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MAPEAMENTO E SIMULAÇÃO DE ESTADOS DO CORPO

No documento e o cerebro criou o homem.pdf (páginas 130-134)

O QUE HÁ NO CÉREBRO CAPAZ DE CRIAR A MENTE?

MAPEAMENTO E SIMULAÇÃO DE ESTADOS DO CORPO

Está comprovado que o corpo, na maioria de seus aspectos, é continuamente mapeado no cérebro e que uma quantidade variável mas considerável das informações correspondentes entra na mente consciente. Para que o cérebro coordene os estados fisiológicos no corpo propriamente dito, o que ele pode fazer sem que estejamos conscientes do processo, precisa ser informado sobre os vários parâ- metros fisiológicos nas diferentes regiões do corpo. As informações têm de ser atuais e coerentes, de momento a momento, para permitir um controle ótimo.

Mas essa não é a única rede que liga o corpo e o cérebro. Por volta de 1990 apresentei a hipótese de que, em certas circunstâncias, por exemplo, no decorrer de uma emoção, o cérebro com rapidez constrói mapas do corpo comparáveis aos que ocorreriam se o corpo

efetivamente houvesse sido mudado por essa emoção. A construção pode ocorrer antes das mudanças emocionais em decurso no corpo, ou até mesmo em vez dessas mudanças. Em outras palavras, o cérebro pode simular, em regiões somatossensitivas, certos estados corporais como se eles estivessem ocorrendo; e como nossa per- cepção de qualquer estado corporal está alicerçada nos mapas corpo- rais das regiões somatossensitivas, percebemos o estado do corpo como se ele estivesse efetivamente ocorrendo, mesmo que não es- teja.7

Na época em que apresentei essa hipótese da "alça corpórea vir- tual" [as-if body loop], as evidências que consegui coligir para dar- lhe respaldo eram circunstanciais. Faz sentido para o cérebro saber sobre o estado do corpo que ele está prestes a produzir. As vantagens dessa espécie de "simulação antecipada" evidenciam-se em estudos do fenômeno da cópia eferente. A cópia eferente é o que permite a estruturas motoras que estão na iminência de comandar a execução de determinado movimento informar as estruturas visuais da con- sequência provável desse movimento no que respeita ao desloca- mento espacial. Por exemplo, quando nossos olhos estão prestes a mover-se na direção de um objeto situado na periferia da visão, a re- gião visual do cérebro é avisada do movimento iminente e fica pronta para facilitar a transição para o novo objeto sem criar um bor- rão na imagem. Em outras palavras, permite-se que a região visual preveja a consequência do movimento.8Simular um estado do corpo sem de fato produzi-lo reduziria o tempo de processamento e pouparia energia. A hipótese da alça corpórea virtual implica que as estruturas cerebrais incumbidas de desencadear determinada emoção são capazes de se conectar às estruturas nas quais seria mapeado o estado corporal correspondente à emoção. Por exemplo, a amígdala

(um sítio desencadeador do medo) e o córtex pré-frontal ventromedi- ano (o sítio que desencadeia a compaixão) teriam de conectar-se com regiões somatossensitivas, áreas como o córtex insular, SII, sr e os córtices associativos somatossensitivos, onde estados correntes do corpo são processados continuamente. Tais conexões existem, e as- sim possibilitam a implementação do mecanismo da alça corpórea virtual. Recentemente várias fontes trouxeram subsídios para essa hipótese. Uma delas é a série de experimentos feitos por Giacomo Rizzolatti e colegas. Eles implantaram eletrodos no cérebro de maca- cos e puseram esses animais para observar um pesquisador que ex- ecutava diversas ações. Quando um macaco via o pesquisador mover a mão, neurônios nas regiões cerebrais do macaco relacionadas aos movimentos de sua própria mão ativavam-se, "como se" o macaco, e não o investigador, estivesse executando a ação. Na realidade, porém, o macaco permanecia imóvel. Os autores denominaram neurônios-espelho aqueles neurônios que se comportaram desse modo.9

Os chamados neurônios-espelho são, com efeito, o supremo dis- positivo de simulação dos estados do corpo no cérebro. A rede na qual esses neurônios estão inseridos realiza conceitualmente o que visualizei como o sistema da alça corpórea virtual: a simulação, em mapas cerebrais do corpo, de um estado corporal que não está ocor- rendo de verdade no organismo. O fato de que o estado corporal sim- ulado pelos neurônios-espelho não é o estado corporal do indivíduo amplifica o poder de sua semelhança funcional. Se um cérebro com- plexo pode simular o estado corporal de outro indivíduo, é de supor que seria capaz de simular os estados de seu próprio corpo. Um es- tado que já ocorreu no organismo deveria ser mais fácil de simular, pois já foi mapeado precisamente pelas mesmas estruturas

somatossensitivas que agora são responsáveis por simulá-lo. Suponho que o sistema da simulação aplicado a terceiros não se teria desenvolvido se antes de tudo não existisse um sistema de simulação aplicado ao próprio organismo ao qual pertence o cérebro.

A natureza das estruturas cerebrais envolvidas nesse processo reforça a sugestiva semelhança funcional entre a alça corpórea virtu- al e o funcionamento dos neurônios-espelho. Para a alça corpórea virtual, supus que neurônios em áreas associadas à emoção, como o córtex pré-motor/pré-frontal (no caso da compaixão) e a amígdala (no caso do medo), ativariam regiões que normalmente mapeiam o estado do corpo e, por sua vez, o impelem à ação. Nos humanos es- sas regiões incluem o complexo somatomotor nos opérculos rolândi- cos e parietais e o córtex insular. Todas essas regiões têm duplo pa- pel somatomotor: podem manter um mapa do estado do corpo, um papel sensorial, e também participar de uma ação. De modo geral, foi isso que revelaram os experimentos neurofisiológicos com os maca- cos. Condiz também com estudos em humanos usando magnetoence- falografia IO e neuroimagens funcionais.11Nossos próprios estudos, baseados em lesões neurológicas, apontam nessa mesma direção.12

As explicações sobre a existência dos neurônios-espelho res- saltam o possível papel que eles podem ter para nos permitir en- tender as ações de outros colocando-nos em um estado corporal com- parável. Quando observamos uma ação em outro indivíduo, nosso cérebro capaz de sentir o corpo adota o estado corporal que teríamos caso nós mesmos estivéssemos executando essa ação, e muito provavelmente ele faz isso não por meio de padrões sensoriais passivos, mas de uma pré-ativação de estruturas motoras - torna-se pronto para ação, mas ainda sem permissão para agir e, em alguns casos, por meio de uma ativação motora real.

Como foi que evoluiu um sistema fisiológico assim complexo? Desconfio que ele se originou em um sistema anterior de alça corpórea virtual, que o cérebro complexo já vinha usando havia muito tempo para simular seus próprios estados corporais. Isso teria trazido uma vantagem clara e imediata: a ativação rápida e com eco- nomia de energia dos mapas de determinados estados corporais, que por sua vez se associavam a um conhecimento do passado e a estraté- gias cognitivas relevantes. Por fim, o sistema de simulação foi aplic- ado a terceiros e prevaleceu graças às igualmente óbvias vantagens sociais que um indivíduo pode ter quando conhece os estados corpo- rais dos outros, já que tais estados são expressões de estados mentais. Em suma, considero o sistema da alça corpórea virtual em cada or- ganismo o precursor do funcionamento dos neurônios-espelho.

Como veremos na parte III, o fato de o corpo de um organismo poder ser representado no cérebro é essencial para a criação do self. Mas a representação do corpo pelo cérebro tem outra implicação fun- damental: assim como podemos representar os nossos próprios esta- dos corporais, podemos também simular com mais facilidade os esta- dos corporais equivalentes em outros indivíduos. Subsequentemente, a relação que estabelecemos entre nossos próprios estados corporais e a significância que eles adquiriram para nós podem ser transferidas para o estado corporal de terceiros simulado em nosso cérebro, e nessa etapa podemos atribuir uma significância comparável a essa simulação. O conjunto de fenômenos denotado pelo termo "empatia" deve muito a esse processo.

No documento e o cerebro criou o homem.pdf (páginas 130-134)