• Nenhum resultado encontrado

A MEMÓRIA EM AÇÃO

No documento e o cerebro criou o homem.pdf (páginas 172-176)

O QUE HÁ NO CÉREBRO CAPAZ DE CRIAR A MENTE?

A MEMÓRIA EM AÇÃO

Eis, assim, o problema. Além de criar representações mapeadas que resultem em imagens perceptuais, o cérebro realiza outra proeza igualmente notável: cria registros de memória dos mapas sensoriais e reproduz uma aproximação de seu conteúdo original. Esse processo é conhecido como recall, ou evocação. Lembrar uma pessoa ou evento ou contar uma história requer a evocação; reconhecer objetos e situ- ações a nossa volta também, e o mesmo vale para pensar em objetos com os quais interagimos e acontecimentos que percebemos, e para todo o processo imaginativo com o qual planejamos para o futuro.

Para que possamos entender como a memória funciona, temos de entender como o cérebro faz o registro de um mapa e de sua local- ização. Ele cria um fac-símile da coisa a ser memorizada, uma es- pécie de cópia permanente gravada num arquivo? Ou reduz a im- agem a um código, como se a digitalizasse? Qual dessas alternativas? Como? Onde?

Onde o registro é reproduzido durante a evocação para que as pro- priedades essenciais da imagem original possam ser recuperadas? Quando Dick Diver, em Suave é a noite, ouvir novamente os tiros, onde, no seu cérebro, eles serão reproduzidos? Quando você pensa em um amigo que perdeu ou em uma casa onde morou, conjura uma coleção de imagens dessas entidades. Elas são menos vívidas do que a coisa real ou do que uma fotografia. Mas imagens recordadas po- dem manter as propriedades básicas do original, tanto assim que um engenhoso neurocientista cognitivo, Steve Kosslyn, consegue estimar o tamanho relativo de um objeto evocado e inspecionado na mente.3 Onde as imagens são reconstituídas para que possamos estudá-las em nossas cogitações?

As respostas tradicionais a essa questão (na verdade, suposições seria um termo melhor) inspiram-se em uma explicação convencion- al da percepção sensorial. Assim, diferentes córtices sensoriais inici- ais (boa parte em seções posteriores do cérebro) trariam os compon- entes de informações perceptuais por trajetos cerebrais até os chama- dos córtices multimodais (boa parte em seções frontais), e estes as in- tegrariam. A percepção operaria com base em uma cascata de pro- cessadores seguindo uma direção. A cascata extrairia, passo a passo, sinais cada vez mais refinados, primeiro nos córtices sensitivos de uma única modalidade (por exemplo, visual) e depois nos córtices multimodais, os que recebem sinais de mais de uma modalidade (por exemplo, visual, auditiva e somática). A cascata seguiria, em geral, uma direção caudo-rostral (da parte posterior para a frontal) e cul- minaria nos córtices anteriores temporais e frontais, onde presum- ivelmente ocorrem as representações mais integradas da apreensão multissensorial corrente da realidade.

célula-avó é um neurônio em alguma parte próxima do topo da cas- cata de processamento (por exemplo, o lobo temporal anterior) cuja atividade representaria, inerentemente e com abrangência, a nossa avó quando a percebemos. Essas células (ou pequenos grupos de células) reteriam uma representação abrangente de objetos e fenô- menos durante a percepção. E mais: elas também manteriam um re- gistro desses conteúdos percebidos. Os registros de memória estari- am onde estão as células-avós. Numa proeza ainda maior, e em res- posta direta à questão feita anteriormente, células-avós reativadas permitiriam a evocação desses mesmos conteúdos percebidos de imediato e em sua totalidade. Em suma, a atividade nesses neurônios seria responsável pela recordação de imagens variadas e adequada- mente integradas, entre elas o rosto da nossa avó ou os tiros que Dick Diver ouviu na estação. Esse seria o onde da recordação.

A meu ver, a hipótese acima é pouco prometedora. Nessa inter- pretação, um dano nos córtices do lobo temporal e frontal, as regiões anteriores do cérebro, deveriam impossibilitar tanto a percepção como a evocação normais. A percepção normal não ocorreria porque os neurônios capazes de criar a representação totalmente integrada de uma experiência perceptual coesa não seriam mais funcionais. A re- cordação normal seria impossível porque as mesmas células que alicerçam a percepção integrada também fundamentariam os regis- tros de memória integrados.

Infelizmente para a visão tradicional, essa predição não é cor- roborada pela realidade dos dados neuropsicológicos. Exponho a seguir o essencial dessa realidade discordante. Pacientes com dano nas regiões anteriores do cérebro -frontais e temporais -relatam per- cepção normal e apresentam apenas deficiências seletivas na evoc- ação e reconhecimento de objetos e eventos únicos.

Esses pacientes conseguem descrever minuciosamente os con- teúdos de uma fotografia quando a veem, classificam-na correta- mente, por exemplo, como uma fotografia de uma festa (de aniver- sário, de casamento), e no entanto não conseguem reconhecer que a festa era deles mesmos. O dano em regiões anteriores não compro- mete a percepção integrada da cena como um todo nem a inter- pretação do seu significado. Também não compromete a percepção dos numerosos objetos que compõem o quadro e a recuperação do seu significado - pessoas, cadeiras, mesas, bolo de aniversário, velas, trajes de festa etc. A lesão em região anterior permite a visão integ- rada e a visão das partes. É preciso que a lesão esteja localizada em uma região totalmente diferente para que fique comprometido o acesso aos componentes separáveis da memória, aqueles que corres- pondem aos vários objetos ou características de objetos, como cor e movimento. Esse acesso é comprometido, mas apenas por danos que envolvem setores do córtex cerebral situados mais posteriormente do cérebro, próximo às principais regiões sensitivas e motoras.

Em conclusão, uma lesão nos córtices responsáveis pela asso- ciação e integração não impossibilita a percepção integrada, nem a evocação das partes que constituem um conjunto ou a recordação do significado de conjuntos não únicos de objetos e características. Um dano desse tipo causa uma deficiência específica e importante no processo de evocação: impede a recordação do que existe de único e específico nos objetos e cenas. Uma festa de aniversário única con- tinua a ser uma festa de aniversário, porém não é mais a festa es- pecífica de determinada pessoa, com o lugar e a data em que ela aconteceu. Somente um dano nos córtices sensoriais iniciais e ad- jacências, onde a mente é produzida, impossibilita a recordação das informações que um dia foram processadas nesses córtices e

gravadas nas proximidades.

No documento e o cerebro criou o homem.pdf (páginas 172-176)