• Nenhum resultado encontrado

A VIDA E A MENTE CONSCIENTE

No documento e o cerebro criou o homem.pdf (páginas 42-47)

Tem algum sentido dedicar um livro à questão de como o cérebro cria a mente consciente? É sensato indagar se entender o funcionamento do cérebro por trás da mente e do self tem alguma importância prática além de satisfazer nossa curiosidade sobre a natureza humana? Será que realmente isso faz diferença no nosso dia a dia? Por muitas razões, de maior ou menor importância, acho que sim. A ciência do cérebro e suas explicações não têm por objet- ivo fornecer a todos a satisfação que muitos extraem das artes ou de uma crença espiritual. Mas com certeza há outras compensações.

Entender as circunstâncias em que a mente consciente surgiu na história da vida, e mais especificamente como ela se desenvolveu na história humana, permite-nos julgar, talvez com mais sabedoria do

que antes, a qualidade dos conhecimentos e conselhos que essa mente consciente nos fornece. São confiáveis esses conhecimentos? São sensatos esses conselhos? Há vantagem em entender os mecan- ismos por trás da mente que nos guia?

Elucidar os mecanismos neurais por trás da mente consciente revela que nosso self nem sempre é sensato e nem sempre está no controle de todas as decisões. Mas os fatos também nos autorizam a rejeitar a falsa impressão de que nossa faculdade de deliberar con- scientemente é um mito. Elucidar os processos mentais conscientes e não conscientes aumenta a possibilidade de fortalecer nosso poder de deliberação. O self abre caminho para a deliberação e para a aventura da ciência, duas ferramentas específicas com as quais po- demos contrabalançar toda a orientação enganosa do self desassistido.

Chegará o tempo em que a questão da responsabilidade humana, em termos morais gerais e nos assuntos da justiça e sua aplicação, levará em conta a ciência da consciência que hoje se desenvolve. Talvez essa hora tenha chegado. Com a ajuda da deliberação re- flexiva e de ferramentas científicas, a compreensão da construção neural da mente consciente também adiciona uma dimensão útil à tarefa de investigar como se desenvolvem e se moldam as culturas, o supremo produto dos coletivos de mentes conscientes. Quando de- batemos sobre os benefícios ou perigos de tendências culturais e de avanços como a revolução digital, pode ser útil ter informações sobre como nosso cérebro flexível cria a consciência. Por exemplo, será que a globalização progressiva da consciência humana ensejada pela revolução digital manterá os objetivos e princípios da homeo- stase básica, como faz a atual homeostase sociocultural? Ou será que ela se desprenderá desse cordão umbilical evolucionário, para o bem

ou para o mal? 18 Explicar a mente consciente pelas leis naturais e situá-la firmemente no cérebro não diminui o papel da cultura na construção dos seres humanos, não reduz a dignidade humana nem assinala o fim do mistério e da perplexidade. As culturas surgem e se desenvolvem graças a esforços coletivos de cérebros humanos, ao longo de muitas gerações, e algumas, inclusive, morrem no pro- cesso. Elas requerem cérebros que já tenham sido moldados por efei- tos culturais prévios. A importância das culturas para a produção da mente humana moderna não está em questão. Tampouco a dignidade dessa mente humana é diminuída quando associada à assombrosa complexidade e beleza encontradas no interior de células e tecidos vivos. Ao contrário, ligar a pessoalidade à biologia é uma fonte ines- gotável de admiração e respeito por tudo que é humano. Por fim, naturalizar a mente pode resolver um mistério, mas só servirá para erguer a cortina e mostrar outros mistérios que aguardam paciente- mente a sua vez.

Situar a construção da mente consciente na história da biologia e da cultura abre caminho para conciliar o humanismo tradicional com a ciência moderna, e assim, quando a neurociência explora a experiência humana nos estranhos mundos da fisiologia do cérebro e da genética, a dignidade humana não só é mantida, mas reafirmada.

F. Scott Fitzgerald escreveu memoravelmente: "Quem inventou a consciência cometeu um grande pecado". Posso entender por que ele disse isso, mas sua condenação é apenas metade da história, apropriada a momentos de desalento diante das imperfeições da natureza que nossa mente consciente revela de modo tão flagrante. A outra metade da história deve ser ocupada com elogios por essa in- venção, o instrumento para todas as criações e descobertas que trocam a perda e o pesar por alegria e celebração. O surgimento da

consciência abriu o caminho para um modo de vida que vale a pena. Entender como ela surgiu só pode acentuar esse valor.19

Saber como o cérebro funciona tem alguma importância para o modo como vivemos nossa vida? A meu ver, importa muito, ainda mais se, além de sabermos quem atualmente somos, nos interessar- mos pelo que podemos vir a ser.

2. Da regulação da vida ao valor biológico

A REALIDADE IMPLAUSÍVEL

Para Mark Twain, a grande diferença entre a ficção e a realidade era que a ficção tinha de ser acreditável. A realidade podia dar-se ao luxo de ser implausível; a ficção não. A narrativa sobre a mente e a consciência que apresento aqui não preenche os requisitos da ficção. Na verdade, ela é contraintuitiva. Destoa do modo humano tradi- cional de contar histórias. Nega repetidamente pressuposições arrai- gadas, sem falar em um bom número de aspirações. Mas nada disso a torna menos provável.

A ideia de que sob a mente consciente se escondem processos mentais inconscientes não é nova. Foi exposta pela primeira vez há mais de cem anos, recebida pelo público com certa surpresa, mas ho- je é coisa batida. O que a maioria não compreende plenamente, em- bora esteja bem estabelecido, é que, muito antes de possuírem mente, os seres vivos já mostravam comportamentos eficientes e ad- aptativos que, para todos os efeitos, assemelhavam-se aos que surgem nas criaturas dotadas de mente e consciência.

Necessariamente, tais comportamentos não eram causados pela mente, muito menos pela consciência. Em resumo, o caso não é só que processos conscientes e não conscientes coexistem, mas que os processos não conscientes que são importantes para manter a vida podem existir sem seus parceiros conscientes.

No que diz respeito à mente e à consciência, a evolução ensejou diferentes tipos de cérebro. Há o tipo de cérebro que produz com- portamento mas não parece possuir mente ou consciência; um exem- plo é o sistema nervoso da Aplysia californica, uma lesma-do-mar

que se tornou popular no laboratório do neurobiólogo Eric Kandel. Outro tipo produz a série inteira de fenômenos - comportamento, mente e consciência - e desse tipo o cérebro humano é obviamente o exemplo por excelência. E um terceiro tipo de cérebro claramente produz comportamento, talvez produza uma mente, mas não está tão claro se gera ou não uma consciência no sentido aqui exposto. É o caso dos insetos.

As surpresas não terminam com a ideia de que, na ausência de mente e consciência, cérebros podem produzir comportamentos dignos do nome. Acontece que seres vivos sem cérebro algum, in- clusive unicelulares, também apresentam um comportamento apar- entemente inteligente e deliberado. E esse também é um fato ao qual não se dá a devida atenção.

Não há dúvida de que podemos ter vislumbres úteis do modo como o cérebro humano produz a mente consciente se compreender- mos os cérebros mais simples que não produzem mente nem con- sciência. Conforme embarcamos nesse estudo retrospectivo, porém, evidencia-se que para explicar o surgimento de cérebros em tempos tão remotos precisamos retroceder ainda mais no passado, voltar ainda mais ao mundo das formas de vida simples, desprovidas não só de consciência e de mente, mas também de cérebro. De fato, se queremos descobrir os fundamentos do cérebro consciente, temos de nos aproximar dos princípios da vida. E aqui, novamente, deparamos com noções que não apenas são surpreendentes, mas que derrubam as pressuposições comuns acerca das contribuições do cérebro, da mente e da consciência para a gestão da vida.

No documento e o cerebro criou o homem.pdf (páginas 42-47)