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O MAPEAMENTO DO CORPO

No documento e o cerebro criou o homem.pdf (páginas 118-123)

O QUE HÁ NO CÉREBRO CAPAZ DE CRIAR A MENTE?

O MAPEAMENTO DO CORPO

Como é que o cérebro mapeia o corpo? Tratando o corpo propri- amente dito e as suas partes como qualquer outro objeto, poderíamos dizer, mas isso não faria justiça à questão. Isso porque, para o cérebro, o corpo propriamente dito é mais do que apenas um objeto qualquer: ele é o objeto central do mapeamento, o primeiríssimo foco de sua atenção. (Sempre que possível, uso o termo "corpo" para des- ignar o "corpo propriamente dito" e deixar de lado o cérebro. É óbvio que o cérebro também faz parte do corpo, mas ele tem um status es- pecial: é a parte capaz de se comunicar com todas as outras partes do

corpo, e com a qual todas as demais partes se comunicam).

William James intuiu o grau em que o corpo seria trazido à mente, mas não podia saber como se revelariam intricados os mecan- ismos responsáveis pela transferência corpo-cérebro.3 O corpo usa sinais químicos e neurais para se comunicar com o cérebro, e o con- junto das informações transmitidas é maior e mais pormenorizado do que-James poderia ter suposto. Aliás, hoje estou convencido de que meramente falar em comunicação corpocérebro é deixar de fora o es- sencial. Embora parte da sinalização do corpo para o cérebro resulte em um mapeamento direto (por exemplo, o mapeamento da posição de um membro no espaço), uma parte substancial da sinalização é primeiro submetida a tratamento em núcleos subcorticais, na medula espinhal e especialmente no tronco cerebral, que não devem ser con- cebidos como estações intermediárias para os sinais do corpo a cam- inho do córtex cerebral. Como veremos na próxima seção, algo é adi- cionado nesse estágio intermediário. Isso é importante quando se trata dos sinais relacionados ao interior do corpo que virão a con- stituir os sentimentos. Além disso, os aspectos da estrutura física e do funcionamento do corpo estão gravados em circuitos cerebrais, desde o início do desenvolvimento, e geram padrões persistentes de atividade. Em outras palavras, alguma versão do corpo é perman- entemente recriada na atividade cerebral. A heterogeneidade do corpo é imitada no cérebro, um dos mais fortes indícios da dedicação do cérebro ao corpo. Por fim, o cérebro pode fazer mais do que meramente mapear, com maior ou menor fidelidade, os estados que estão ocorrendo no momento: ele pode transformar os estados corpo- rais e, mais dramaticamente, simular estados corporais que ainda não ocorreram.

como uma unidade, um pedaço único de carne ligado ao cérebro por fios vivos que chamamos de nervos. A realidade é bem outra. O corpo tem numerosos compartimentos separados. É verdade que as vísceras, às quais se dá tanta atenção, são essenciais. Exemplos de vísceras são: coração, pulmões, intestino, fígado e pâncreas, boca, língua e garganta, glândulas endócrinas (por exemplo, pituitária, tireoide, adrenais), ovários e testículos. Mas é preciso incluir nessa lista outras vísceras menos comumente mencionadas: um órgão tam- bém vital porém menos reconhecido, a pele, que envolve todo o nosso organismo, a medula óssea e dois espetáculos dinâmicos cha- mados sangue e linfa. Todos esses compartimentos são indispensá- veis para o funcionamento normal do corpo.

Talvez não seja de surpreender que o pensamento humano em tempos mais antigos, por ser menos integrado e refinado que o atual, percebesse facilmente a realidade divisa e fragmentada do nosso corpo, como nos levam a crer as palavras que chegaram até nós at- ravés de Homero. Os humanos da Ilíada não falam em um corpo in- teiro (soma), mas em partes do corpo, isto é, membros. Sangue, res- piração e funções viscerais são designados pela palavra "psique", ainda não convocada para denotar "mente" ou "alma".A animação que impele o corpo, provavelmente misturada ao impulso e à emoção, é thumos e phren.4

A comunicação corpo-cérebro é de mão dupla, do corpo para o cérebro e vice-versa. No entanto, essas duas vias de comunicação não são simétricas. Os sinais do corpo ao cérebro, neurais e quími- cos, permitem ao cérebro criar e manter um documentário multimídia sobre o corpo e permitem ao corpo alertar o cérebro sobre mudanças importantes que estão ocorrendo em sua estrutura e em seu estado. O meio interno - o banho em que habitam todas as células do corpo e

do qual as químicas do sangue são uma expressão - também envia sinais ao cérebro, não por intermédio dos nervos, mas de moléculas químicas, que interferem diretamente em certas partes do cérebro moldadas para receber suas mensagens. Portanto, o conjunto das in- formações transmitidas ao cérebro é vastíssimo. Inclui, por exemplo, o estado de contração ou dilatação de músculos lisos (os músculos que formam, entre outras coisas, as paredes das artérias, do intestino e dos brônquios), a quantidade de oxigênio e dióxido de carbono concentrada em dada região do corpo, a temperatura e o pH em vári- os locais, a presença de moléculas químicas tóxicas etc. Em outras palavras, o cérebro sabe qual era o estado passado do corpo e pode ser informado sobre as modificações que estiverem ocorrendo nesse estado. Estas últimas são essenciais para que o cérebro possa gerar respostas corretivas a mudanças que ameaçam a vida. Já os sinais do cérebro para o corpo, tanto neurais como químicos, consistem em comandos para mudar o corpo. Este diz ao cérebro: é assim que sou construído e é assim que você me vê agora. O cérebro diz ao corpo o que fazer para manter-se estável e equilibrado. Independentemente do que for requerido, ele também diz ao corpo como construir um es- tado emocional.

O corpo, entretanto, é mais do que os seus órgãos internos e meio interno. Também possui músculos, e eles são de dois tipos: lisos e estriados. A variedade estriada vista ao microscópio apresenta "faixas" (as estrias), que não se veem na variedade lisa. Os músculos lisos são evolucionariamente antigos e só são encontrados em víscer- as - a contração e distensão em nossos intestinos e brônquios devem- se a músculos lisos. Boa parte das paredes das nossas artérias é feita de músculos lisos - nossa pressão sanguínea sobe quando eles se con- traem ao redor da artéria. Em contraste, os músculos estriados são

ligados aos ossos do esqueleto e produzem os movimentos do corpo na parte externa. A única exceção a esse esquema é o coração, que também é feito de fibras musculares estriadas e cujas contrações servem não para movimentar o corpo, mas para bombear o sangue. Sinais que descrevem o estado do coração são enviados a sítios cerebrais dedicados às vísceras, e não aos que estão relacionados ao movimento.

Quando músculos esqueléticos são ligados a dois ossos articula- dos por uma junta, o encurtamento de suas fibras gera movimento. Pegar um objeto, andar, falar, respirar e comer são, todas, ações que dependem da contração e distensão de músculos esqueléticos. Sempre que tais contrações ocorrem, muda a configuração do corpo. Salvo os momentos de total imobilidade, que são infrequentes no es- tado de vigília, a configuração do corpo no espaço muda continua- mente, e o mapa do corpo representado no cérebro sofre mudanças correspondentes.

Para controlar os movimentos com precisão, o corpo deve trans- mitir instantaneamente ao cérebro informações acerca do estado de contração de músculos esqueléticos. Isso requer trajetos nervosos efi- cientes, os quais são evolucionariamente mais modernos do que os que transmitem os sinais das vísceras e do meio interno. Esses traje- tos chegam a regiões cerebrais dedicadas a detectar o estado desses músculos.

Como dissemos, o cérebro também envia mensagens ao corpo. De fato, muitos aspectos dos estados corporais que são continua- mente mapeados no cérebro foram primeiro causados por sinais do cérebro ao corpo. Como no caso da comunicação do corpo para o cérebro, este fala ao corpo por canais neurais e químicos. Os canais neurais usam nervos, cujas mensagens levam à contração de

músculos e à execução de ações. Os canais químicos envolvem hormônios, como cortisol, testosterona e estrogênio. A liberação de hormônios muda o meio interno e o funcionamento das vísceras.

Corpo e cérebro executam uma dança interativa contínua. Pensamentos implementados no cérebro podem induzir estados emo- cionais que são implementados no corpo, enquanto este pode mudar a paisagem cerebral e, assim, a base para os pensamentos. Os estados cerebrais, que correspondem a certos estados mentais, levam à ocor- rência de determinados estados corporais; os estados do corpo são então mapeados no cérebro e incorporados aos estados mentais cor- rentes. Uma pequena alteração no lado do cérebro nesse sistema pode ter consequências importantes para o estado do corpo (pense na liberação de qualquer hormônio); analogamente, uma pequena alter- ação no estado do corpo (pense numa restauração dental quebrada) pode ter um efeito importante sobre a mente assim que a mudança é mapeada e percebida como uma dor aguda.

No documento e o cerebro criou o homem.pdf (páginas 118-123)