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O refrão-caminho

Canto 2: Tiñaradɨdo/Iapi'ido Ko koooo


3. Da prática da falha

3.1. Cantos, brechas, esporos

Gross, no seu pequeno herbário da tradução, se arriscava em desenhar como imagem final aquela de uma ‘artimanha mais comumente falida’ (Gross, in Larson, 2008). Pensar o equívoco abre o possível no que é normalmente fracasso, falha, fissura na tradução. A poética, ela também, potencializaria precisamente o equívoco: quando designado como ambiguidade, vira (mais do que a versificação e integrando suas figuras mais comuns) algo constitutivo da linguagem poética de acordo com Empson, permitindo um estado de oscilação. Nisto, uma tal antropologia, como a tradução, se juntaria com a poética.

O “entre” por ser apenas o lugar da tradução, nos diz Cassin, é político, e se reteritorializa nas vidas nas

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bordas da ‘selva de Calais’. Dos sofistas gregos ao campo de Calais, Cassin efetua um salto alto (onde o teatro da nação arco-íris pós-apartheid talvez não traga todas as pistas que se esperariam num elogio da tradução). A vontade de traduzir contra os nacionalismos linguísticos e de complicar o universal advindo com o globish, de propor que a ‘tradução é para as palavras o que a política é para os homens’ (2018), aparece bem leve frente à situação (o massacre perpetrado pelas nações e, agora, por civis europeus nas suas fronteiras terrestres e marítimas) que a acadêmica de casaco verde pretende denunciar. Para além desta leveza insustentável, pode-se assinalar que esta figura do entre para um pensamento antinacionalista não é inovadora e pode até aparecer como um eco empobrecido dos escritos de Bhabha, que em vez de terminar com elas, como cerejas da ética à l’académicienne française, partia das vidas de fronteira. Veja-se, por exemplo um extrato do autor: “the theoretical recognition of the split-space of enunciation may open the way to conceptualizing an inter-national culture, based not on the exoticism of multiculturalism or the diversity of cultures, but on the inscription and articulation of culture’s hybridity. To that end we should remember that it is the ‘inter’ — the cutting edge of translation and negotiation, the in-between space — that carries the burden of the meaning of culture. It makes it possible to begin envisaging national, anti- nationalist histories of the ‘people’. And by exploring this Third Space, we may elude the politics of polarity and emerge as the others of our selves” (1994:38) Bhabha pensava os rapports entre culturas, e estes, desde a situação colonial, ausente gritante do pensamento de Cassin. Lamenta-se que o dicionário dos intraduziveis seja, ainda, europeu.

Escrevi acima que a infinita replicação do equívoco no seio da articulação teórica que se propõe em habitá-lo parece nos convidar a pensar com a diferença da forma das linguagens conceituais que o antropólogo procuraria ‘traduzir’. Como incursão intermediária, com o fim de introduzir o que segue, que se afasta deste pensamento da fissura e de formas recursivas para abordar escritos de uma antropologia como tradução e da

tradução, proponho uma breve passagem por um pensamento da tradução que parte do

equívoco e do meio, embora distante dos mundos ameríndios. Se o elo tecido parecerá atar-se apenas por uma das pontas, espero ao menos que o exemplo aqui escolhido permita destacar o quanto uma tal forma de teoria da tradução implicaria diferenças infinitas nas práticas.

Das linhas precedentes, depreendemos que é — mais do que a ideia de uma antropologia como tradução — a emergência de uma reflexão que parte do equívoco tradutório que aqui ganha uma ênfase.

É importante reiterar que pensar as ciências como tradução não é coisa nova. Ana Tsing destacava assim, o quanto a Actor-Network-Theory desenvolvida por Latour e Callon, por exemplo, que também foi chamada de sociologia da tradução, pôde colocar em relevo as contribuições da tradução para os aspectos maquínicos da ciência (2015:217). De fato, é mesmo no que propicia a criação de um sistema unificado de saberes e práticas que o repertório da tradução foi inicialmente empregado por Callon (1986). Tsing, por sua vez, convida a pensar as traduções da ciência como desordenadas, desastradas, produzidas nestes cantos de criação, cantos  [patches] de incoerência e incompatibilidade, lugares de 71

incomunicação e justaposição, à maneira de ecologias emergentes (2015: 218). Entre e dentro destes cantos, se estendem brechas [gaps], espaços conceituais e reais no seio dos quais potentes demarcações não viajam desembaraçadamente (2005:175). Considerar estas rachaduras é, assim, levar em conta o que, num pensamento da tradução tal como aquele de Callon e Latour, não consegue contar (Stengers, 2002): as pessoas faltantes na aliança que parece constituir uma conferência científica (Tsing, 2015: 224), a rica história das ervas daninhas na vida de uma floresta (Tsing, 2005:176). Tanto nas florestas quanto nas ciências, Tsing propõe-se pensar com os mundos do matsukake (2015) — um cogumelo silvestre que cresce nas florestas perturbadas pelo humano (e sobretudo pela atividade

Escolhi aqui traduzir patches por canto porque o termo patches pode ser em francês o lugar (le coin) onde se

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encontram cogumelos e, em inglês, empregado também para designar o lugar onde se vive, seu ‘território’. É claro que apesar de etimologias divergentes (aqui sendo aquele canto do lat. canthus, i, m., o arco de ferro da roda), os cantos de cogumelos tem a vantagem no português de ecoarem o assunto deste escrito. Gaps, podem ser por sua vez lacunas, interstícios, brechas, lugares da divergência.

humana industrial). A autora reconhece que, para que emirjam cantos no seio de florestas devastadas, deve-se interrogar o que os ultrapassa e os torna possíveis ao mesmo tempo. Nos mundos dos matsukake são esporos voadores que, como eventos ou pessoas, viajam e se traduzem através de cantos de cogumelos, os shiro de matsukake, produzindo acasalamentos entre tipos e permitindo tanto imaginar uma outra história de espécies tal como dar novas formas às geografias de cantos. Modelando a imaginação da autora, os esporos do matsukake têm a singularidade de poder acoplar-se com partes dos corpos do cogumelos das quais emergem e, ao mesmo tempo, de divergir deste mesmo corpo, carregando assim outra informação genética, oriunda por sua parte dos encontros históricos com árvores, coisas vivas ou não, que formam os interstícios dos mundos do matsukake. Os shiros estão assim compostos por relações e encontros de matsukake e de suas esporas, que ainda que se agenciem numa forma comum, mantêm e elicitam nos seus encontros infinitas diferenças, oriundas das relações e meios que puderam entreter antes e alhures. Para a autora, são estes esporos que nos permitem imaginar formas abertas de comunicação e excesso. Para a aprendiz, há neste pensamento dos shiro a imagem também de outra tradução fecunda para imaginar as operações de tradução da ciência antropológica, de transporte e transformação que, se constituída de incoerências, se compõe simultaneamente por uma ressonância de forma e por uma manutenção das diferenças. Esta ressonância de forma, que parece ultrapassar as operações de equivalência que fariam as traduções pensadas sobre o modelo verbal do significado, parece tecer-se na composição, mais literária ou poética do que analítica, da obra de Tsing.

Inconclusivo, composto por movimentos esporádicos que a antropóloga colhedora dançaria — como dançam os caçadores de matsukake —, sugerindo sem cessar uma história de relações que ao mesmo tempo o constituem e o excedem, o escrito parece improvisar, pensando com o matsukake, uma forma outra de tradução.

3.2. A tradução de palavras ameríndias, viveiro para um pensamento do