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O refrão-caminho

Canto 2: Tiñaradɨdo/Iapi'ido Ko koooo


4. A tradução como objeto

4.1. De uma ciência da tradutibilidade

A tradução conceitual, tal como descrita no artigo programático de Viveiros de Castro, explicitamente experimentada por Marisol de la Cadena, realizada no trabalho de tradução de Cesarino e presente de maneira mais implícita em outros autores, implica a necessidade de interrogar os marcos conceituais a partir dos quais se efetua a tradução ou comparação. Pode-se contrastar esta implicação, alcunhada de ‘reembaralhamento de cartas conceituais’ por Pinheiro Dias (2017:154), com a discussão proposta por alguns trabalhos igualmente recentes, que parecem tomar como contraponto a proposta onto-

epistêmica de Viveiros de Castro e discutir o papel da tradução na teoria e no método 72

antropológico.

Hanks e Severi, na introdução de um dossiê especial da revista Hau intitulado Translating

Worlds (2014), propõem assim observar os diferentes lugares da tradução na disciplina, e

destacam sua ubiquidade, levantando a necessidade de repensar alguns de seus contornos. Para os dois autores, a noção de tradução é concebida em três sentidos distintos na disciplina antropológica: 1. um método para revelar a diferença (e as similaridades), 2. a

interpretação cultural que se pode associar àquele primeiro método e, 3. ser um objeto de

estudo, de modo que a tradução, então dita intra-cultural ou endógena, passa a fazer parte de práticas ordinárias. Quando o método se torna objeto de reflexão, como o assinalam os dois autores, a tradução também pode ser um lugar de observação das relações de poder e autoridade, conforme o exemplo dos trabalhos de Asad e da antropologia pós-moderna. Depois disso, a tradução deixa de ocupar o foco central nas discussões antropológicas até ser reabilitada por Viveiros de Castro e, mais recentemente, por Hanks e Severi que, não por acaso, rebatizam a antropologia como uma ciência da tradutibilidade. A proposta parece ambiciosa, na medida em que projeta uma ciência de pleno direito.

Enquanto primeiro contraste entre as duas propostas, é notável que, enquanto todo um

espaço epistemológico da tradução de mundos se desenha no escrito de Hanks e Severi, era antes a

dimensão ética que tecia a proposta — apenas aparentemente menos extensa — do método do equívoco controlado, dimensão esta que aí desaparece . 73

A proposta de Hanks e Severi de criar um espaço epistemológico da criação de mundos descarta, entretanto, a dimensão ética originalmente presente no projeto da equivocidade controlada de Viveiros de Castro. A ciência da tradutibilidade de Hanks e Severi, mais

A questão ontológica na proposta de Viveiros de Castro faz parte de um debate inacabado. Se seguirmos 72

Strathern (2011), a antropologia perspectivista pode ser apenas uma transformação epistemológica, ao passo que o esquema do perspectivismo ameríndio poderia certamente ser chamado de ontológico. Este contraste é primeiro em mais de um sentido. Que as propostas de Viveiros de Castro sejam levadas

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por considerações éticas e políticas é algo que pode ser associado a uma história brasileira da antropologia e da etnologia, que Almeida reconhece como historicamente ancorada numa etnografia militante (2004). Não se poderia, sem então exagerá-la, afirmar na história e no presente da etnologia francesa ou europeia uma dimensão militante comparável (e me permito aqui isolá-la da chamada antropologia do próximo, urbano como rural). Se houve alguma (que mereceria mais atenção), era aquela alcunhada de anthropologie

paris-septiste que gravitava em torno da figura de Jaulin, e que foi (ao menos institucionalmente) sacrificada,

enquanto o estruturalismo ganhava uma amplitude hegemônica. Os trabalhos e trajetórias particulares de certos antropólogos franceses matizariam prontamente esse argumento (é o caso notadamente de Bruce Albert). É possível que alguma outra coisa, mais concreta, mantenha tal posição entre os etnólogos brasileiros (como os antropólogos franceses, cuja dimensão política é mais notável quando estudam o próximo); algo que uma falante oriximiná pôde apontar com simplicidade em uma conferência (apresentação de Entre águas mansas e águas bravas, 2016): a relação com o Estado.

ainda, não pretende pensar a partir dos mundos descritos pelos ameríndios mas sim a partir dos processos de cognição implicados nas formas de tradução da antropologia.

A ciência da tradutibilidade é ali apresentada como alternativa ao debate entre ‘ontologistas’ e ‘cognitivistas’. A crítica à proposta ‘ontologista’ subsumida pelo trabalho de Viveiros de Castro está centrada no que os autores consideram como uma incapacidade em pensar as « zonas cinzentas » situadas entre perspectivas ou modos de existência, zonas de ‘mistura ou gradação ou passagem entre sistemas’. Pode ser interessante assinalar que os escritos que se propõem a desdobrar a proposta de Viveiros de Castro de uma tradução

conceitual apontam a inadequação recorrente dos conceitos ocidentais de mistura e de switching (ou de substituição) para pensar os mundos ameríndios. Pode-se igualmente notar

hoje que o pensamento de ontologias instáveis e emergentes, reconciliando a história com uma ‘antropologia ontológica’ encontra um desenvolvimento maior no trabalho de De la Cadena (op. cit). A reflexão etnológica dos ‘ontologistas’ a respeito das ditas zonas cinzentas apresenta também, e em vários níveis, uma reflexão sobre a tradução, notadamente em torno de suas falhas, impossibilidades ou de sua recusa . Se já durante a sua publicação 74

emergia toda uma literatura etnológica voltada para essa questão (que se trate dos escritos em torno da contra-mestiçagem de Goldman ou da antimestiçagem de Kelly, por exemplo), o fato de que não seja levada em consideradação por Hanks e Severi deve-se talvez a uma geopolítica da tradução no interior da própria antropologia, que pode eventualmente virar um obstáculo à apreensão, pelos dois autores, do âmbito e da extensão dos escritos dos ‘ontologistas’ latino-americanos.

Não penso que seja necessário levar mais longe o exercício de resposta a uma crítica que parece (mais do que aquela destinada aos cognitivistas) melhor associada às exigências da distinção da publicação do que ao teor mesmo dos trabalhos endereçados.