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A NEUROLOGIA DA MENTE

No documento e o cerebro criou o homem.pdf (páginas 95-100)

O QUE HÁ NO CÉREBRO CAPAZ DE CRIAR A MENTE?

A NEUROLOGIA DA MENTE

Faz sentido indagar que partes do cérebro trabalham para a ger- ação da mente e que partes não trabalham? É uma pergunta com- plicada mas legítima. Depois de um século e meio de estudo das con- sequências de lesões cerebrais, temos agora dados que permitem es- boçar uma resposta preliminar. Certas regiões do cérebro, apesar de suas importantes contribuições para funções cerebrais fundamentais, não participam da geração da mente. Certas regiões inequivocamente estão envolvidas na produção da mente em um nível básico, indis- pensável. E algumas outras regiões ajudam na geração da mente com tarefas que envolvem a criação e a recuperação de imagens, e tam- bém a administração do fluxo das imagens, cuidando de sua "edição" e continuidade.

A medula espinhal inteira parece não ser essencial à geração básica da mente. A perda total da medula espinhal acarreta graves deficiências motoras, perdas profundas da sensação do corpo e certo embotamento das emoções e sentimentos. No entanto, se o nervo vago, cujo trajeto é paralelo à medula espinhal, estiver preservado (como quase sempre ocorre em casos assim), o trânsito de sinais entre o cérebro e o corpo permanece forte o suficiente para assegurar o controle autônomo, gerenciar as emoções e sentimentos básicos e

manter os aspectos da consciência que requerem inputs do corpo. Sem dúvida, a produção da mente não é destruída por lesão na medula espinhal, o que sabemos muito bem com base em todos os tristes casos de pessoas acidentadas que sofreram lesão em qualquer nível da medula espinhal. A mente admirável de Christopher Reeve e também sua consciência sobreviveram à grave lesão que ele sofreu na medula espinhal. Exteriormente, segundo me recordo de um en- contro que tive com ele, só o sutil funcionamento de suas expressões emocionais ficou um tanto comprometido. Desconfio que as repres- entações mentais dos estímulos somatossensitivos provenientes dos membros e do tronco são totalmente formadas apenas no nível dos núcleos do tronco cerebral superior, com sinais que vêm tanto da medula espinhal como do nervo vago, deixando assim a medula es- pinhal em uma posição periférica em relação à geração básica da mente. (Outro modo de situar a medula espinhal relativamente à produção da mente é dizer que suas contribuições não fazem falta à função global, ainda que, quando as contribuições estão presentes, podem ser bem avaliadas. Depois de uma transeção da medula espin- hal, o paciente não sente dor, mas apresenta os reflexos "relacion- ados à dor", indicando que o mapeamento da lesão no tecido con- tinua a ser feito no nível da medula espinhal, mas não é sinalizado para cima, não chegando ao tronco cerebral e ao córtex).

A mesma isenção aplica-se ao cerebelo, sem dúvida no caso de adultos. O cerebelo tem papéis importantes na coordenação dos mo- vimentos e na modulação das emoções, além de estar envolvido no aprendizado e na evocação de habilidades e em aspectos cognitivos do desenvolvimento de habilidades. No entanto, pelo que sabemos, a produção da mente no nível básico não é de sua alçada. Podemos dizer o mesmo sobre o hipocampo, que é essencial para o

aprendizado de novos fatos e é regularmente recrutado pelo processo normal de evocação, mas cuja ausência não compromete a geração básica da mente. Tanto o cerebelo como o hipocampo são assistentes nos processos de edição e continuidade de imagens e movimentos, com várias regiões corticais dedicadas ao controle motor, que, provavelmente, também têm um papel na montagem das continuid- ades no processo mental. Isso é fundamental, obviamente, para o funcionamento abrangente da mente, mas não é necessário à produção básica de imagens. As evidências negativas quanto às capa- cidades do hipocampo e dos córtices adjacentes para gerar a mente são eloquentes. Provêm do comportamento e de relatos em primeira pessoa de pacientes cujos hipocampos e córtices temporais anteriores foram destruídos bilateralmente, em decorrência de condições como lesão anóxica, encefalite por Herpes simplex ou ablação cirúrgica. Para esses pacientes, em grande medida o aprendizado de novos fa- tos é impossível, e em menor grau eles também perdem a capacidade de recordar o passado. Ainda assim, a mente dessas pessoas continua imensamente rica, quase sempre com percepção visual, auditiva e tátil normal. Além disso, sua recordação de conhecimentos em níveis genéricos (não únicos) é abundante. A maior parte dos aspectos fun- damentais de sua consciência permanece intacta.

Para o córtex cerebral, o panorama é radicalmente diferente. Várias de suas regiões inequivocamente participam da produção das imagens que contemplamos e manipulamos na mente. E os córtices que não produzem imagens tendem a estar envolvidos em sua gravação ou manipulação durante o processo de raciocínio, decisão e ação. Os córtices sensoriais iniciais (as áreas corticais onde se inicia o processamento sensitivo) relacionados a visão, audição, sensação somática, paladar e olfato, que parecem ilhas no oceano do córtex

cerebral, certamente produzem imagens. Essas ilhas são auxiliadas na tarefa por dois tipos de núcleo talâmico: de retransmissão (que trazem informações da periferia) e de associação (com os quais vas- tos setores do córtex cerebral são conectados bidirecionalmente).

Dados eloquentes respaldam essa noção. Sabemos que um dano significativo em cada ilha do córtex sensorial incapacita substancial- mente a função de mapeamento do respectivo setor. Por exemplo, as vítimas de dano bilateral nos córtices visuais iniciais passam a sofrer de cegueira cortical. Tais pacientes perdem a capacidade de formar imagens visuais detalhadas, não só na percepção, mas em muitos casos também na evocação. Poderão ter uma visão residual que chamamos de "visão cega", na qual indicações não conscientes permitem-lhes certa orientação visual para suas ações. Uma situação comparável é vista em casos de dano significativo em outros córtices sensoriais. O restante do córtex cerebral, o oceano ao redor das ilhas, embora não participe primariamente da produção de imagens, está envolvido na construção e processamento, ou seja, na gravação, evocação e manipulação de imagens geradas nos córtices sensoriais iniciais, como veremos no capítulo 6.5

Eu, porém, contrariando a tradição e as convenções, acredito que a mente não é produzida apenas no córtex cerebral. Suas primeiras manifestações originam-se no tronco cerebral. A ideia de que o pro- cessamento mental começa no nível do tronco cerebral é tão in- comum que nem chega a ser malvista. Entre os que a defendem ar- dorosamente, destaco Jaak Panksepp. Essa ideia, e a noção de que os sentimentos primordiais surgem no tronco cerebral, são afins.6Dois núcleos do tronco cerebral, o núcleo do trato solitário e o núcleo par- abraquial, participam da geração de aspectos básicos da mente: os sentimentos suscitados pelos acontecimentos correntes da vida,

incluindo os que designamos como dor ou prazer. Na minha con- cepção, os mapas gerados por essas estruturas são simples e em grande medida desprovidos de detalhes espaciais, mas resultam em sentimentos. É muito provável que esses sentimentos são os prin- cipais constituintes da mente, baseados em sinais enviados direta- mente do corpo. Um dado interessante é que eles também são com- ponentes primordiais e indispensáveis do self e dão à mente a primeira e incipiente revelação de que seu organismo está vivo.

Figura 3.1. As variedades de mapas (imagens) e os objetos que as originam. Quando os mapas são experienciados, tornam-se imagens. Uma mente normal in- clui imagens de todas as três variedades acima citadas. As imagens do estado in- terno do organismo constituem os sentimentos primordiais. Imagens de outros as- pectos do organismo combinadas às do estado interno constituem sentimentos cor- porais específicos. Os sentimentos de emoções são variações de sentimentos corpo- rais complexos causados por um objeto específico e concernentes a ele. Imagens mundo externo são normalmente acompanhadas por imagens das variedades I e II. Sentimentos são uma variedade de imagem cuja relação única com corpo os torna especiais (ver capítulo 4). Os sentimentos são imagens sentidas espontaneamente. Todas as outras imagens são sentidas porque são acompanhadas pelas imagens

específicas que chamamos de sentimentos.

Esses importantes núcleos do tronco cerebral não produzem meros mapas virtuais do corpo; eles produzem estados corporais sen-

tidos. E, quando temos alguma sensação de dor e prazer, de' mos

agradecer primeiro a essas estruturas, assim como a estruturas motor- as que, em conjunto com elas, permitem uma alça sinalização entre o cérebro e o corpo: os núcleos da matéria cinzenta periaquedutal.

No documento e o cerebro criou o homem.pdf (páginas 95-100)