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O refrão-caminho

Canto 2: Tiñaradɨdo/Iapi'ido Ko koooo


2. De equívocos

2.1. De uma tradução conceitual, teoria da prática

No caso da etnologia brasileira, a atenção dada aos conceitos ameríndios encontra um dos seus desenvolvimentos teóricos maiores na obra de Viveiros de Castro, que oferece uma redefinição da prática antropológica em termos de uma tradução conceitual ou de

antropologia perspectiva (cf. Viveiros de Castro, 2001; 2004; 2009; 2011). Para mim, o que

fascina na proposta de Viveiros de Castro de uma antropologia como tradução conceitual, mais do que o adjetivo apelativo, é o método que o acompanha, que ele alcunha de equívoco

O equívoco é comumente reconhecido como uma rachadura ou falha da tradução. Decorre da

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possibilidade da ambigüidade ou da pluralidade de sentidos, mas também do problema da multiplicidade da referência atrelada ao significado. Na noção de interpretação mobilizada por Geertz, o equívoco não tem esse papel pivô no que se trata de procurar equivalências e sinônimos, ou seja, o sentido por trás do símbolo, através da descrição cultural.

controlado. Enquanto pensamento da indeterminação e do fracasso como abertura do

possível, a proposta de um método do equívoco controlado dá lugar a este espaço infinito que se desdobra nos caminhos da tradução, e pela mesma ocasião, propõe uma forma, boa para ser pensada, quando a questão da tradução é tratada pelo prisma de sua ética.

Ainda que eu tenha retido aqui o termo ‘tradução’ para as necessidades da escrita, deve- se reconhecer o quanto, delimitando os contornos de seu método, o autor tende a tornar indistintos a comparação e a tradução (cf. Candea, 2016). O antropólogo brasileiro propõe, no fio de seus escritos, uma tradução como operação de diferenciação, que ele descreve por recursividade como análoga ao excesso de interpretação que os xamãs realizam no multinaturalismo perspectivo ameríndio (2004:20). A antropologia perspectiva convida assim a reconhecer no fundamento de toda relação (e notadamente na relação entre o antropólogo e seus interlocutores), um equívoco, ou diferença de perspectiva, que o antropólogo habita, potencializando o intervalo entre jogos de linguagens conceituais em relação, permitindo uma comunicação pela diferença, ou uma travessia e experimentação dos meios conceituais que emergem dos materiais etnográficos que tornam o autrement visível.

Ainda que o autor mobilize diversos teóricos para pensar suas engrenagens (Benjamin, Simondon) , é a configuração recursiva desdobrada que aqui me atrai. O 67

multinaturalismo perspectivista ameríndio, que especifica as coordenadas da transformação entre os mundos dos vivos e mortos, parentes e inimigos, humanos e animais, é um regime

Cabe notar que Silverstein (2003) descreve para as traduções dos antropólogos (e não para a antropologia

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como tradução) uma forma de transdução, o termo ao qual se refere Viveiros de Castro para pensar a tradução conceitual. Entretanto, para o antropólogo estadounidense, esta remeteria à questão da diferença entre sistemas culturais. A metáfora da transdução é, como para aquela de Simondon, aquela da passagem da corrente elétrica. Para Silverstein, a transdução seria uma dimensão ou extensão da operação tradutória que tentaria render não mais o conteúdo denotativo dos termos e expressões da língua de partida (a tradução no seu sentido restrito conforme o autor) mas os pressupostos indexados por ela (que o autor amarra ao domínio do saber cultural normativo). A transdução seria então uma construção da significação indicial dos termos e das expressões da língua fonte utilizada com certo efeito em contexto, na significação da tradução (um tipo de tradução do efeito). Não se trataria para Silverstein de uma descrição do contexto de uso de um termo (muitas vezes preferida nas traduções dos etnólogos), já que tal descrição transformaria o texto-fonte-em-contexto em um ‘objeto de contemplação e caracterização’. O autor dá alguns exemplos das possibilidades de composições de valores indiciais comparáveis para traduções efetivas, mas a transdução, sendo restrita e, na maior parte do tempo, impossível, visto as exigências de comparabilidade que implicaria, termina por fazer das traduções dos antropólogos necessariamente transformações. Um dos exemplos escolhido pelo autor das dificuldades e consequências da noção de transdução é precisamente o caso limite da não-tradução, comum na antropologia, de termos-chaves ou conceitos tais como mana e hau. Se, ao se deparar com as falhas da tradução e as torções da transdução, um antropólogo se recusa em ‘traduzir’, o termo encontra-se efetivamente (e perniciosamente) transduzido: o texto etnográfico que o descreve (com o fim de compor um fundo de denotação para o leitor) termina por contextualizá-lo de novo e tende a substituir os pressupostos indiciais ‘inefáveis’ do termo-fonte pelos seus próprios (Silverstein, 2003:88), de tal forma que o termo transduzido vira muitas vezes o índice do texto etnográfico, e às vezes, da autoridade do etnógrafo.

de alteração que inclui como mundo possível a relação externa, e no seio da qual o xamã destaca a diferença entre homônimos equívocos entre nossa língua e aquela de outras espécies (2004:7). Em algumas décadas, a literatura etnológica se dotou de um repertório vasto destes ‘homônimos equívocos’. No seio de escritos teóricos e programáticos, os exemplos mais comumente descritos implicam muitas vezes onças ou pecaris, sangue, cauim e, às vezes, relações de parentesco. Pode-se dizer hoje que o cauim da onça virou para a antropologia perspectiva o que a briga de galos balinesa é para a antropologia interpretativa, de tal forma que me permito, sem abrir lacunas, não reiterar aqui todas suas engrenagens (algumas já apareceram neste escrito e escolhi recusar aqui o exercício já comum demais de síntese e redução do ‘esquema’) . 68

A partir da forma do homônimo equívoco do xamanismo ameríndio, a antropologia perspectiva, por sua vez, põe em relação o discurso antropológico e o discurso do nativo, colocando-se na sua continuidade, exigindo uma diferença entre os discursos para interiorizar conceitualmente este equívoco que se desdobra no intervalo entre diferentes linguagens (Viveiros de Castro, 2004:7; 2001:21). Assim, para o autor, “traduzir é presumir que um equívoco sempre existe”, o equívoco vira a figura imanente, figura de fundo da antropologia, sua condição de possibilidade.