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6. RESULTADOS E DISCUSSÃO

6.2. Os padrões relacionais na instituição

6.2.2. As relações com características violentas

6.2.2.2. A violência disciplinadora

Outro aspecto envolvido na violência como um padrão relacional da instituição está ligado à sua associação à noção de disciplina, presente nos discursos como uma justificativa para situações de abuso da posição hierárquica superior, de mãe social. Para Foucault (2009), nas instituições totais (escolas, conventos, presídios, quartéis, entre outras), a dominação é imposta tanto de forma explícita, pela demarcação de espaços (muros), adestramento dos corpos de seus participantes, controle das atividades e horários e a censura pelo descumprimento dessas regras, quanto por manejos implícitos pelos quais a fuga do padrão ideal estabelecido é também digna de punição.

O modelo adotado pela instituição prevê uma hierarquia que submete todos os seus membros, define papéis e funções e, principalmente, determina qual o padrão a ser adotado por seus participantes. Apesar de as regras institucionais definirem como uma proibição o uso da violência de qualquer natureza, dos funcionários em relação aos abrigados e desses entre si, a sua presença pode ser percebida em grande parte dos discursos. Como se houvesse regras explícitas e outras implícitas, que apesar da consciência de sua existência, não podem ser publicadas ou defendidas diretamente. O relato de Adriano traz um exemplo dessa regra implícita da instituição.

A mãe Maria José, ela educou a gente, ela era muito rígida com ensino. Mandava a gente estudar direto. Era basicamente isso. O relacionamento com ela era bom,

normal. Relacionamento normal.Com os irmãos de vez em quando tinha uma briga com os irmãos, mas normal também. Quando a gente brigava, ela castigava. Castigo assim, não ia brincar, ficava em casa. Às vezes ela batia, às vezes, mas não

era muito não. Mas tinha aquele negócio lá, se machucar, de chamar a polícia,

aquele negócio todo assim.Ela saiu devido aos problemas familiares que estavam

ocorrendo lá em casa e tal. (…) Foi devido o que aconteceu com uma irmã nossa lá na aldeia, que não é nossa. É, que quando a mãe dela vinha fazer a visita, aí diz que estava machucada a mão dela. Aí ela falou o que tinha acontecido com ela, que a tia lá tinha feito, tinha botado a mão não sei aonde, no fogo lá da cozinha e tal, devido a que fato eu não sei. Eu sei que ela já tinha falado com a mãe dela o ocorrido e se eu não me engano a mãe dela foi falar com a tia Tereza, aí passou isso à tia Tereza conversou com cada um lá. Aí ela saiu e puseram outra mãe no lugar. (Adriano)

No trecho acima, num relato bastante hesitante, entrecortado por afirmações e recuos, informações e justificativas, ele mostra o funcionamento disciplinar da casa-lar, no qual a mãe social tem o poder tanto de aplicar castigos leves, como a privação de brincar, como castigos físicos que envolviam queimaduras intencionais e sistemáticas em uma de suas irmãs. Apesar das repetições do termo “normal”, Adriano relata situações que não poderiam ser publicadas, ou melhor, denunciadas. Quando afirma tratar-se de “um negócio de machucar e chamar a polícia”, mostra com clareza a consciência da ilegalidade do ato e, por isso, a necessidade de manter escondido numa espécie de conluio entre mãe e filhos sociais, o que aponta para outra forma de violência, o silenciamento. Nesse caso, uma forma de violência psicológica, pela qual, por temor da punição, tudo o que é visto ou ouvido não pode ser falado dentro ou fora da casa-lar.

Para Foucault (2009), nas instituições totais, os superiores hierárquicos têm o poder de julgar e punir toda e qualquer ação dos seus subordinados, por meio de castigos físicos ou psíquicos, como uma cópia do sistema judiciário, onde são os juízes e carrascos, ao mesmo tempo. No caso relatado acima, demonstrando o paradoxo do julgamento disciplinar utilizado, a mãe social agride quando os filhos sociais brigam entre si, como uma forma de manter a harmonia familiar, banindo as agressões, se impondo como figura de autoridade e determinando quem pode fazer uso desse expediente.

A resolução da situação de violência extrema somente é resolvida quando alguém que não está submetido às mesmas regras, alguém de fora da instituição, que denuncia e faz cumprir as normas explícitas tomadas como referência pela instituição. Pela violência do silêncio, as experiências vividas são compartilhadas somente pelos integrantes da instituição. No discurso de Alessandra, essa prática é assim descrita:

Mas eu acho que o pior de tudo era a forma que a gente estava sendo tratada, toda essa mãe social que tinha um papel primordial na nossa vida. Isso que me deixava triste, sabe por quê? Porque assim, elas tinham uma proteção muito grande entre

elas, nenhuma denunciava a outra. Se ela fosse bater e a gente fosse chorar era pra engolir o choro, ainda. Tinha que ser sem roupa, pra depois pôr a roupa e ninguém ver (choro). Mas não eram todas as mães que eram assim, isso eu tinha certeza, tinha mãe que realmente não batia nos filhos, mãe social. Mas esta Margarida, espancava mesmo. Poucas pessoas percebiam, porque a gente também não tinha muita liberdade na casa dos outros, entendeu? (Alessandra)

Mesmo percebendo que a aplicação de castigos físicos não era adotada por todas as mães sociais, Alessandra fala sobre o pacto de silêncio existente como regra para dentro dos muros da instituição, permitindo a perpetuação da violência. Por corporativismo, as mães sociais, mesmo sabendo dos maus-tratos não denunciavam e nem agiam para suprimi-lo. A agressão não era vista ou ouvida, pois as suas evidências eram escondidas: o choro deveria ser silenciado, e as marcas físicas escondidas sob as roupas. Os maus-tratos não aconteciam com todos os filhos sociais da organização, porém, pela proteção mútua das mães sociais, os filhos não ficavam sem proteção, liberdade de comunicar, ou acolhimento nas outras casas-lares. Na continuidade, Alessandra mostra que o silenciamento ocorre apenas dentro das casas-lares.

Assim, eu acho que até alguns comentários podem ter chegado aos ouvidos do gestor, que se chamava diretor, mas ele, eu penso que não acreditava. Não acreditava, até porque ele não via e não ouvia. (Alessandra)

Em uma posição hierarquicamente superior, o gestor assume uma postura de alheamento sobre os maus-tratos que aconteciam na organização. O pressuposto de Alessandra é que os comentários chegavam até ele, que não acreditava por não ver e ouvir. Tomada no sentido literal, a afirmação pode indicar que a incredulidade se baseava na falta de evidências concretas, num outro sentido pode significar a necessidade de negar, de não ver ou ouvir o que chegava até ele. Assim, a regra do silenciamento adotada nas casas é a continuidade da regra da instituição como um todo.

Outra manifestação de violência, percebida nos discursos dos participantes, é o exercício de comunicar os segredos da família social aos outros indivíduos da instituição.

Às vezes eu tenho vontade de conversar com ela dos meus problemas, das coisas... Mas eu não tenho porque (choro). Tudo o que acontece lá em casa, ela tá espalhando lá pras outras mães. Assim, o que nós aprontamos lá dentro da casa, aí ela tá lá. Às vezes elas se unem as mães, falam um do filho do outro. Aí eu não confio ainda de contar pra ela, porque tudo o que acontece lá ela conta. Porque se nós aprontamos o certo é ela conversar lá, sei lá e não ficar falando pros outros. Qualquer coisa que eu faço aqui, a aldeia já tá sabendo, aí eu chego lá, já tá falando. (Ana)

Porque aqui é assim tipo condomínio, mas, assim se eu fosse ter um amigo de verdade, seria no esconderijo, porque todo mundo sabe da vida do outro. Sabe daquela da vida do fulano, lá de trás, lá da outra casa, da última casa, da primeira.

É, ficam comentando: “Ah, a Amanda me falou isso e isso de ti”. Aí já começa, fica a maior coisa aqui na aldeia, suja o nome de muita gente. (Amanda)

O termo condomínio aparece nos discursos da maioria dos participantes, algumas vezes associado à ideia de proteção, outras à noção de um mecanismo de regulação que acontece por meio da comunicação existente entre os indivíduos que constituem essa comunidade.

Esse conteúdo é compartilhado por toda a instituição e funciona como um exercício de controle, onde todos sabem da vida de todos, a partir dos relatos e julgamentos associados a estes. Como resultado, os relacionamentos que acontecem entre os diversos grupos que compõem a instituição, bem como a representação dos indivíduos sobre esses grupos, são conduzidos por essa interdiscursividade. É importante que se diga que, diferente da noção de proteção, o “com domínio” exercido pelo conteúdo da comunicação intersubjetiva é percebido como negativo, limitante das relações e da possibilidade de confiança que poderia existir e, por isso, ser experimentado com uma espécie de violência.

Apresenta-se aí um paradoxo, o do falar e calar. Existem segredos que necessitam ser silenciados, e outros amplamente discutidos e revisitados pelos membros da instituição. Aparentemente, o paradoxo funciona para a perpetuação da própria instituição, já que os silenciamentos acontecem em torno das ações não desejáveis, das regras de controle disciplinar não explícitas, e a comunicação que expõe os segredos pessoais também funciona como reguladora das relações intramuros. De forma mais específica, silencia-se para as ações das mães sociais e técnicas da instituição e comunica-se tudo o que se refere aos filhos sociais. A violência manifesta-se, também, pela diferença hierárquica, que revela ou esconde aquilo que é conveniente para que a instituição se mantenha.

Além de explicitar um tipo de violência, esse paradoxo também revela um padrão relacional da instituição e uma regra implícita presente nas relações institucionais. No próximo item, outras regras e interdições serão discutidas, principalmente as que se referem ao tabu do incesto e à reedição edípica no contexto da instituição.