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O PRINCÍPIO DA MENTE

No documento e o cerebro criou o homem.pdf (páginas 100-111)

O QUE HÁ NO CÉREBRO CAPAZ DE CRIAR A MENTE?

O PRINCÍPIO DA MENTE

Para ilustrar minha ideia quando me refiro ao princípio da mente, preciso discorrer, mesmo que brevemente, sobre três fontes de evidências. Uma provém de pacientes com lesão nos córtices in- sulares. Outra, de crianças nascidas sem córtex cerebral. A terceira está associada às funções do tronco cerebral em geral e às funções dos colículos superiores em particular.

As sensações de dor e prazer depois de destruição insular

No capítulo sobre as emoções (capítulo 5), veremos que os cór- tices insulares sem dúvida participam do processamento de uma grande variedade de sentimentos, desde os que acompanham as emoções até os que representam prazer ou dor, conhecidos resumida- mente como sentimentos corporais. Lamentavelmente, as eloquentes evidências que associam sentimentos à ínsula foram interpretadas como um indício de que a base de todos os sentimentos encontra-se apenas no nível cortical; assim, os córtices insulares são vistos como equivalentes aproximados dos córtices visuais e auditivos iniciais. Mas assim como a destruição dos córtices visuais e auditivos não

extingue a visão e a audição, a destruição total dos córtices insulares, de ponta a ponta nos dois hemisférios cerebrais, não resulta em uma extinção total dos sentimentos. Ao contrário: sentimentos de dor e prazer permanecem após um dano em ambos os córtices insulares causado pela encefalite por Herpes simplex. Com meus colegas Hanna Damásio e Daniel Tranel, observei repetidamente que tais pa- cientes apresentam respostas de prazer ou dor na presença de uma variedade de estímulos e que continuam a sentir emoções, as quais eles relatam de modo inequívoco. Os pacientes mencionam descon- forto com temperaturas extremas, sentem tédio com tarefas maçantes e se aborrecem quando seus pedidos são negados. A reatividade so- cial que depende da presença de sentimentos emocionais não fica comprometida. O apego é mantido até mesmo com pessoas que eles não são capazes de reconhecer como entes queridos ou conhecidos porque, como parte da síndrome herpética, um dano concomitante no setor anterior dos lobos temporais compromete gravemente a memória autobiográfica. Além disso, a manipulação experimental de estímulos leva a mudanças demonstráveis na experiência dos senti- mentos.7

Faz sentido supor que, na ausência dos dois córtices insulares, os sentimentos de dor e prazer surgem em dois núcleos do tronco cereb- ral já mencionados (do trato solitário e parabraquial), ambos recept- ores adequados de sinais provenientes do interior do corpo. Em indi- víduos normais, esses dois núcleos enviam seus sinais para o córtex insular por intermédio de núcleos talâmicos dedicados (capítulo 4). Em resumo, enquanto os núcleos do tronco cerebral assegurariam um nível básico de sentimentos, os córtices insulares proporcionariam uma versão mais diferenciada desses sentimentos e, importantíssimo, seriam capazes de associar os sentimentos a outros aspectos da

cognição com base na atividade de outras partes do cérebro.8 Os dados que corroboram essa ideia são reveladores. O núcleo do trato solitário e o núcleo parabraquial recebem um conjunto com- pleto de sinais que descrevem o estado do meio interno do corpo como um todo. Nada lhes escapa. Há sinais da medula espinhal e do núcleo trigemina! e até sinais de regiões "nuas" do cérebro, como a área postrema vizinha, que são desprovidas da barreira hematoence- fálica e cujos neurônios respondem diretamente a moléculas que cir- culam pela corrente sanguínea. Os sinais compõem um quadro abrangente do meio interno e das vísceras, e esse quadro vem a ser o principal componente de nossos estados de sentimento. Esses núcleos são profusamente conectados uns aos outros e também têm ricas conexões com a matéria cinzenta periaquedutal (ou PAG, peri-

aqueductal gray), situada nas proximidades. A PAG é um complexo

conjunto de núcleos, com várias subunidades, e origina um vasto conjunto de respostas emocionais relacionadas a defesa, agressão e tolerância à dor. O riso e o choro, expressões de nojo ou medo e as reações de paralisar-se ou correr em situações de medo são desen- cadeados a partir da PAG. O vaivém das conexões entre esses núcleos presta-se bem à produção de representações complexas. O diagrama básico das conexões dessas regiões as qualifica para o pa- pel de produtoras de imagens, e o tipo de imagem gerado por esses núcleos são sentimentos. Além disso, como esses sentimentos são etapas iniciais e fundamentais da construção da mente e como são cruciais para a manutenção da vida, faz sentido na boa engenharia (quero dizer que faz sentido evolucionariamente) que o maquinário de apoio tenha por base estruturas literalmente vizinhas às da regu- lação da vida.9

Figura 3.2. O painel A mostra imagens por ressonâncía magnética de um paciente com dano total nos córtices insulares nos hemisférios esquerdo e direito. À es- querda, vemos uma reconstrução tridimensional do cérebro do paciente. À direita, temos dois cortes transversais no cérebro (indicados como l e 2), ao longo das lin- has pretas vertical e horizontal à esquerda, respectivamente assinaladas como 1 e

2. A área em preto corresponde ao tecido cerebral destruído pela doença. As setas brancas mostram os locais onde deveria estar a ínsula. O painel B mostra um cérebro normal em três dimensões e dois cortes feitos nos mesmos níveis. As setas pretas indicam o córtex insular normal.

A estranha situação das crianças sem córtex cerebral

Por várias razões, podem nascer crianças com estruturas do tronco cerebral intactas mas desprovidas de boa parte das estruturas telencefálicas: córtex cerebral, tálamo e gânglios basais. Essa triste condição pode ocorrer mais comumente em razão de um acidente vascular grave no útero e, em consequência, a maior parte ou o total do córtex cerebral é danificado e reabsorvido, deixando a cavidade craniana cheia de líquido cerebroespinhal.

Essa condição recebe o nome de hidranencefalia, termo que a distingue das anomalias de desenvolvimento conhecidas de modo geral como anencefalia, as quais comprometem outras estruturas além do córtex cerebral.10As crianças afetadas podem sobreviver por muitos anos, inclusive até depois da adolescência, e frequentemente se supõe que sua condição seja "vegetativa". Em geral, são inter- nadas em hospitais especializados.

No entanto, essas crianças estão longe de ser vegetativas. Ao contrário, estão despertas e apresentam comportamentos. Em um grau limitado, porém não insignificante, conseguem comunicarse com quem cuida delas e interagir com o mundo. Sua mente manifest- amente está funcionando, em contraste com a situação dos pacientes em estado vegetativo ou com mutismo acinético. Seu infortúnio permite-nos um raro vislumbre do tipo de mente que ainda pode ser engendrada na ausência do córtex cerebral.

Como são essas pobres crianças? Seus movimentos são muito limitados devido à falta de tônus muscular na espinha e à espasticid- ade de seus membros. Mas podem mover livremente a cabeça e os olhos e demonstrar emoções no rosto. Podem sorrir na presença de estímulos que fariam sorrir uma criança normal, como um brinquedo, algum som, e até rir e expressar alegria normal quando alguém lhes faz cócegas. Elas podem franzir o cenho e retrair-se ao sofrer estímu- los dolorosos. São capazes de mover-se na direção de um objeto ou situação que desejam - por exemplo, engatinhar até um trecho de as- soalho iluminado pelo sol e ali ficar desfrutando o calor. A expressão que se vê então nessas crianças é de satisfação, ou seja, elas mani- festam exteriormente o tipo de sentimentos que previsivelmente ver- íamos surgir na presença de uma resposta emocional apropriada ao estímulo.

Essas crianças são capazes de orientar a cabeça e os olhos, ainda que sem firmeza, para a pessoa que se dirige a elas ou que as toca, e revelar preferência por determinados indivíduos. Tendem a sentir medo de estranhos e parecem mais felizes quando estão perto da mãe ou da pessoa que normalmente cuida delas. Seus gostos e aversões são evidentes, notavelmente na esfera musical. Elas tendem a preferir certas músicas, podem responder a diferentes sons de instrumentos e vozes humanas. Também podem responder a andamentos musicais diferentes e a distintos estilos de composição. Seu rosto é um bom reflexo de seu estado emocional. Em suma, elas se mostram mais alegres quando são tocadas ou lhes fazem cócegas, quando ouvem suas músicas favoritas e quando veem certos brinquedos. Obvia- mente ouvem e veem, embora não tenhamos como saber se o fazem bem ou mal. Sua audição parece superior à visão.

subcortical, muito provavelmente dos colículos, que são intactos. Tudo o que sentem é produzido subcorticalmente, pelo núcleo do trato solitário e pelo núcleo parabraquial, que são intactos, pois elas não possuem o córtex insular nem os córtices somatossensitivos I e II para assistir nessa tarefa. As emoções que produzem têm de ser des- encadeadas a partir dos núcleos na matéria cinzenta periaquedutal e ser executadas pelos núcleos do nervo craniano que controlam as ex- pressões faciais das emoções (esses núcleos também são intactos). O gerenciamento do processo da vida é alicerçado em um hipotálamo intacto, localizado imediatamente acima do tronco cerebral, e ajudado por um sistema endócrino intacto e pela rede do nervo vago. As meninas hidranencefálicas até menstruam na puberdade.

Não há dúvida de que um processo mental se evidencia nessas crianças. Do mesmo modo, suas expressões de alegria, mantidas por muitos segundos ou até por minutos e condizentes com o estímulo causador, nos fornecem razões para que as associemos a estados de sentimento. Sou levado a supor que a alegria que elas demonstram é uma alegria real sentida, mesmo que não sejam capazes de expressá- las em palavras. Se isso for verdade, elas atingem o primeiro degrau de um mecanismo que conduz gradualmente à consciência, ou seja, sentimentos ligados a uma representação integrada do organismo (um

protosself), possivelmente modificados pela interação com objetos,

constituindo uma experiência elementar.

A possibilidade de que elas tenham de fato uma mente con- sciente, ainda que extremamente modesta, é corroborada por uma fascinante descoberta. Quando essas crianças sofrem uma convulsão de ausência, seus cuidadores detectam facilmente o começo da crise; também conseguem distinguir o fim da crise, quando dizem que "a criança voltou para eles". A convulsão parece suspender a mínima

consciência que normalmente apresentam.

Os hidranencefálicos mostram-nos um quadro perturbador que nos informa sobre os limites das estruturas do tronco cerebral e do córtex cerebral no ser humano. Essa condição refuta a ideia de que a senciência, os sentimentos e as emoções têm origem apenas no cór- tex cerebral. Isso é impossível. O grau possível de senciência, senti- mento e emoção em tais casos é obviamente limitado e, muito im- portante, é desvinculado do mundo mental mais amplo que, isso sim, só o córtex cerebral pode permitir. No entanto, como passei boa parte da vida estudando os efeitos de lesões cerebrais sobre a mente e o comportamento humano, posso afirmar que essas crianças pouco têm em comum com os pacientes em estado vegetativo, uma condição na qual a interação com o mundo é ainda mais reduzida e que pode, aliás, ser causada por lesões precisamente nas mesmas regiões do tronco cerebral que estão intactas nos hidranencefálicos. Se é que po- demos fazer alguma comparação - depois de abstrair as deficiências motoras -, seria entre as crianças hidranencefálicas e os recém-nas- cidos, nos quais claramente existe uma mente em funcionamento mas o self central ainda é incipiente. Isso condiz com o fato de que os hidranencefálicos podem ter sua condição diagnosticada meses após o nascimento, quando os pais notam que não se desenvolvem bem e os exames de imagem revelam a catastrófica ausência do córtex. A razão por trás da vaga semelhança não é muito difícil de perceber: os recém-nascidos normais não possuem um córtex cerebral totalmente mielinizado, que virá com o desenvolvimento. Eles já possuem um tronco cerebral plenamente funcional, mas seu córtex cerebral ainda é apenas parcialmente funcional.

Os colículos superiores são parte do teto, uma região fortemente inter-relacionada com os núcleos da matéria cinzenta periaquedutal e, indiretamente, com o núcleo do trato solitário e com o núcleo par- abraquial. A participação do colículo superior no comportamento lig- ado à visão é bem conhecida. No entanto, com exceção dos notáveis estudos de Bernard Strehler, Jaak Panksepp e Bjorn Merker, o pos- sível papel dessas estruturas no processo da mente e do self rara- mente é levado em conta.11A anatomia do colículo superior é fascin- ante e quase nos compele a supor o que sua estrutura deve realizar. O colículo superior tem sete camadas; as camadas I a III são as "super- ficiais", enquanto as de IV a VII são chamadas de "profundas''. To- das as conexões que entram e saem das camadas superficiais relacionam-se à visão, e a camada II, a principal camada superficial, recebe sinais da retina e do córtex visual primário. Essas camadas su- perficiais formam um mapa retinoscópico do campo visual contralat- eral.12

As camadas profundas do colículo superior contêm, além de um mapa do mundo visual, mapas topográficos de informações auditivas e somáticas, estas últimas provenientes da medula espinhal e do hi- potálamo. As três variedades de mapas - visuais, auditivos e somáti- cos - têm um registro espacial. Isso significa que são empilhadas de modo tão preciso que as informações disponíveis em um mapa para, por exemplo, a visão correspondem às informações, em outro mapa, relacionadas à audição ou ao estado do corpo.13Em nenhum outro lugar do cérebro informações fornecidas pela visão, audição e vários aspectos do estado do corpo apresentam tamanho grau de sobre- posição, oferecendo a perspectiva de integração. Essa integração torna-se ainda mais significativa porque seus resultados podem ter

acesso ao sistema motor (por intermédio das estruturas próximas na matéria cinzenta periaquedutal e via córtex cerebral).

Outro dia, uma simpática lagartixa corria pelo terraço lá de casa atrás de uma mosca desajuizada, que insistia em voar zumbindo peri- gosamente perto dela. A lagartixa rastreou direitinho a mosca e por fim a fisgou com a língua no instante preciso. Seus neurônios colicu- lares mapearam a posição da mosca de momento a momento e guiaram os músculos da lagartixa, comandando a saída da língua quando a presa se pôs ao alcance. A perfeição adaptativa desse com- portamento visuomotor a seu ambiente é impressionante. Mas agora, para ficarmos ainda mais impressionados, imaginemos a vertiginosa sequência de disparos neuronais do calículo superior da lagartixa e façamos uma pausa para refletir. O que foi que a lagartixa viu? Não posso ter certeza, mas desconfio que ela viu um pontinho preto em movimento, ziguezagueando por um campo de visão sem outros ele- mentos nítidos. O que é que a lagartixa sabia sobre o que estava acontecendo? Nada, suponho, naquele sentido de saber que é o nosso. E o que ela sentiu quando comeu seu trabalhoso almoço? Penso que seu tronco cerebral registrou o êxito do comportamento de acompanhar e atingir o alvo e os resultados da melhora de seu estado homeostático. Os substratos dos sentimentos da lagartixa provavel- mente estavam em boa ordem, embora ela não fosse capaz de refletir sobre a notável habilidade que acabara de exibir. Ah, se ela soubesse!

Essa poderosa integração de sinais está a serviço de um propósito óbvio e imediato: coligir informações necessárias para guiar uma ação eficaz, seja o movimento dos olhos, dos membros ou da língua. Isso é alcançado graças a ricas conexões que vão dos colículos a todas as regiões cerebrais necessárias para guiar os

movimentos eficazmente, no tronco cerebral, medula espinhal, tálamo e córtex cerebral. Mas, além de possibilitar a orientação bem- sucedida dos movimentos, é possível que existam consequências mentais "internas" desse útil mecanismo. Muito provavelmente, os mapas integrados produzidos no próprio colículo superior também geram imagens - nada que se compare à riqueza daquelas criadas no córtex cerebral, mas ainda assim imagens. Algo dos princípios da mente provavelmente pode ser encontrado aqui, e quem sabe também algo dos princípios do self.14

E quanto ao colículo superior no ser humano? Nos humanos, a destruição seletiva do colículo superior é rara, tão rara que na liter- atura neurológica só existe um caso registrado de dano bilateral, fel- izmente estudado por um eminente neurologista e neurocientista, Derek Denny-Brown.15A lesão foi causada por trauma, e o paciente sobreviveu por meses com a consciência gravemente comprometida, em um estado que mais se assemelhava ao mutismo acinético. Isso indica um comprometimento da atividade mental, mas devo acres- centar que na ocasião em que encontrei um paciente com dano colicular, só pude detectar um breve distúrbio da consciência.

Ver apenas com os colículos depois de ter perdido os córtices visuais possivelmente consiste em perceber que algum objeto não es- pecificado está se movendo em um dos quadrantes da visão - afastando-se, digamos, ou se aproximando. Em nenhum dos casos a pessoa será capaz de descrever mentalmente o objeto, e talvez nem mesmo esteja consciente dele. Estamos falando aqui de uma mente muito vaga, coligindo informações superficiais sobre o mundo, em- bora o fato de as imagens serem imprecisas e incompletas não as torne inúteis ou inválidas, como atestam os pacientes com visão ce- ga. Mas quando a ausência dos córtices visuais é congênita, como

nos casos dos pacientes hidranencefálicos já mencionados, os colícu- los superior e inferior podem dar contribuições mais substanciais ao processo mental.

Devo acrescentar um último fato às evidências que nos aconsel- ham a promover o colículo superior a contribuidor da mente. O colículo superior produz oscilações elétricas na banda gama, um fenômeno que foi associado à ativação sincrônica de neurônios e que, na hipótese do neurofisiologista Wolf Singer, é um correlato da percepção coerente, possivelmente até da consciência. Pelo que sabemos até o presente, o colículo superior é a única região do cérebro fora do córtex que apresenta oscilações na banda gama.16

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