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O refrão-caminho

Canto 2: Tiñaradɨdo/Iapi'ido Ko koooo


2. De equívocos

2.2. Controlar o equívoco, ou uma prática da teoria

Marisol de la Cadena, em sua instigante etnografia (2015), retoma por sua vez os contorno desta tradução pensada como equívoco e discute sua mise en oeuvre. A autora nota, primeiramente, que se a tradução se fundamenta sobre o equívoco entre jogos de linguagens, ela não parte então de um original outro que as conversas estabelecidas entre o antropólogo e, neste caso, os Runakuna que ela encontra em Pacchanta (Peru). O processo de tradução não pode com isso valer-se de um ele nem de um nós purificados, e deve levar em conta os limites que cada um pode aprender e conseguir conhecer do outro, estes sendo, conforme a autora “presentes no que o outro revela em cada um” (ibid: xxvii). Dentre os pontos do método, seguindo De la Cadena, é o controle do equívoco que ganha assim uma ênfase, já que consiste na “explicitação dos termos onto-epistêmicos da tradução e do que não podem conter”. Precisamente, controlar o equívoco permite fazer entender que

No entanto, como se trata da tradução das artes verbais ameríndias, é meu dever sublinhar o quanto esses

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homônimos equívocos estão nelas presentes. Escondidos nas palavras e suas diversas interpretações, os encontraremos aqui nas linhas consagradas à noção de metáfora. Tais homônimos não implicam somente ou sempre seres excepcionais, e por isso exigem igualmente do tradutor uma arte da atenção.

algo, durante a tradução, está perdido e não pode mais ser reencontrado (ibid:116), mas também que qualquer gramática do ou … ou (do mesmo e do diferente) torna-se ineficaz (ibid:24). Interrogando as possíveis traduções de pukara, a autora assinala que além do sentido ou do modo de significação, na passagem de um regime onde o termo já é a entidade que ele nomeia para um âmbito onde a palavra significa pelo procedimento da representação, a ausência do ser, o que pode ser “perdido é o ser ele mesmo e a prática de fazer mundo no seio da qual os runakuna e tirakuna estão juntos sem a mediação de sentido (ibid:31).

A passagem das práticas e palavras ao regime semântico implica para a autora reconhecer que uma tal tradução não pode significar um princípio de isomorfia, e se desdobra principalmente na forma de um comentário meticuloso de escolhas tradutórias. Assim De la Cadena assinala um equívoco de alguma forma primeiro, que já encontramos sob outras formas (com Heurich e Cesarino, por exemplo, e a recusa em imitar, no espaço da página, a experiência dos cantos xamânicos), e o que remete ao que pode ser uma ‘palavra’, ou seja, conceitos de palavra envolvidos no processo de tradução dos etnólogos.

2.3. Replicações

Does Deleuze sound like ‘them’, or do ‘they’, rendered in our terms, end up sounding like Deleuze? Or are they and Deleuze substantively saying the same thing? The answer to these questions matters if our aim is to take ‘them’ (rather than Deleuze) seriously (Candea, 2012, grifo nosso).

É notável que, com Viveiros de Castro (2004), a tradução antropológica é uma tradução conceitual, ela potencializa o equívoco entre linguagens conceituais em contato. Ela se vira então, como assinala o autor, para o sentido, e pode improvisar numerosos andaimes — para o autor as ferramentas conceituais da “filosofia da diferença” — para compor sua linguagem alvo (1986:124).

Com De la Cadena (2015), o pensamento do equívoco se esboça de novo entre linguagens, uma se realizando em palavras e práticas, a outra sob a forma de um profundo comentário analítico.

A inquietude quanto à infinita replicação do equívoco, que Candea (2012) situa no espaço entre a linguagem da análise e o objeto de análise, ganha sempre outros contornos

quando o objeto de análise é precisamente, mesmo que outra, uma linguagem . O 69

equívoco se redesenha indefinidamente entre modos de pensamento que se dedicam a tornar visível um mundo, cada um se expressando como forma. Portanto, vale destacar que a ênfase nas perguntas de Candea não deve ser encontrada em Deleuze, mas neste como, aquele trivial like da língua inglesa. O desafio de acolher integralmente a diferença do pensamento do outro para poder imaginar o comum, implica talvez tentar pensar com a sua expressão, ou seja, levar a sério a diferença de sua expressão (parafraseando Viveiros de Castro, 2012:164).

2.4. Da infinitude

P: Naí shavapa yochĩ ayasevi? Também há espectros no céu? Ch: Ari, ari mashtetĩpa. Mashtetĩpa vana.


Para lá, para lá não termina. A fala é interminável.

Na mai shavapá mashtetĩpasevi.


A fala desta terra também não pode terminar.

Mai oke mashtetĩpasevi, mashtetĩpaivo mashtetĩpa vana.


Os subterrâneos também são intermináveis, são palavras todas intermináveis. (Diálogo entre Cherõpapa e Cesarino, in Cesarino, 2008: 314)

Enquanto pode-se hoje contemplar a efervescência na antropologia de um pensamento do equívoco, encontramos pistas de ressonâncias e imagens dele, no seio dos estudos da tradução e alhures nas traduções ‘etnológicas’, da inquietação que ele provoca, do abismo que ele parece invocar ou da extensão a habitar. Gaddis Rose (2008), numa coleção precedentemente citada, descreve as respostas aos seus questionários a respeito do que ela aproxima de um differend à la Lyotard no traduzir:

What is relevant is that almost all responding translators were aware of a real internal, if infinitesimal, space. They are, by and large, uncomfortable in it. It is an unstable inner space where, in the confusion, things risk seeming lost. Therefore, translators try to make their passage through this space as brief as possible. As a result, I now have an enviable catalog of tips for blitzing over, under, around, and through it. Best of all, presumably, for most of the respondents, are the tips for hoodwinking the mind into acting as if this ritual of passage were not happening (i.e., no passage through because nothing to pass through exists). Most of us want to put the message in its attache case, race to the contact, and put it down in its new guise. We can worry about the message

Quando Viveiros de Castro, com o fim de continuar a descrição etnográfica, escolhe a linguagem da dita

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filosofia da diferença para ser seu andaime, a comparação entre as linguagens conceituais ameríndias e deleuzianas é quase implícita, e as duas linguagens aparecem como semelhantes. O outro fim, mais explícito, é aquele de salientar a infinita diferença entre um pensamento majoritário ocidental de contornos lábeis, por servir de figura de contraste e objeto de crítica, e as formas de pensamentos ameríndios que ele entende descrever. Taylor (2013) enfatiza este fim do antropólogo, vendo no uso por exemplo da palavra ‘ontologia’ o agenciamento de uma ‘máquina de guerra’ (no sentido de Deleuze e Guattari) contra o naturalismo ocidental.

there, but it has ceased to be an unstable burden. Only one respondent, Gabriela Mahn, Spanish and Nahuatl translator, looked at the moments of that movement through Orphic space head-on. “My mind seems to go blank,” she mused, “but actually these are the moments of more intense thought.” “Too frustrating” was the usual dismissive classification of this passage-time and passage-space. It was too tense, alternately too terrifying and too exhilarating to want to recall fully, but sufficiently addictive or seductive to ensure voluntary repetition. (in Larson, 2008 :10).

Em termos de passagem de espaço, num léxico marcado pela licença lírica e aventurosa do autor, o que se pode reter sobretudo desta descrição do equívoco é esta noção do infinitesimal e da intensidade, e que atravessá-lo implica em voltar para ele. A questão do

différend, conceito elaborado por Lyotard a partir do vocabulário jurídico (implicando assim

um pensamento da necessidade de julgamento) para pensar o mundo ocidental face ao desgaste das grandes narrativas, assinala outras possibilidades de reflexão futura para pensar as traduções de palavras ameríndias. Da pequena imagem dos tradutores emerge o outro aspecto que me interessa no equívoco tradutório: que ele jamais está resolvido, que é constantemente reiterado, qual seja a profundidade do comentário que dele pretenda fazer um balanço. Que se trate de um pensamento da falha, e de um pensamento do interminável, participa em fazer entrar a ideia de uma antropologia e de uma tradução centradas sobre o equívoco numa forma de ressonância com as artes verbais ameríndias. Cesarino destaca assim, no seio das cenas de formação de mundo como nas cosmopráticas xamânicas ameríndias (no Popol Vuh quiché, no Ayvu Rapyta dos Mbya, nos cantos marubo…), esta singularidade da voz, falível como seus agentes, que agiria como “estratégia de abertura, de distribuição da agência em uma série que tem como forma expressiva a voz múltipla” (Cesarino, 2014).

Abertura também, pois as palavras ameríndias, como as possibilidades de tradução dos intraduzíveis (Cassin, 2016), apontam para o que Tugny chama, inspirando-se da etnografia Cancuq, uma epistemologia da infinitude. Com os Tikmũ'ũn, “não se pode saber tudo, os cantos não acabam”, as palavras estão sempre em disjunção, multiplicação, e ao mesmo tempo, sempre estiveram ali (Tugny, 2011). Martin, dentre os Gwich’in no Alaska, destaca também esta particularidade de um pensamento que nega os e então, abrindo-se sempre à indeterminação, a uma infinidade de seguimentos (Martin, 2016). Aprende-se, assim, na etnografia de Cesarino, que os cantos saiti de surgimento das singularidades que compõem o mundo marubo são igualmente tão intermináveis (mashtetĩpa, keyotĩpa) quanto as singularidades elas mesmas (Cesarino, 2008: 124,255). No

caso Marubo, esta “epistemologia da infinitude” recebe uma atenção bem particular. Os cantos de surgimento descrevem a formação das singularidades do cosmos marubo a partir de pedaços de animais e vegetais, convidando o autor a interrogar a possibilidade de que o pensamento dos xamãs marubo seja bricoleur. O que é então retido da analogia de Lévi- Strauss (1962) é o caráter contraído ou limitado do repertório (aqui destes pedaços). Em contraste, e afastando-se aparentemente da proposta do bricoleur, as séries de surgimentos são potencialmente intermináveis:

[…] ao mesmo tempo em que opera no plano da imagem e estabelece uma reflexão explícita sobre uma provável bricolagem ‘cósmica’, o pensamento marubo também está voltado ao ilimitado e ao infinito. As séries de montagem/ transformações poderiam se estender indefinidamente por todas as entidades existentes, uma vez que muitos de seus processos de formação estão previstos dentro dos cantos-lista saiti (os cantos-mito) que servem de fonte para o conteúdo mobilizado pelos cantos-ação shõki (os cantos de cura e de pensamento). Esta indeterminação ocorre porque as singularidades estão cindidas entre seus duplos e seus corpos. Tal cisão gera uma replicação infinita de subjetividades e pontos de vista, que precisam ser conhecidos e monitorados em suas formações (o trabalho do bricoleur). Assim como as narrativas ameríndias “parecem-se muito mais com mapas rizomáticos do que com decalques estruturais” (Viveiros de Castro, 2007:116 nota 144), também a bricolagem está aqui a serviço de multiplicidades e recursividades. O problema da infinitude é um problema geral da etnografia marubo, e não deixa de lembrar o cativante estudo de Mimica (1988) sobre o sistema de contagem e a cosmologia Iqwaye (Melanésia). Como o pensamento marubo o desenvolve? Se a imagem abstrata do infinito nas tradições matemáticas ocidentais é o número, no caso marubo ela é composta de pessoas ou humanóides, virtualmente anteriores aos elementos manipulados pela suposta bricolagem (Cesarino, 2008: 274).

Das descrições do autor, importa destacar quando este insiste sobre a fonte de indeterminação: as singularidades do cosmo marubo estão sujeitas ao fenômeno da duplicação, elas estão cindidas entre seus corpos e seus duplos. A imagem da infinitude está feita de pessoas. A interpretação das artes verbais marubo aqui se ancora numa pesquisa que considera a composição do cosmos, fazendo emergir, além das classificações e segmentações êmicas que pude descreve nos primeiros capítulos, entre outras, as teorias conceituais da pessoa, da corporalidade, da relação ou root metaphors (Pepper, 1942; Strathern, 1988) que compõem as singularidades dos mundos ameríndios, a maior parte do tempo inevitáveis tanto para a elucidação das palavras quanto para a descrição etnológica.

Por outro lado, o contraste composto pelo autor do problema da infinitude com a imagem do bricoleur elaborado por Lévi-Strauss aponta para um aspecto particular desta analogia. Na proposta de Lévi-Strauss, a bricolagem como analogia do pensamento mítico está observada principalmente por causa dos ‘moyens du bord’, de estoque amplio mas

limitado, os materiais que ‘podem sempre servir’. Seguindo seus termos, o bricolage no plano técnico (e logo prático) forma uma imagem do que caracteriza este pensamento, em contraste com aquela da ciência ocidental no plano da especulação. Na sua análise, Lévi- Strauss não explicita esta particularidade dos bricoleurs do mundo ocidental, a saber, precisamente, e à diferença dos engenheiros constrangidos pelos prazos e cláusulas de fim de obra ou projeto, sua arte de in-finir. Perseguindo os diferentes aspectos do pensamento

bricoleur descrito pelo antropólogo, pode-se perceber como este, fazendo de fins antigos

meios novos (o ‘pode sempre’ formando portanto um índice), se encontra, ele também, voltado para a infinitude, ainda que esteja contida de modo apenas implícito na descrição do bricoleur que Lévi-Strauss propõe n’O pensamento selvagem. Na medida em que a metáfora do bricoleur e a questão da infinitude não se tornam antitéticas quando vistas desde este ponto de vista, podemos compreender aí uma antecipação do que Lévi-Strauss desdobrará depois nas Mitológicas acerca das transformações míticas e do caráter recursivo das dualidades em perpétuo desequilíbrio.