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MAPAS E MENTES

No documento e o cerebro criou o homem.pdf (páginas 91-95)

O QUE HÁ NO CÉREBRO CAPAZ DE CRIAR A MENTE?

MAPAS E MENTES

Uma consequência espetacular do mapeamento incessante e dinâmico no cérebro é a mente. Os padrões mapeados constituem o que nós, criaturas conscientes, conhecemos como visões, sons, sensações táteis, cheiros, gostos, dores, prazeres e coisas do gênero - imagens, em suma. As imagens em nossa mente são os mapas mo- mentâneos que o cérebro cria de todas as coisas dentro ou fora de nosso corpo, imagens concretas e abstratas, em curso ou previamente

gravadas na memória. As palavras que uso agora para trazer estas ideias ao leitor formaram-se primeiro, ainda que de modo breve e im- preciso, como imagens auditivas, visuais ou somatossensitivas de fonemas e morfemas, antes que eu as implementasse na página em sua versão escrita. Analogamente, as palavras escritas que agora o leitor vê impressas são de início processadas em seu cérebro como imagens verbais (imagens visuais de linguagem escrita) antes que sua ação no cérebro desencadeie a evocação de outras imagens, de um tipo não verbal. Os tipos de imagens não verbais são aqueles que nos ajudam a exibir mentalmente os conceitos que correspondem às palavras. Os sentimentos que compõem um pano de fundo em cada instante mental e que indicam sobretudo aspectos do estado do corpo também são imagens. A percepção, em qualquer modalidade sensori- al, é resultado da habilidade cartográfica do cérebro.

As imagens representam as propriedades físicas das entidades e suas relações espaciais e temporais, bem como suas ações. Algumas imagens, que provavelmente resultam de um mapeamento que o cérebro faz dele próprio no ato de mapear, são muito abstratas. Descrevem os padrões de ocorrência dos objetos no tempo e no es- paço, as relações espaciais e o movimento dos objetos conforme sua velocidade e trajetória etc. Algumas imagens traduzem-se em com- posições musicais ou descrições matemáticas. O processo mental é um fluxo contínuo de imagens desse tipo, algumas das quais corres- pondem a eventos que estão ocorrendo fora do cérebro, enquanto outras são reconstituídas de memória no processo de evocação. A mente é uma combinação sutil e fluida de imagens de fenômenos em curso e de imagens evocadas, em proporções sempre mutáveis. As imagens na mente tendem a se relacionar entre si de modo lógico, com certeza quando correspondem a fenômenos no mundo externo

ou dentro do corpo, fenômenos esses que são inerentemente governa- dos pelas leis da física e da biologia que definem o que consideramos lógico. Obviamente, quando devaneamos podemos produzir continu- idades ilógicas de imagens, e o mesmo ocorre quando alguém sente vertigem - a sala não gira realmente, a mesa não vira para cima da pessoa, muito embora as imagens lhe digam coisa diferente -, e tam- bém quando se está sob efeito de drogas alucinógenas. Salvo essas situações especiais, o mais das vezes o fluxo de imagens avança no tempo, depressa ou devagar, em ordem ou aos saltos, e às vezes o fluxo avança não em uma sequência apenas, mas em várias. Ora as sequências são concorrentes, ocorrendo de modo paralelo, ora se en- contram e se sobrepõem. Quando a mente consciente está em pleno funcionamento, a sequência de imagens é eficiente e mal nos deixa entrever o que se passa nas margens.

Mas além da lógica imposta pelos fenômenos que estão em curso na realidade externa ao cérebro - uma disposição lógica que nossos circuitos cerebrais moldados pela seleção natural prenunciam já nos primeiros estágios de desenvolvimento - as imagens em nossa mente ganham mais ou menos destaque no fluxo mental conforme o valor que têm para o indivíduo. E de onde vem esse valor? Ele vem do conjunto original de disposições que orientam a regulação da vida, e também dos valores que foram atribuídos a todas as imagens que adquirimos gradualmente em nossa existência, baseados no con- junto original de disposições de valor em nossa história passada. Em outras palavras, a mente não se ocupa apenas de imagens que entram naturalmente em sequência. Ela também se ocupa de escolhas, edita- das como em um filme, que nosso disseminado sistema de valor bio- lógico favoreceu. A procissão mental não respeita a ordem de en- trada. Segue seleções baseadas no valor, inseridas em uma estrutura

lógica ao longo do tempo.4

Finalmente, e essa é outra questão fundamental, temos mente não consciente e mente consciente. Imagens continuam a formar-se, pela percepção ou evocação, mesmo quando não estamos conscientes delas. Muitas imagens nunca recebem a atenção da consciência e não são ouvidas ou vistas diretamente na mente consciente. E no entanto, em muitos casos tais imagens são capazes de influenciar nosso pensamento e nossas ações. Um rico processo mental relacionado ao raciocínio e ao pensamento criativo pode ocorrer enquanto estamos conscientes de outra coisa. Retomarei o tema da mente não con- sciente na parte IV.

Em conclusão, as imagens baseiam-se em mudanças que ocorr- em no corpo e no cérebro durante a interação física de um objeto com o corpo. Sinais enviados por sensores localizados em todo o corpo constroem padrões neurais que mapeiam a interação do organ- ismo com o objeto. Os padrões neurais são formados transitoria- mente nas diversas regiões sensoriais e motoras do cérebro que nor- malmente recebem sinais provenientes de regiões específicas do corpo. A montagem dos padrões neurais transitórios é feita a partir de uma seleção de circuitos neuronais recrutados pela interação. Po- demos conceber esses circuitos neuronais como tijolos preexistentes no cérebro para serem usados na construção das imagens.

O mapeamento no cérebro é uma característica funcional dis- tintiva de um sistema dedicado a gerir e controlar o processo da vida. A capacidade do cérebro para criar mapas serve a seu propósito gestor. Em um nível simples, o mapeamento pode detectar a presença ou indicar a posição de um objeto no espaço ou a direção de sua tra- jetória. Isso pode ser útil para percebermos um perigo ou uma opor- tunidade que devemos evitar ou aproveitar. E, quando nossa mente se

serve de múltiplos mapas de todas as variedades sensoriais e cria uma perspectiva multíplice do universo externo ao cérebro, podemos reagir com mais precisão aos objetos e fenômenos nesse universo. Além disso, quando os mapas são gravados na memória e podem ser trazidos de volta, evocados na imaginação, tornamo-nos capazes de planejar e inventar respostas melhores.

No documento e o cerebro criou o homem.pdf (páginas 91-95)