/ (“This was lived long ago, enough — the word was short”)(1983:161). Tedlock não resiste em compor uma comparação destes marcos com aqueles encontrados nas tradições escritas. A intenção parece ser aquela de desexotizar a estranheza formular e a presumida dependência da oralidade das narrativas zuni, assim como salientar a importância do seu mantimento nas traduções. Retêm-se aqui alguns fragmentos dessa correspondência:

A book begins with a cover, and this is followed by some or all of the following features: flyleaves (corresponding, perhaps, to the pauses of the Zuni narrator), title page (with the title, in former times, often taken form the opening line of the text proper), foreword (by someone other than the author, a sort of audience- member), preface (by the author himself), […]. One might argue about the details, but the general structure of this book frame is the same as the Zuni tale frame in that it moves into and out of the actual narration by stages. It is also worth noting that title pages, section headings, and sentences beginning chapters are set in large type or completely in capitals, which parallels the Zuni narrators’s practice of rendering his openings three steps in a loud and chantlike voice which does not drop into a normal narrating voice until after he has delivered a few lines of the actual story (1983:163-164; minha ênfase).

O autor estabelece aqui uma relação proporcional entre a composição do marco, critério formal de identificação do gênero, e o que a audiência aceita enquanto realidade. A relação é estendida para além das narrativas zuni, numa proposta de generalização deste procedimento de enquadramento da ficção, abrangendo aí também os Yoruba, bem como as peças de teatro ocidentais. Voltarei, no segundo capítulo, para as implicações de tal interpretação das narrativas Zuni.

Se os dispositivos de enquadramento constituem um critério de diferenciação ou assinatura de gênero relativamente recorrente no estudo de palavras ameríndias, a sua interpretação varia, no entanto, consideravelmente. Assim, Basso descreve como as introduções e conclusões às instâncias de narração dentre os Kalapalo (Ahtsakefa: “do listen”; Aifa, apïgï aketsigey: “That’s all there is to that”) criariam as possibilidade de uma intimidade partilhada que participaria em fazer com que o auditor pudesse ‘ver’ as imagens da narrativa junto com o narrador (1995:30). É notável que, também com Basso, este

recurso a um enquadramento visa responder (junto com as respostas do auditor) à necessidade, comparável àquela dos anglófonos, de ‘apreciação e entendimento’ das metáforas.

Nota-se que, enquanto para Déléage o critério epistêmico de distinção de gêneros emerge de uma diferenciação êmica no que se refere à proveniência das palavras, para Tedlock a diferenciação êmica é retraduzida em termos de uma crença relativa na realidade descrita por um e outro gênero de narrativas.

Entre os Tikmũ'ũn, Tugny não encontra uma “classificação excludente dos cantos segundo sua utilidade”, mas conforme o povo-espírito (dentre os dez inventariados pela autora) do qual o canto provêm:

Qualquer homem, mulher e criança tikmũ'ũn sabe imediatamente distinguir se um canto pertence aos xũnĩm (plasmador de corpos, dono de uma visão-escuta), aos mõgmõgka (senhor das transformações corporais), aos tatakox (aqueles que cuidam dos transportes entre eventos que se ocultam), ou a qualquer um desses povos ou legiões de espíritos, pelas suas faculdades, qualidades vocais, acústicas, musicais e pelas visões que proporciona (Tugny, 2011:114).

Como decorrência da diferença de proveniência dos cantos, variam os grupos ritualísticos encarregados de emitir os cantos, os seus regimes de enunciação, os traços distintivos destes cantos (tais como as finalizações, os gritos, os instrumentos):

os cantos do Putuxop (os povos-papagaios espíritos) são entoados por grupos vocais homogêneos (homens e espíritos), os cantos do Amaxux (os povos-anta- espíritos) alternam-se entre vários solistas; entre os cantos do Mõgmõka (os povos-gaviões-espíritos), predominam os responsórios (solista/coro); os cantos do Kõmãyxop (os povos-kõmãy-espíritos) e do Koatkuhphi (os povos-mandioca- espíritos) geralmente são antifônicos (coros alternados), os cantos dos Yãmiyhex (os povos-mulheres/sucuris-espíritos) são na sua maior parte, solísticos, os cantos dos Xũnĩm (os povos-morcego-espíritos) são entoados pelo coletivo de homens na presença dos espíritos e os cantos do Po’op (os povos-macaco-espíritos) alternam coros de vozes masculinas e femininas que se encontram distantes e se ocultam mutuamente (os homens na casa dos cantos e as mulheres fora, no pátio da aldeia) (Tugny, 2011:155).

Reencontra-se ainda o critério de origem, da proveniência ou do dono das palavras para diferenciar gêneros de cantos na tese de Viveiros de Castro (1986). No seu estudo dos cantos araweté, Viveiros de Castro distingue de fato a ‘música dos deuses’ (Mai marakã), cantada pelos deuses através dos xamãs, e a ‘música dos inimigos’ (awĩ marakã), cantada pelo matador mas ensinadas por uma vítima inimiga. A esta primeira classificação amarram-se uma série de diferenças de temas, princípios composicionais e de performance, como de inscrição na cosmologia araweté. Heurich, retomando esta distinção, propõe por

sua parte mobilizar outra oposição de partida, aquela entre dançar (-porahẽ) e cantar (-ñĩñã), propondo assim como critério de diferenciação a forma poética ou de ‘execução’ dos cantos. Estes são portanto reunidos e distinguidos em dois grandes gêneros: os “cantos que dançam”, durante os quais o xamã está acompanhado de um grupo de dançarinos, e os ‘cantos que cantam’, onde o xamã, pelo menos visivelmente, canta sozinho. Cabe assinalar, no entanto, que cada gênero inclui diferentes categorias êmicas de cantos, cujo critério de classificação está, senão ainda exatamente ligado à proveniência, associado às relações que o xamã estabelece com outros: o primeiro gênero reúne, entre outros, os cantos de inimigo (awĩ marakã), os cantos animais e os cantos de verdade (marakã hete dados pelos Maɨ aos Araweté antes da sua separação); o segundo junta os cantos dos deuses (Maɨ marakã), os cantos dos espíritos-flechadores anĩ (anĩ pihi, que o autor re-nomeia “pegañĩ” e no seio do qual cantam os Maɨ e falam os Anĩ, o xamã efetuando a alternância), e os cantos de cura

ĩmone nos quais “o doente escuta sua voz através do xamã que veio visitá-lo”  (Heurich,

2015: 20, 36, 268-269). O autor justifica a distinção entre este dois gêneros a partir do critério da forma poética, mais igualmente na medida em que se encontra nesta distinção uma replicação de outras formas de distinções ou relações — tais como aquelas entre componentes da pessoa, ou ainda entre os deuses Madadi, mulheres e Maɨ, homens, que habitam o Maɨpi (2015:36).

Essa vontade de traduzir, nas classificações desdobradas pelo etnólogo, por recursividade ou replicação as formas êmicas de relações, é retomada no terceiro capítulo desta dissertação. Pelo momento, retêm-se aqui que a classificação proposta por Heurich, como aquela antes proposta por Viveiros de Castro, veicula a uma só vez uma forma de ‘execução’, uma configuração relacional e uma forma poética (tais como suas modalidades citacionais), ou uma relação tornada audível pela sua forma poética.

Sugeri acima que as distinções ligadas à projeção de nossas divisões disciplinares têm a vantagem de tornar estes gêneros de palavras comparáveis de um contexto ameríndio ao outro. Voltando para a tese de Heurich, nota-se que a classificação de palavras conforme critérios composicionais (os quais, neste caso, convergem ou se apresentam também como critérios que podem ser ditos relacionais) pode também participar da comparabilidade das palavras. Como breve exemplo, os marakã hete, que o autor qualifica de ‘intraduzíveis’, estão

sucintamente relacionados aos cantos ‘vazios’ Tikmũ'ũn (cf. Tugny, op. cit), e aos cantos kuikuro ‘sem palavras’ estudados por Franchetto (Heurich, 2015:36) . 29

Nota-se assim que a vacuidade semântica caracteriza outros gêneros de cantos nos mundos ameríndios. É o caso por exemplo dos sekretto kuna, descritos por Sherzer como ‘chaves’ para o controle de ‘objetos’ (cobras, abelhas, tesouras…) e cujos destinatários são os próprios “espíritos” destes objetos. Os sekrettos combinam sílabas sem sentido e palavras de várias línguas, sem no entanto ter um conteúdo referencial e, conforme o autor, evocariam uma ‘magia mística’ através das rimas e dos ritmos que os compõem (Sherzer, 1983:116-117).

Gongora, em sua tese sobre os cantos ye’kwana, retoma também as categorias êmicas de cantos encontrados. A etnóloga associa a diferenciação destes cantos tanto à sua forma — a repetição de versos do “dono de canto” pelos participantes ou a performance de apenas um cantor, a sua diferença de duração, a sua complexidade melódica, o acompanhamento o não de danças, similarmente à distinção proposta por Heurich para o caso araweté, ou ainda de sopro — quanto aos contextos ou ‘eventos discursivos’ no seio dos quais cada uma das duas formas de cantos emerge: os ädeemi são os longos cantos de grandes festivais, enquanto os aichudi por vezes cantados em silêncio, participam de microrituais do cotidiano (Gongora, 2017:151-153). Porém, convêm aqui notar que, devido aos seus aspectos estilísticos e poéticos comuns, a autora não reconhece nesta diferenciação uma distinção estanque entre ‘gêneros’ (ibid:164). Nota-se também que, neste caso, ainda que a autora não considere que haja um equivalente exato da noção ocidental de canto dentre os Ye’kwana, uma outra distinção êmica entre palavras também é mobilizada. Trata-se de uma diferença entre o aichudi ai e’tädö, ‘nomeado no canto’, utilizada unicamente nos cantos (e que a autora associa à noção de ‘fala ritual’, como mencionei anteriormente), e a outra fala, que seus interlocutores consideram como misturada*, associada pela autora ao cotidiano (ibid:313). O critério êmico aqui parece associar-se a uma distinção de língua.

As distinções de categorias ou gêneros de palavras até aqui percorridas apresentam caracteres singulares: pôde-se reconhecê-las como fundadas sobre (ou associadas a) uma dimensão agentiva das palavras, uma forma poética ou de execução, ou ainda uma forma

Os ‘cantos vazios’, ou kutex kopox, são uma classificação êmica entre os Tikmũ'ũn que podem ser associados

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aos Po’op, ou aos Xũnĩm (ver supra). Trata-se de uma categoria contrastada com os cantos que contam uma história (Tugny, 2011:156) e é também o nome dado apenas às sílabas que finalizam cantos ou sessões. Os Tikmũ'ũn sempre conseguem reconhecer a associação entre cantos vazios e a imagem que os canta (remeto o leitor ao segundo interlúdio, no qual a questão da interpretação destes cantos é tratada com um pouco mais de fôlego).

relacional composta pelo evento das palavras. Sobretudo, estas diferenciações de gênero entretêm relações variáveis com distinções êmicas entre palavras. Quando os modos de diferenciação êmicas de palavras contam mais no processo interpretativo e de diferenciação ética dos etnólogos, as relações entre estes diferentes critérios de distinção — como espero ter conseguido sugerir através, por exemplo, do caso araweté, e pela apresentação de graus variáveis de relação entre os gêneros distinguidos nos contextos ameríndios e por seus intérpretes — parecem intensificar-se, compondo uma indistinção dos critérios de diferenciação. .

Estes modos êmicos de diferenciação de palavras, no que participam de configurações de mundos ou são deles componentes, por assinalarem sobretudo diferenças que contam para aqueles que dizem, cantam, entoam ou murmuram estas palavras, constituem assim tanto uma chave de acesso ao estudo de epistemologias ameríndias, quanto posições a partir das quais é possível se envolver na descrição de mundos.

*

Abordo aqui uma última estratégia de classificação de gêneros encontrada na interpretação de palavras ameríndias. Estes critérios podem ser ditos temáticos ou formais, no que se referem a esquemas narrativos ou personagens míticas recorrentes e que concernem ao conteúdo das narrativas, a saber, a história contada.

Déléage observa que a relevância deste critério de classificação, que permitiria diferenciar, no caso sharanahua, entre narrativas ‘escatológicas’, narrativas de canibais ou narrativas fundadas sobre um mal entendido linguístico (entre muitas outras), é apenas analítica. Ele propõe, portanto, destacar somente duas destas “catégories formelles, c’est-à- dire fondées sur la récurrence d’un schéma narratif dont au moins un épisode clef est explicitement identique”. Uma dessas categorias reúne portanto narrativas nas quais ocorre uma aliança de um não-humano e de um humano, e a outra categoria junta narrativas onde se encontra o episódio da aplicação sobre os olhos do protagonista da seiva de uma folha (2005, 119-124; 2009:59-65). Para o autor esses dois ‘gêneros’ dão relevo aos “fondements élémentaires de l’ontologie de l’univers mythique et de ses protagonistes”:

Le phénomène de la transformation d’un non humain en humain permet de thématiser la catégorisation anthropomorphe par défaut qui fonde l’ontologie propre aux ancêtres. Et le changement de perspective, corrélatif d’une transformation de l’univers référentiel des mythes, permet de thématiser le fait que l’ontologie des mythes résulte d’une modélisation analogique prenant pour référent une perspective ‘humaine’, c’est-à-dire celle de l’univers quotidien des Sharanahua (2005:123).

O primeiro motivo é o lugar de uma transformação ontológica do protagonista, o segundo provoca uma mudança de perspectiva ‘sobre o entorno’ do protagonista. O autor nota que o ‘rapport entre perception (épistémologie) et univers référentiel (ontologie)” (2005, 123, nota 240, 2009:63, nota 14) não parece ser abordado pelas narrativas, impedindo, portanto, decidir se não é apenas a percepção ou o universo mesmo que se transforma. É de fato possível sugerir que estes episódios ditos “pivots”, mobilizados como critérios de diferenciação pelo autor — e que ele reconhece como freqüentes nas mitologias amazônicas — constituem o lugar de duas (trans)formas que poderíamos considerar também como típicas do esquema conceitual chamado de multinaturalismo perspectivista. Pode-se notar que, no seio deste aparelho teórico, os dois episódios constituiriam o lugar de passagem de uma natureza ou realidade para outra, ou dos efeitos do seu encontro, ambos ligados a uma passagem entre perspectivas: enquanto isso é aparente no segundo motivo, o episódio da aliança de um humano com um não-humano, por seu turno, também apresenta os mal-entendidos associados ao encontro, isto é, os equívocos provocados pelas duas posições humanas respectivamente situadas em naturezas distintas. Déléage reconhece que esses dois ‘gêneros’ míticos, baseados num critério de diferenciação ética, ainda que se leve em conta as similaridades que os compõem, não constituem gêneros explícitos para os Sharanahua (2005:119-123; 2009: 59:63).

Espero poder tornar mais aparente este ‘valor analítico’ das classificações temáticas e outros critérios narrativos, e uma vez mais, apreciar o valor do estudo de distinções êmicas, por uma nova excursão na etnologia norte-ameríndia no exemplo que segue.

Judith Berman (in Swann, 1992), descreve, dentre a categoria ‘etnoliterária’ Kwagul

nuyəm que ela traduz por ‘mito, tradição, história’, três subdivisões êmicas encontradas. A

subdivisão é aqui temática e se associa às personagens apresentadas nas narrativas. Uma primeira subdivisão reúne os nuyəmil ou “house-stories” (tradições na casa*), também ditas

nuyəmbalis ou ‘stories from the (beginning-)end of the world’. Estas são detidas (‘owned’) por

um grupo de descendência e descrevem a obtenção, por um ancestral, de nomes, cocares (‘crests’) e privilégios anteriormente possuídos por um ‘espírito’. Uma outra subdivisão, da qual não se sabe se é nomeada, põe em cena os núẋniḿis ou ‘story people’ (seres animais), na fronteira “entre a forma humana e animal”, e o surgimento de elementos que ornamentam distintas gentes: o vento, os peixes, o ciclo das marés, etc. Estes dois “subgêneros”, ambos munidos dos seus componentes etiológicos, apresentam processos opostos na cosmogonia Kwagul: as histórias de animais apresentam mudanças, o surgimento

de estados de existência anteriormente inexistentes, enquanto os nuyəmil descrevem a aquisição de objetos e privilégios preexistentes e participantes da continuidade de um grupo. Uma terceira subdivisão reúne as histórias de Q̉ániqiĺax, personagem responsável pela ordem atual das coisas. Q̉ániqiĺax tem como objetivo dar fim à ‘idade dos mitos’ e às suas incessantes permutações através dos seus múltiplos encontros com os ancestrais de grupos de descendência e as gentes-animais. No entanto, tal personagem jamais alcança sua missão e a ‘idade mítica’ persiste na floresta ou no mar, nas aldeias das gentes-animais (Berman, in Swann, 1992:148-149).

O estudo das classificações êmicas de narrativas Kwagul não se reduz a uma operação vã de ordenamento e categorização, mas pode servir de instrumento metodológico na compreensão e interpretação das artes verbais. Pode-se frisar que as três subdivisões Kwagul compõem entre elas uma notável tríade estrutural (no seu sentido fraco). Enquanto as histórias das gentes animais são atravessadas pela transformação, aquelas dos ancestrais