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O DESENVOLVIMENTO DE INCENTIVOS

No documento e o cerebro criou o homem.pdf (páginas 73-76)

Como foi que os incentivos se desenvolveram? Incentivos sur- giram em organismos muito simples, mas são muito evidentes em organismos cujo cérebro é capaz de medir o grau da necessidade de determinada correção. Para que essa medição pudesse ocorrer, o cérebro precisava de uma representação de três situações: (1) o es- tado corrente do tecido vivo, (2) o estado desejável do tecido vivo, correspondente ao objetivo homeostático, e (3) uma comparação simples. Desenvolveu-se para esse propósito algum tipo de escala interna, indicadora do quanto faltava para que o estado corrente at- ingisse o objetivo, enquanto moléculas químicas cuja presença acel- erava certas respostas foram adotadas para facilitar a correção. Nós ainda sentimos os estados do nosso organismo com base em uma es- cala desse tipo, algo que fazemos inconscientemente, embora as con- sequências da medição se tornem conscientes quando nos sentimos com fome, famélicos ou saciados.

O que agora percebemos como sensações de dor ou prazer, ou como punições e recompensas, corresponde diretamente a estados integrados do tecido vivo em um organismo, sucedendo-se uns aos outros na atividade natural de gerenciar a vida. O mapeamento cerebral de estados nos quais os parâmetros dos tecidos se afastam significativamente da faixa homeostática em uma direção não con- ducente à sobrevivência é percebido com uma qualidade que viemos a denominar dor e punição. Analogamente, quando tecidos fun- cionam na melhor parte da faixa homeostática, o mapeamento cereb- ral dos estados correspondentes é percebido com uma qualidade que viemos a denominar prazer e recompensa.

Os agentes envolvidos na orquestração desses estados dos te- cidos são conhecidos como hormônios e neuromoduladores, e já es- tavam muito presentes em organismos simples compostos de uma única célula. Sabemos como funcionam essas moléculas. Por exem- plo, em organismos com cérebro, quando determinado tecido está ar- riscando sua saúde em razão de um nível perigosamente baixo de nutrientes, o cérebro detecta a mudança e gradua a necessidade e a urgência com que deve ser feita a correção. Isso ocorre de maneira não consciente, mas no cérebro com mente e consciência o estado correspondente a essas informações pode tornar-se consciente. Se isso ocorrer, o indivíduo terá uma sensação negativa que pode ir de desconforto a dor. Com ou sem consciência no processo, uma série de respostas corretivas entra em ação, em termos químicos e neurais, auxiliada por moléculas que aceleram o processo. No caso do cérebro consciente, porém, a consequência do processo molecular não é meramente uma correção do desequilíbrio: é também a re- dução de uma experiência negativa, como a dor, e uma experiência de prazer/recompensa. Esta última provém, em parte, do estado propício à vida que o tecido pode agora ter alcançado. Por fim, a mera ação das moléculas incentivadoras tende a levar o organismo à configuração funcional associada a estados prazerosos.

O surgimento de estruturas cerebrais capazes de detectar a provável ocorrência de "coisas boas" ou "ameaças" ao organismo também foi importante. Especificamente, além de sentir as coisas boas ou as ameaças em si, o cérebro começou a usar indícios para predizer as ocorrências. Sinalizava a iminência de coisas boas com a liberação de uma molécula, como dopamina ou oxitocina, ou a im- inência de ameaças com hormônio liberador de cortisol ou pro- lactina. A liberação, por sua vez, otimizava o comportamento

requerido para que o estímulo fosse obtido ou evitado. Analoga- mente, o cérebro usava moléculas para indicar uma falha (erro de predição) e comportar-se condizentemente; distinguia entre a chegada de algo esperado e a de algo inesperado graças aos graus de disparos de neurônios e a seu correspondente grau de liberação de uma molécula (por exemplo, dopamina). O cérebro também se tornou capaz de usar o padrão de estímulos - por exemplo, a re- petição ou alternância de estímulos- para predizer o que poderia acontecer em seguida. Quando dois estímulos ocorriam próximos um do outro, isso sinalizava a possibilidade de que um terceiro es- tímulo poderia estar a caminho.

O que todo esse maquinário possibilitava? Primeiro, uma res- posta mais ou menos urgente, dependendo das circunstâncias - em outras palavras, uma resposta diferencial. Segundo, possibilitava res- postas otimizadas pela predição.

O plano homeostático e seus correspondentes mecanismos de incentivo e predição protegiam a integridade do tecido vivo em um organismo. Curiosamente, boa parte do mesmo maquinário foi co- optada para assegurar que o organismo adotasse comportamentos re- produtivos propiciadores da transmissão de genes. A atração e o desejo sexual e os rituais de acasalamento são exemplos. Superfi- cialmente, os comportamentos associados à regulação da vida e à re- produção foram separados, mas o objetivo mais profundo era o mesmo; por isso, não é de surpreender que os mecanismos sejam comuns a ambos.

À medida que organismos evoluíram, os programas que baseavam a homeostase tornaram-se mais complexos no que respeita às condições que desencadeavam sua ação e ao conjunto de resulta- dos. Esses programas mais complexos gradualmente se tornaram o

que conhecemos como impulsos, motivações e emoções (ver capítulo 5).

Em suma, a homeostase precisa da ajuda de impulsos e mo- tivações, os quais são fornecidos abundantemente pelo cérebro com- plexo, ativados com a ajuda de antecipação e predição e utilizados na exploração do ambiente. Os humanos certamente possuem o mais avançado sistema motivacional, equipado com uma curiosidade in- finita, um forte impulso explorador e refinados sistemas de alerta voltados para necessidades futuras, tudo isso destinado a nos manter do lado bom dos trilhos.

A LIGAÇÃO ENTRE HOMEOSTASE, VALOR E

No documento e o cerebro criou o homem.pdf (páginas 73-76)