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2 ‘For mas de arte’

2.4. Efeitos transdutórios

Em todas as suas falas aos brancos e aos representantes da sociedade nacional, as vozes dos Tikmũ'ũn chegam inaudíveis. E no entanto ganharam mais que uma vez o epíteto de “o povo do canto”. Curiosa e drasticamente, o fato de cantarem tanto os tem feito permanecer em algum lugar construído secularmente em sua relação com os brancos, onde nada que enunciam possa de fato ter valor. Enquanto cantam cumprem pacificamente sua função de “povo” e, ao mesmo tempo, de povo tradicional. Enquanto cantam prosseguem como um povo incapaz de enunciações racionais, válidas, já que não é pelo canto que se veicula o conhecimento sobre o mundo entre as populações urbanas. […] Embora não escute propriamente os seus cantos, o único destino de enunciação que lhes é reservado pela sociedade nacional é o de cantar (Tugny, 2011:xxiii).

Este contorno não exaustivo e pouco equilibrado das analogias entre palavras ameríndias e terminologias ocidentais não serve aqui para decidir a qual forma de arte aquelas poderiam ser amarradas. Quis aqui, mais bem, sugerir o quanto uma tal transdução participa, muitas vezes, de outras intenções e depende de critérios singulares e situados. É notável também que uma associação não restringe a possibilidade de estabelecer outras. Para Bringhurst, por exemplo, a história contada pelo narrador haida Gandl é a uma só vez um ‘poema’, um ‘trabalho literário’, e uma peça de música falada ou ‘spoken music’ (Bringhust, 1999:62). Essas associações, pelo jogo de diferenças e continuidade que elas implicam, transformam, pelo menos nos textos, as palavras que elas vêm qualificar. Através dessas associações também essas palavras devêm componentes possíveis de outros mundos e das suas configurações, implicando que, de certo modo, sejam para elas imaginadas outras funções, outras existências. Ainda que muitas vezes, em menor medida, estas associações desloquem ou pelo menos permitam que os próprios conceitos aos quais foram associadas as palavras levadas possam, por sua vez, encontrar-se afetados. Como tentei sugerir nestas linhas, de todo modo elas participam estreitamente das escolhas que os intérpretes efetuam nas suas propostas tradutórias e interpretativas.

A história das traduções das palavras norte-ameríndias e dessas analogias pode permitir aqui desenhar uma reserva, bem como uma distinção, que ressurgirá no decorrer deste escrito.

Clements, num ensaio sobre as traduções euro-americanas de artes verbais norte- ameríndias do século XIX, descreve os modos pelos quais emergia então a ideia de uma responsabilidade dos ‘fazedores de textos’ (‘text-makers’) brancos de “moldar a pré- literatura [ameríndia] numa verdadeira literatura” (Clements, in  Swann, 1992:40). Os pressupostos evolucionistas que motivavam os ‘simpáticos’ tradutores, a ideia de que uma

ajuda civilizadora faria das artes verbais uma literatura, suscitou portanto numerosas ‘traduções’, próximas do fenômeno das Belles Infidèles francesas , já que se fundamentavam 24

numa ideia etnocentrada, mas também temporalmente situada, do literário. Em contraste, as poucas traduções utilizadas contra a causa indígena, como demonstrações da selvageria irresolúvel dos ameríndios, puderam, como sublinha o autor, ‘ironicamente dar lugar a textos mais confiáveis (ibid:43).

Numa etnologia mais recente, descrevendo a contiguidade entre o que se canta e o que se come entre os Tikmũ'ũn, Tugny, — partindo de um estudo de Tomlinson —, lembra como Montaigne, ao associar os cantos dos cativos e guerreiros tupinambá à poesia, recusava a própria eficácia dos cantos (sua participação na troca de carne humana), esses sendo “bagatelas agradáveis” que viriam se opor ao “horror bárbaro” do canibalismo.

No início desta parte, Tugny (2011) descreve também como a expressão “povo do canto” empregada comumente pelos Brancos para designar os Tikmũ’ũn, indica paralelamente a surdez dos Brancos diante o que os Tikmũ'ũn dizem. A autora propõe interpretar esta surdez dos Brancos através de uma bifurcação mítica do Ocidente. A medida que se sucederam interpretações da Odisséia, as sereias homéricas, que se distinguiam por serem detentoras de um conhecimento inacessível aos mortais, se tornaram apenas seres que cantam : conservaram sua voz, e perderam sua palavra.

Assim como celebrar uma literatura não compõe necessariamente traduções menos etnocentradas, chamar poesia os cantos tupinámba não captura o que eles fazem. Da mesma forma, nomear ‘canto’ as palavras emitidas pelos Tikmũ'ũn não faz com que se saiba como escutá-las, e isto particularmente quando os ‘cantos’ são comida e, a sua escuta, comensalidade.

Se a questão dos pressupostos evolucionistas descritos por Clements parece hoje tomar contornos variáveis (como assinala o estudo de Tugny), destas ilustrações dos efeitos transdutivos que decorrem da associação das palavras a tais noções emerge uma distância saliente: aquela que se estende entre intenções e efeitos do ato de tradução. A ideia de um “fazedor-de-textos responsável” — emblematicamente apresentada pela citação de Mrs.

As Belles Infidèles constituem traduções efetuadas nos séculos XVII e XVIII, na França. Fundamentadas na

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ideia de uma superioridade da língua francesa em clareza e universalidade, privilegiavam alterações em nome de um melhoramento dos textos. Nota-se também que ideias semelhantes atravessavam as práticas tradutórias na Inglaterra no século XVIII. É interessante lembrar, com Meschonnic (1999: 53-57), que a expressão “Belle Infidèle” aparece em 1646 para se referir ao apagamento das repetições numa tradução, escolha tradutória ainda vigente em numerosas traduções atuais (de palavras ameríndias inclusive; Cf. por exemplo, Déléage, 2005).

Kirkland à qual recorre Clements : “They indeed, live poetry; it should be ours to write it out for them” (ibid:40) — se desdobra hoje necessariamente de outro modo.

O que poderia significar hoje ser um “fazedor-de-textos responsável”? E, diferentemente, como a tradução poderia compor uma capacidade de resposta? Enquanto o debate, mesmo que inacabado, entre incorporação ou apropriação e restituição parece ter- se deslocado ou, pelo menos, complexificado na área da etnologia, a questão de uma tensão inevitável entre acessibilidade e fidelidade (ou autenticidade conforme os termos de Krupat, in Swann, 1992), tanto quanto aquela do por que traduzir, e consequentemente, as implicações éticas do traduzir, persistem e se reinventam com o tempo. Estas questões reaparecerão mais adiante.