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A tradução conceitual nas traduções de palavras ameríndias

O refrão-caminho

Canto 2: Tiñaradɨdo/Iapi'ido Ko koooo


3. Da prática da falha

3.3. A tradução conceitual nas traduções de palavras ameríndias

Não existiu uma criação do mundo e acabou! Todo instante, todo momento, o tempo todo é a criação do mundo. (Krenak, 1996).

As soluções tradutórias de palavras ameríndias propostas por etnólogos constituem assim um dos lugares privilegiados para observar escolhas concretas decorrendo do parti-

pris de uma tradução conceitual. Se pude observar algumas de maneira esparsa e menos

explícita ao longo deste escrito, proponho aqui estudar dois exemplos mais próximos da proposta de Viveiros de Castro, dado que concernem efetivamente a uma tradução semântica: as escolhas de tempos gramaticais e a construção de palavras duplicadas e neologismos.

Em Quando a terra deixou de falar, cantos da mitologia marubo (2013), Cesarino opta por uma tradução no presente das narrativas marubo. Os cantos saiti não apresentam uma marca definida do tempo, mas o conjunto das narrativas saiti ocorre num ‘passado longínquo ou narrativo’ que se refere aos tempos do surgimento (waníatiã), como indica o uso do morfema -ti- inserido numa fórmula no início da narrativa (veõini otivo, “há tempos flutua”) (2013:47). O autor colhe uma excepção, durante sequências de ações onde o desenrolar de eventos pode ser assinalado pelas marcas do passado imediato. O emprego único da fórmula no começo da narrativa e a ausência seguinte de marcas temporais, conforme os termos do autor, faz com que “tudo se passe como se a cena narrada acontecesse em um presente suspenso, em uma espécie de janela aberta para a audiência através da qual se torna possível visualizar os acontecimentos que se passam no interior da temporalidade narrativa ou remota” (ibid).

A escolha de traduzir no presente as narrativas saiti equivale, assim, à maneira pela qual os narradores marubo utilizam seus próprios marcadores temporais para produzir uma suspensão temporal no presente de suas narrativas. Nos termos de Cesarino,

[…] mito não corresponde a um passado congelado, mas a uma virtualidade passível de se atualizar a cada instante. O que chamamos de ‘mito’, entre os Marubo e tantos outros povos ameríndios, não se refere portanto a um arcabouço de histórias presentes apenas na memória dos narradores, mas a um “contexto comum de intercomunicabilidade idêntico ao que define o mundo intra-humano atual” (Viveiros de Castro 2002: 354). (2008:412-413)

Lima Stolze escolhe traduzir a epopeia de Senã’ã igualmente no presente, mas desta vez, divergindo dos Yudjá cujas narrativas estão enunciadas no passado (2005:47). A autora

“Panãki asnimaĩnõ Wa yoraraosho Iki kavi a yama”

“É mesmo Árvore
 Mas aquele corpogente Conosco não parece”

Wenía, Cherõpapa, trad. Cesarino

destaca que se trata de entender “quando, no mito, o que está em questão para as pessoas é um tempo eternitário” (ibid). A singularidade do tempo das narrativas e dos conceitos de tempo que lhes são associadas é uma observação recorrente na etnologia dos mundos ameríndios. Já notada por Lévi-Strauss acerca do caráter atemporal do pensamento selvagem, onde “a história mítica oferece o paradoxo de estar ao mesmo tempo disjunta e conjunta em relação ao presente” (1962:282), o tempo das narrativas Piaroa, com Overing, é descrito como um tempo onipresente que afeta continuamente o real de maneira imprevisível, dado o poder de agir dos seres dos tempos míticos sobre o presente (1995:134). Esta imprevisibilidade e o poder vingador dos seres do tempo antigo é precisamente a razão do papel do ruwang (1990:608). A etnologia descreve o tempo mítico Piaroa como um período que compreende o tempo e o espaço to’pu, o before time, uma dimensão absolutamente distinta do presente que se refere ao antes (ou seja o tempo e a organização das coisas antes da ruptura mítica) mas não ao passado, sendo assim traduzido como antes do tempo (ibid:607). Com Overing (1995), um tal conceito de temporalidade afeta a percepção, ou a experiência do tempo (‘como se vivencia’), à diferença dos argumentos positivistas de um Gell, que reconhece apenas uma experiência supostamente universal do “tempo objetivo e unitário”, apesar de suas representações culturais diversas.

Partindo das concepções yawalapiti sobre suas práticas e eventos míticos, Viveiros de Castro concebe a temporalidade mítica como inacabada, como um infinitivo que orienta e justifica o presente:

Assim, o mito não é apenas o repositório de eventos originários que se perderam na aurora dos tempos; ele orienta e justifica constantemente o presente. A geografia da região é pontilhada de sítios onde ações míticas se desenrolaram; as cerimônias se explicam pela iniciativa de seres míticos (“foi Sol que abriu festa”); o mundo é povoado de seres imortais que remontam à origem do mundo; os criadores da humanidade de alguma forma ainda vivem no Morená. Na verdade, o tempo mítico não é apenas, ou essencialmente, uma esfera localizável na cronologia. O mundo perfeito do mito se declina, por assim dizer, no pretérito imperfeito, ou em uma espécie de aoristo (tempo verbal indo-europeu sem limite, uma espécie de infinitivo). Os seres umañí estão aí sempre, semi- desencarnados, tornados categorias; a ação dos homens replica a ação dos modelos. O mito existe como referência temporal, mas, acima de tudo, conceitual (Viveiros de Castro, 2002 [1977]:68-69).

Dennis Tedlock assinalava também como, no Popol Vuh, o caráter ideográfico da língua e o uso de fórmulas como ‘This is’ suscitam imagens acrônicas que introduzem o evento mítico (Tedlock,1985:31). O tradutor que buscasse expressar o sentido do tempo narrativo se confrontaria, segundo Tedlock, com toda uma reflexão sobre as maneiras de pensar as

relações entre dualidades do mundo Quiché. No caso meso-ameríndio (remeto aqui à discussão a respeito dos cronotopos de Navarette, 2004), mas também nas terras baixas (como no caso dos ‘lugares’ da terra sem mal dentre os Mbya, cf. Pierri, 2013), o tempo da narrativa pode ser refletido numa dimensão espacial.

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Dentre outras soluções tradutórias que decorrem de uma tentativa de controlar o equívoco que se desdobra no jogo de linguagens conceituais divergentes, encontra-se aquela dos neologismos e, particularmente, das palavras duplicadas. Quanto ao tempo, Tedlock já propunha o termo mythistory para referir-se à forma de temporalidade apresentada no Popol Vuh (Tedlock,1985:64). Nos trabalhos de Cesarino, desta vez não mais em relação com o tempo, as palavras duplicadas na maior parte das vezes são aquelas que remetem aos conceitos de corpo e de pessoa, ou ainda a gêneros de palavra. Assim, os

saiki, gritos formalizados, são traduzidos como gritocanto (2008:411-412), o corpo do xamã

que também é uma maloca para os seus duplos (os duplos tem um corpo e o corpo ou carcaça do xamã é sua maloca), vira corpomaloca e, para a forma de pensamento chinã, que possui uma referência espacial “na qual reside a coletividade de duplos habitantes da pessoa marubo, responsáveis, em larga medida, pela performance intelectual da pessoa que os abriga”, o autor propõe o neologismo peitopensar (2008:29). As relações de convertibilidade entre o corpo e a maloca e a dinâmica de replicação que Cesarino elucida no pensamento marubo inspiram Gongora (2017:357-362) na sua etnografia sobre os Ye’kwana, que compõe outro neologismo para a forma kätäädemijhaato, por ela traduzida como casacantar. Com isso, ela pretende tornar explícitas as relações implicadas no termo ye’kwana e os pressupostos conceituais (que associam, de maneira análoga aos Marubo, a casa e o corpo).

Já pude mencionar antes como a criação de palavras duplicadas não é usual na tradução das palavras ameríndias. Trata-se de um recurso privilegiado dos transcriadores da poesia concreta, tais como Haroldo de Campos — como nos exemplos fogoágua e

céufogoágua empregados no Bere’shith e por ele qualificados de pictogramas etimológicos

(2000:27) —, e sua composição pode ser alternativamente ou simultaneamente associada a uma hiperliteralidade (onde a etimologia do termo fonte é transportada pela transcriação) ou ao esforço de tornar a tradução portadora do campo conceitual ao qual o termo remete. Dentre as palavras duplicadas compostas por Cesarino (aliás, inspiradas nas soluções dos irmãos Campos), uma delas merece mais atenção: trata-se de corpogente, que traduz o termo

marubo yora. Numa tradução do Wenía, também uma narrativa cantada saiti, Cesarino descreve os diversos sentidos de yora e seus usos:

Yora, em primeiro lugar, quer dizer corpo, tal como o tronco de uma árvore ou

de uma pessoa, além de designar também um sentido mais restrito de corporalidade, que define um corpo propriamente humano ou similar (yora iwi, por exemplo, são árvores tais como mulateiros e goiabeiras, que se assemelham à nossa musculatura), até que se refira mais especificamente à “gente”, ou seja, a uma pessoa ou sujeito capaz de viver em parentesco e de cantar (noke-pa yora [1pessoa plural-comparativo; gente], por exemplo, é o termo que os Marubo usam para se referir aos povos similares a eles, por oposição aos nawa, ou estrangeiros). É esse sentido final que o neologismo “corpogente” pretende traduzir. Ora, xamãs, ou pajés, são sobretudo gente, embora gente não seja sobretudo o que concebemos como humano... Daí a referência, na tradução, a Açaí como pajé (verso 437): uma gente-árvore capaz de cantar (Cesarino, 2018:73).

A forma de composição de neologismos aqui privilegiada é aquela que cabe à carga conceitual do termo fonte. O que é interessante com o neologismo corpogente é que ele agencia dois termos que se tornaram, no seio da etnologia brasileira das últimas décadas (e notadamente desde o artigo pivô de Da Matta, Seeger e Viveiros de Castro, 1979), quase sinônimos. Poder-se-ia justificar a permanência na etnologia da distinção entre corpo e gente como uma tentativa de lidar com as dicotomias ocidentais tais como corpo/espírito e pessoa/indivíduo (seguindo uma ideia de Gallois em comunicação pessoal). O neologismo de Cesarino, que se associa à versatilidade lusófona do termo gente (ao mesmo tempo pronome da primeira pessoa do plural e nome para “pessoa”), e ao termo corpo contorna precisamente as associações comuns para o leitor ocidental. Afasta-se assim igualmente de uma distinção de escala conotada pelos termos de corpo e pessoa (entre composição ou parte da pessoa e pessoa como parte de um grupo). O neologismo remete, portanto, à dimensão fractal da pessoa marubo estudada pelo autor. Embora parta da singularidade etnográfica marubo, o termo contorna as dificuldades encontradas pela evocação, na etnologia das terras baixas, da etnografia da Melanésia.

Num artigo sobre os desafios encontrados na tradução dos termos Ticuna, Matarezio (2014) aproxima certos termos ticuna de uma noção de intraduzível apresentada por Franchetto. Cada um destes termos intraduzíveis (tais como aqueles que se traduz recorrentemente por ‘alma’, ‘corpo’, ‘duplos’) “evoca uma inteira cosmologia, apreensões do que é vida, morte, corpos. São categorias ao mesmo tempo salientes e, para nós, aparentemente vácuas, tradução inalcançável” (Franchetto, 2012:49). Matarezio propõe, em dois exemplos, compor palavras duplicadas, tais como o ‘pensamento-ação’ (ngümawa),

referente à forma de pensamento dos encantados (tradução igualmente discutida pelo autor) que efetua o que é simultaneamente pensado, ou a ‘melodia-ritmo’ (wüigu) que reúne tudo que é cantado pela voz, à excepção das palavras. É digno de nota que a composição de palavras duplicadas e neologismos, tanto em Matarezio como em Cesarino e Campos, tem isso de particular, ou seja, de ser acompanhada sempre de um comentário, de uma “edição crítica” e “súmulas etnográficas” para tornar-se “séria”, como no argumento de Franchetto (ibid).

Outra forma de composição de neologismos em etnografias recentes pode ser também encontrada. Ela se caracteriza pela hibridação das duas linguagens implicadas na tradução. É o caso por exemplo da proposta de Gongora de estudar o que ela alcunha origin-adai-dade (2017:305), onde o conceito de ‘origem’ ye’kwana adai, está incrustado no termo português. O conceito adai ye’kwana não pode ser reduzido a um pensamento da autenticidade, da tradição ou da pureza, mas implica um gradiente entre polos relativos marcados pela horizontalidade (um eixo cabeceira-jusante), como “posicionamento de si e de outrem em relação a Yujudunnha, o centro do mundo”, centro que não é único mas infinitamente replicado em suportes diversos. Assim, a composição do neologismo é principalmente aqui contrastiva: trata-se na tradução mesma de dar conta da diferença equívoca emergindo do homônimo (adai: origem) com o fim de desdobrar o equívoco depois. Perseguindo a analogia cara a Viveiros de Castro, tais soluções compõem uma linguagem antropológica torcida, à semelhança das palavras torcidas dos cantos xamânicos, mas com o fim de fazer emergir, à diferença da proposta de Rothenberg estudada no interlúdio anterior, não mais uma perda de sentido, mas sua divergência com relação ao nosso.