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O refrão-caminho

Canto 2: Tiñaradɨdo/Iapi'ido Ko koooo


2. De equívocos

2.5. De outras ‘traduções conceituais’ antes e alhures

Encontra-se, numa etnologia menos recente, em torno da tradução e das palavras xamânicas, dois artigos de Overing (1986; 1990) dos quais certas propostas podem aparecer como um antecedente histórico ao convite de Viveiros de Castro de praticar uma antropologia como tradução conceitual. Estes dois escritos podem igualmente aparecer como figuras intermediárias, entre os escritos pivô da autora sobre o espaço e o tempo (1976) e de Seeger, Viveiros de Castro e Da Matta em torno da noção de pessoa e corpo (1979), e o método do equívoco controlado de Viveiros de Castro (2004). Assim, num primeiro tempo, estes dois escritos da etnóloga agem como um engate de uma discussão que hoje faz tumulto: Overing nos convida neles, desde um princípio de inquietude ou de ética, a empregar o termo ‘ontologia’ para o que é considerado pelos Piaroa, como real no mundo ou no cosmos (1986). Assim, ela observa práticas de construir mundos e estabelece uma aproximação com a filosofia, primeiro com a de Paul Feyerabend para refletir sobre a questão da tradução e, posteriormente, com aquela de Nelson Goodman para abordar a realidade dos saberes dos ruwatu (pajés) piaroa. Por fim, ela aborda a questão da tradução antropológica (com Feyerabend) desde a noção de incomensurabilidade e da impossibilidade de uma tradução radical.

As diferenças são tênues, por vezes infinitesimais, e ao mesmo tempo notavelmente vastas. Partindo da filosofia de Goodman, Overing postula não a realidade de vários mundos mas de versões de mundos, isto é, a realidade de uma pluralidade de saberes sobre o mundo. A diferença entre os saberes (aqueles do antropólogo ocidental face aos do ruwang piaroa) remete aos quadros de referências que dependem dos sistemas de descrição, e não a uma diferença de mundos (1990). Minha dificuldade em capturar o raciocínio de Overing deve-se talvez ao fato de que seu estudo oscila entre estas duas expressões ‘versões de mundo’ e ‘mundo’, desenhando o que se poderia reconhecer, não sem risco talvez, como um emaranhamento de ideias inspiradas pela hipótese Sapir e Whorf e de um construtivismo e relativismo radicais próprio a uma resposta ao estruturalismo, então hegemônico, e onde ao mesmo tempo mais simples e ambiguamente, e para virar as costas às etiquetas, nomear é criar um mundo (1986). Pode-se apreciar a intuição da etnóloga de uma necessidade, para pensar a tradução na antropologia e a antropologia como tradução, de voltar-se para a filosofia, para a qual a questão jamais parou de mover-se. Partindo de Feyerabend e do lugar eminente que tem para ele a antropologia como arte do possível (na medida em que ontologias outras são expressas na linguagem do antropólogo), Overing redefine o ‘problema’ da tradução em termos de ênfase, saber, experiência e criatividade. Desta forma, a tradução exata, escreve ela, é um falso problema. A ênfase não recai sobre a tradução da palavra, mas sobre o modo de entendimento do mundo, este outro quadro de pensamento que ela se recusa ao mesmo tempo em reduzir a um processo cognitivo. Cabe constar no entanto que é, na maior parte do tempo, de uma palavra que a autora parte para descrever este marco de pensamento. Overing preconiza o abandono de conceitos inadequados e a criação de novos conceitos. Os contornos que assume a criatividade da tarefa tradutória não estão explicitamente descritos. Eles são depreendidos sobretudo de seus efeitos (a criação de mundos e seu âmbito ético) e de sua razão. Trata-se de remediar a inadequação de velhos conceitos e de operar uma moralização da terminologia etnológica. A distinção entre termo e conceito (tanto quanto aquela entre ética e moral) mantém-se difícil. Pode-se pensar que a criatividade do antropólogo-tradutor se efetua pelo empréstimo de outros campos e, notadamente, da filosofia. Destacaria que Overing efetua aliás uma reserva interessante no seu uso do termo ‘ontologia’: o uso do termo é contrastivo, pois ‘ontologia’ é menos carregado, na etnologia, diz a autora, do que termos como ‘magia’ ou ‘religião’. No seu desdobramento, o que a autora alcunha de criatividade

da tradução antropológica vira assim, de alguma forma, uma torção da linguagem, de maneira semelhante àquela de Viveiros de Castro.

O que me parece interessante nestes dois artigos de Overing é que ela também associa a tarefa tradutória do antropólogo (transformada em compreensão e criação de versões de mundo) àquela do xamã, ou mais bem do ruwang piaroa. A comparação é mais evocativa, o ponto de partida sendo talvez mais bem situado na filosofia ocidental (Goodman e Feyerabend). O que ela extrai de tal analogia é ao mesmo tempo necessariamente e singularmente distinto dos traços da antropologia perspectivista de Viveiros de Castro. Arriscarei aqui que é talvez com Overing que se encontra um pensamento da linguagem (tanto xamânica como antropológica) mais próximo da ideia de Cassin do efeito-mundo, esta dimensão ou força da linguagem desdobrada pela sofística na antiguidade e da qual se encontraria um esboço confuso, porém considerável, na teoria dos atos de fala de Austin (Cassin, 2009; 2011). A proposta de Cassin reuniria o que Overing associa: a maneira pela qual o ruwang cria, transforma e ao mesmo tempo descreve o mundo com suas palavras, e a maneira pela qual antropólogos fariam o mesmo explorando a força de nomear. O que distingue, entre outras coisas, as abordagens brasileiras mais recentes das cosmopráticas xamânicas ameríndias desta noção de xamã como maker of worlds, é que a noção de criação está nelas questionada, não parecendo totalmente adequada, a maior parte do tempo, para pensar os mundos ameríndios — que se trate do lugar mesmo da ‘criação do mundo’ ou de seu surgimento, desdobramento ou de sua elicitação (cf. entre outros Cesarino, 2008:433; 2013:45; Pierri, 2013:277), ou das palavras, histórias, festas, a maior parte do tempo emprestadas, copiadas, recebidas, roubadas ou ganhadas de outros, ou, em outro nível de abstração, da ideia de um pensamento ameríndio voltado para a imanência. A ideia abrangente de efeito-mundo, de força da linguagem ou poder do nome, é marcada — mesmo com Cassin, como parecem assinalar as exemplificações oriundas da psicanálise —, pelo eixo do impacto ‘emocional e intelectual’ (Overing, 1986) e é considerada como dimensão da linguagem em vez de uma forma particular de linguagem. Esta diferença, entre uma dimensão da linguagem e uma forma particular de linguagem, pode talvez esclarecer a dificuldade, com Overing, de entender, tanto como quanto porque, as palavras do

ruwang transformam o mundo: devido ao seu sopro? Por que o seu saber é poder? Devido

às suas torções da língua ou word punnings que encapsulam referências múltiplas entre o tempo de hoje e o tempo de antes? No esforço de compreensão de Overing, os conceitos piaroa subjacentes à palavra como ato do ruwang parecem nos fazer falta, e sugiro que a

aproximação desta palavra que faz, do que faria a linguagem dos antropólogos, pode singularmente nos desconfortar. Propondo-se assim justapor estas linguagens distantes, os artigos de Overing sugerem de fato que entre o que faz a palavra do ruwang e o efeito- mundo da sofística, tal como aquele que Overing encontra nas terminologias antropológicas, se estende uma diferença de mundos.

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Avizinhando no seu ‘arquipélago de ideias’ o efeito-mundo da linguagem, encontramos o equívoco como âmbito do possível na discussão de Cassin (2016) a partir do que a tradutora e filósofa chama intraduzíveis. A noção de homônimo é o objeto de um lindo elogio de Cassin, que rastreia a trajetória do termo, ele também homônimo, desde seus inícios com Aristóteles. A homonímia de Aristoteles não está reduzida à homofonia, e envolve expressões de ‘sentido próprio’ e ‘figurado’ ou ‘metafórico’. Ela emergiria, antes, de uma pobreza da língua, as mais problemáticas (com risco de serem falaciosas) sendo as homonímias ‘normalmente inscritas na língua’. Com essas ‘homonímias falaciosas’, a homonimia se aproxima da polissemia, que é também o método que a explica. No caso da língua grega, à homonimia semântica se adiciona aquela de sintaxe, dita anfibolia (2016:100). No Dictionnaire des intraduisibles (2004), como no seu Éloge de la traduction (2016), Cassin destaca, trata-se precisamente de explorar a homonímia, de cultivá-la através suas entradas que constituem palavras, e não conceitos (2016:124). As palavras intraduzíveis são aquelas que se deve constantemente retraduzir, já que, em seu seio, o equívoco é sempre desdobrado de maneiras distintas. Para Despret (2012), a proposta de Cassin é um pensamento da equivocação que partiria do meio. Conforme os termos da autora, um tal pensamento jamais se efetua “à propos, no sentido de não ser à propos, ainda menos sobre, ou a respeito de, ou qualquer coisa que interrompa o movimento, impõe um limite, atribui uma causa ou um fim”. Despret convida precisamente a reconhecer e honrar as ocorrências de resistência do discurso à atribuição (assignation) — ecoando, como será o caso no final deste escrito, a proposta cosmopolítica de Stengers. Um pensamento da equivocação, com Despret “sempre mantém o discurso na corda bamba, no meio de uma bifurcação de sentidos possíveis, ‘sentido’ não apenas a título de significação, mas a título de direção”. Importa assinalar, quando se procura pensar na antropologia com Cassin, quanto o seu pensamento é um pensamento da tradução entre línguas, e não entre mundos, nem exatamente entre linguagens conceituais. Lá onde o equívoco para Cassin leva a um relativismo das línguas (e das culturas) que derrubaria o universal, a tradução aparece

como contrafação, desessencialização do deslize de um tal relativismo no problema do gênio das línguas e de suas tóxicas derivas em nacionalismos linguísticos. As inquietações de Cassin são distintas daquelas dos etnólogos: não se trata de pensar com a diferença nas suas dimensões infinitas e infinitesimais, mas de fazer com, de partir dela. Caso se trate de fazer do entre da tradução um trunfo político, será para desenhar, pela tradução, seguindo Achille Mbembe, e face à exclusão do outro à europeia, ‘um contra-imaginário ao imaginário demente de uma sociedade sem estrangeiros’. O entre é apenas o lugar da tradução: 70

Le “entre” n’est pas le point d’appui d’une leçon de bienveillance bourgeoise propre à conforter politiquement l’existant. Il ne renvoie pas non plus à l’absence ou à un sans fond hystérisable, mystérisable, au-delà de l’être, en prise sur la différence, plus ou moins ontologique ou immanente, que l’on pourra renommer et déplacer en différance, différend, différence et répétition. Non c’est bien plutôt un tropisme philologique au travail et, si j’en crois mes yeux, une manière de regarder et de comprendre admirative et païenne (2016:222).