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Inventário de vozes

1. Linhas, Tedlock

1.3. Tipografías, Topografías

Para que mais traços sejam performados no espaço da página que apenas esta alternância entre som e silêncio, Tedlock propõe convenções tipográficas, primeiro sucintas, por questão de legibilidade. São as seguintes:

I use a line change as in poetry for short pause a double space, that is a strophe break

for longer pauses capitals

for words or lines that are loud and parenthesized italics, as in play

for softness and a good many other features such as voice qualities and gestures.

This system of notation catches I think at least the main outlines of specifically oral features

and displays them graphically and at a glance, without resort to

a complicated inventory of technical symbols

such as is used by researchers in paralinguistics (1983:122).

Ao longo dos anos, os critérios de Tedlock se tornam cada vez mais minuciosos, mais intricados. A pontuação passa a ser utilizada para significar os contornos de entonação; flechas e outros símbolos se acumulam para fazer da composição poética um inventário complicado (cf.1992:424). Cada recurso tipográfico vem imitar no espaço da página outro aspecto da performance, cada detalhe visa aproximar-se de um original. Um original porque é a narrativa ou o canto como performance que Tedlock destaca como unidade a transcrever, traduzir. O original da etnopoética de Tedlock é aquele criado pelo auditor- etnógrafo. O que o espectáculo da página deve simular é a performance tal como está delimitada pelo prisma do autor. A questão das modulações da voz, por exemplo, que Tedlock escolhe tornar visível nas suas performable translations, ganha outros contornos desde que se interesse pela questão do sujeito cantador. No seu estudo dos cantos do macaco- espírito Po’op, Tugny descreve da seguinte maneira o que ocorre quando ele canta através os Tikmũ’ũn. Tomando emprestada a voz do urubu, o abutre apropria-se da voz de suas vítimas:

O timbre vocal aqui para nós aparece como modificado, travestido, há um esforço suplementar despendido na emissão, algo que parece imprimir ao canto uma extrema dramaticidade, visto a forma como tensiona a escuta. Mas não é o que dizem os Tikmũ'ũn. Assim é a voz da qual o urubu se apropriou ao colher suas presas: “podre”. Nem imitação, nem alteração, porque na realidade não se deve postular aqui uma emissão “normal”, menos expressiva que outra. Estamos então de novo diante do problema da “produção” — poética, artística — como algo que supõe um autor, um intérprete humano agenciando expressivamente seus atos. Essa suposição nos afasta radicalmente do que estão a dizer os Tikmũ'ũn sobre essas vozes: nem travestimento, nem modificação, elas simplesmente são assim (2011:160).

Tugny descreve assim um desafio considerável na interpretação dos cantos Tikmũ'ũn. O que aparece como uma modulação da voz para a etnógrafa não é exatamente isso nos

mundos Tikmũ’ũn. As vozes ‘são assim’ porque não emergem de um sujeito-autor, os Tikmũ'ũn através dos quais emanam os cantos do Po’op não são seus criadores. Conforme eles, o que a etnógrafa reconheceria como modulações das suas vozes e os cantores humanos se ignoram.

O caso Tikmũ'ũn convida-nos a interrogar o valor mesmo da noção de performance para a elucidação dos cantos. Sem dúvida, as vozes podem nos parecer moduladas como um efeito dos performadores, mas estes não se reconhecem como sendo seus autores. Se as vozes dos cantos do Po’op “são assim” e os cantores não são responsáveis pela sua forma, a noção de performance aqui não pode ser entendida enquanto mise en forme, na qual um performador seria a fonte da expressão. O performador, nesse caso, seria mais bem um

transportador.

Heurich, na sua tese, adianta uma reserva um pouco diferente quanto ao uso do termo ‘performance’. A proposta do etnógrafo é de empregar o termo na sua acepção fraca, sem implicar as consequências conceituais da noção, e de utilizá-la como sinônimo do termo ‘execução’. O termo performance se refere então “aos eventos em que o ato de cantar é o elemento central ou ao ato de cantar em si” (2015:18). De fato, Heurich, no seguimento de Cesarino, parte do princípio que não se trata para ele, em contraste com as aproximações de Tedlock, de imitar (ou até de recriar) a performance, porém de partir da diferença entre as duas modalidades (a transcrição na página e o evento durante o qual apareceu o canto) com o fim de fazer desta alguma coisa. Portanto, importa “tornar visível uma forma rítmico-poética específica e, em seguida, relacioná-la à figura “quebrada” do cantor araweté” (ibid:77). A forma que Heurich escolhe elucidar e apresentar no espaço da página é aquela que pode ser relacionada com o sujeito cantador, mediando uma base etnográfica que permite discernir quais sujeitos (perceptíveis ou não para o etnógrafo no momento do evento) participam do canto através dos cantores araweté . Entrando em ressonância com 42

o propósito de Tugny, como mencionei antes no primeiro capítulo, o verbo utilizado pelos Araweté para aquilo que faz o xamã quando canta é marã, que o autor após Viveiros de Castro traduz por ‘colocar’, ou, ‘atualizar’ (Viveiros de Castro, 1986: 223 apud Heurich, 2015:44). É, aliás, através de um argumento análogo que Cesarino salienta a inadequação

Pode-se reconhecer, entretanto, que certas características da execução de cantos poderiam ser apresentadas

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ainda mais: como exemplo, o eco das mulheres que acompanha os “cantos que cantam” e participa do acalmar os mortos, é singelamente descrito nas considerações finais, sendo que ele poderia igualmente participar da elucidação daquilo que ocorre durante os cantos (cf. Heurich, 2015:276).

da centralidade da performance tal como é percebida por etnógrafos nos escritos da etnopoética para com os cantos xamânicos ameríndios:

O que se constitui ali como ‘performance’? Lá onde a ação e o conhecimento xamanístico se dão justamente pela sobreposição de referências […] que sentido faria centralizar a ‘matriz referencial’ de um dado canto na performance imediatamente perceptível pela audiência e pelo pesquisador ou visitante ‘ordinários’? (2003:242).

Se toda tipografia é uma topografia (cf. Meschonnic, 1982:324), esta que propõem esses últimos autores assinala um espaço distinto daquele estipulado por Tedlock. Assim, tratar- se-ia de partir da diferença intransponível entre um canto se desenvolvendo em múltiplas referências, das quais muitas são imperceptíveis para o etnógrafo, e o espaço contraído, imóvel e imediatamente perceptível da página; esta diferença vem com eles assinalar um abismo, e a descontinuidade informa os relevos do espaço da página. A página com Tedlock assinala, por sua vez, uma continuidade notável: não se trata para ele de apresentar na extensão plana e branca das páginas diferenças de mundos, mas de representar, através de uma proliferação tipográfica, os ínfimos detalhes da sua própria experiência perceptiva. Nenhum abismo vem imiscuir-se na página, a tipografia é signo de signos.

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A experimentação tipográfica encontrar-se-á também entre muitos outros trabalhos, não apenas de etnopoética. Jacopin, por exemplo, propõe distinguir as onomatopeias pelo emprego do alfabeto fonético, além de mudar a capitalização e de sublinhar para ‘sugerir variações de intensidade’ (Jacopin, 1981:68).

Na contra-corrente destas propostas, Déléage (2005) propõe um uso divergente das convenções tipográficas: estas estão desdobradas para facilitar a tarefa exegética e não para criar um análogo visual das palavras sharanahua. A tipografia: as duplas-barras de repetição de linhas, a numeração das linhas, ou o signo “=” que introduz uma explicitação ‘esotérica’, assim como a ausência deliberada de tradução das introduções-refrões recorrentes agem, conforme o autor, para a facilitação do processo de interpretação. Nos cantos coshoiti, a delimitação das linhas no entanto aparece facilitada por serem distinguidas por séries onomatopéicas que o autor evoca enquanto um ‘duplo’ da linha, elas apresentam um ritmo fixo de quatro tempos e em geral estão constituídas de sete sílabas. O autor descreve mas não assinala nas suas traduções a subida progressiva da voz, ele re-situa o fenômeno como característica regional — o microtonal raising é estudado, por exemplo, entre

os Kisedje por Seeger (2004[1987]:88-103) e entre os Wakuenái (Hill, 1985) —, e notadamente as expressões sharanahua que se referem a estas qualidades diferentes da voz.

O antropólogo salienta o carácter construído de suas segmentações acima da linha: Nous avons aussi, pour la commodité du lecteur, divisé le texte des chants en parties. Celles que nous avons isolées dans les chants rabi sont relativement arbitraires ; elles consistent en des regroupements de lignes qui nous semblaient avoir une logique thématique ou narrative ; elles n’ont toutefois ni valeur émique, ni valeur étique. […] (nous n’avons pas isolé les « introductions / refrains » qui reviennent régulièrement dans le chant ; elles se signalent d’elles- mêmes par leur absence de traduction). Il ne faut toutefois pas les considérer comme autre chose que ce qu’elles sont : des découpages analytiques qui nous sont

utiles pour l’exégèse des chants” (2005:10, grifo nosso).

As segmentações propostas observam um critério de ordem diacrônico que reflete, segundo o autor, mais bem uma ‘ordem ideal’ do que o que acontece numa sessão de cura. Como vários cantos se seguem numa sessão, as partes ditas ‘periféricas’, e que podem ser reiteradas entre diferentes cantos, tendem a ser diminuídas. O autor portanto delimita nesta ordem ‘ideal’:

Une introduction, qui, à vrai dire, est aussi un « refrain » dans la mesure où elle est régulièrement répétée tout au long du chant – cette partie est définitivement intraduisible mais une analyse fine permettra d’en faire ressortir plusieurs aspects intéressants qui tous contribuent à établir l’identité de l’énonciateur du chant. 2 L’explicitation du cadre spatial de l’énonciation, qui tient en quelques lignes stéréotypées et qui condense ce qui, dans d’autres traditions chamaniques peut être longuement développé : l’idée de « voyage ». 3 Le noyau qui constitue l’essentiel du chant : il met en scène la genèse de l’esprit pathogène spécifique à la maladie diagnostiquée et est énoncé à travers un langage « spécial ». 4 La description de l’insertion de cet esprit et/ou de la substance qui en dérive dans le corps du malade. 5 La description parallèle de l’expulsion de ces agents pathogènes en dehors du corps du patient (2005: 350).

O autor descreve e analisa a maneira pela qual as ‘introduções’ apresentam outra linguagem, singularmente agramatical, onde elas definem por um jogo de perguntas e respostas a identidade do enunciador (aqui o anaconda, dono do coshoiti) e, para isto, o “papel do locutor, o xamã: este ‘imita’ o canto dos donos, ele ‘se assemelha’ aos donos ou ainda ele ‘repete’ o que dizem os donos” (ibid: 350-352). A a-gramaticalidade agiria então como ‘ícone’ da disjunção entre enunciador e locutor. Com ela mostra-se a passagem para a linguagem dos donos. Após este jogo de perguntas e respostas, uma sequência de fórmulas indica a situação do enunciador que “deve ter sido atingida” uma vez que a viagem tenha sido efetuada: brincando com uma lógica de substituição entre o rio e a anaconda, a composição formular descreve simultaneamente um movimento e um ponto

de vista (uma viagem rio abaixo dentro de uma topologia mítica) e a transformação do enunciador em anaconda (uma transformação em dono mítico) (ibid: 358). Voltarei para a singularidade da linguagem desdobrada nos ‘cernes’ dos cantos coshoiti dos Sharanahua no último capítulo. Por enquanto, o que pode ser interessante salientar desta proposta é que, ao afirmar a artificialidade das segmentações das quais faz uso, distanciando-se de um tal ‘original’ do canto, Déléage procura elucidar a própria topografia descrita pelo canto, as múltiplas referências e sujeitos que ele implica. Distanciando-se de qualquer ensaio de imitação da performance do canto no espaço da página, é o espaço desdobrado pelo canto que passa a ser descrito.

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Pinheiro Dias avança diversas críticas à proliferação tipográfica de Tedlock. Além de uma dificuldade de legibilidade, destacada aliás por Basso, a autora salienta dois paradoxos nas convenções de Tedlock. O primeiro problema estaria na sua vinculação com o vocovisual, onde a dimensão sonora encontrar-se-ia obliterada pela visualidade. O segundo concerne à historicidade das traduções de Tedlock, que tenderia a projetar uma estética tipográfica em vez de procurar uma solução tradutória própria à alteridade das palavras levadas (Pinheiro Dias, 2015:135). Este paradoxo do vocovisual, que Meschonnic cunhou como intratipografia (1982:309), é acarretado pelo desejo do etnógrafo em emular, imitar por análogos visuais as palavras na representação. É, de certa forma, um fruto do problema mais vasto da prática etnográfica e da sua escrita, fundada sobre a distância entre signo e coisa. Visto que ele implicaria que se atente, para abordá-lo, a uma reflexão em torno de tortuosas questões de tradução intersemiótica, ele ultrapassa os contornos desenhados para este escrito (cf. Vidal, pesquisa em curso). A projeção de uma estética, por sua vez, por Pinheiro Dias, diretamente oriunda de e. e. cummings, e que se pode encontrar mais comumente pelas traduções do antologista Rothenberg, é um argumento notável, próprio à crítica do traduzir e de sua procura de uma historicidade das traduções. Se é certo que o exercício pode ser reiterado para toda e qualquer tradução (as palavras duplicadas de Cesarino seriam também apanágio de Haroldo de Campos, as palavras hifenizadas de Gongora poderiam lembrar as de e. e. cummings, etc.), o problema permanece, no entanto, real. As inspirações estéticas e tipográficas de Tedlock (assim como de Rothenberg e de outros) têm a particularidade de propor, entre outros, representar uma subversão tanto do signo como do sujeito através de suas experimentações. Elas apresentam um viveiro de recursos dado que sua intenção entrava na vizinhança dos desafios colocados pelas palavras

ameríndias aos etnógrafos. Vizinhança que, não obstante, não deveria dissimular o equívoco escancarado entre os dois mundos de palavras, pois o desafio que põem as palavras ameríndias aos etnógrafos decorre primeiramente do fato de elas emergirem do que Meschonnic chama de uma ‘metafísica da linguagem’ outra, enquanto as palavras dos ‘poemas tipográficos’ constituem desafios lançados a uma metafísica da linguagem ocidental da qual eles mesmos emergem . 43

Abordarei ao fim do capítulo outras propostas tipográficas que, enquanto parecem aproximar-se de outra maneira do problema da imitação, aplicam-se também em encontrar suas formas em outras partes.