• Nenhum resultado encontrado

O pacto denegativo e a construção da parentalidade

6. RESULTADOS E DISCUSSÃO

6.2. Os padrões relacionais na instituição

6.2.1. Os vínculos na instituição

6.2.1.2. O pacto denegativo e a construção da parentalidade

Como percebido no item anterior, a experiência do abandono torna as relações e vinculações mais difíceis em função das defesas adotadas que atuam na tentativa de preservar o indivíduo de novas experiências dolorosas e de abandono. Na instituição de abrigamento, as defesas diante dos vínculos são bastante recorrentes nos relatos dos participantes e estão ligadas a experiências que denotam vínculos parciais com evidências da presença do pacto denegativo.

De acordo com Kaës (1991), o pacto denegativo funciona como um tipo de aliança, onde há o predomínio do negativo nos laços intersubjetivos, de diferentes maneiras como a repressão, a denegação, a recusa, a rejeição, impedindo que os vínculos aconteçam ou sejam percebidos como necessários aos indivíduos.

Considerando o indivíduo abrigado como aquele que convive invariavelmente dentro de grupos, o grupo da família social e o da instituição, desenvolvendo para isso certa conexão com os outros indivíduos e uma construção representacional mútua, os vínculos estão na base dessa experiência. Para Pichon-Rivière (2009), os vínculos são estruturas complexas e dinâmicas da relação grupal, resultados de um interjogo com objetos internos e externos e acontecem numa espiral dialética e contínua, onde sujeito e objeto se realimentam mutuamente.

Dessa maneira, as dificuldades relatadas pelos participantes da pesquisa não podem ser tomadas como individuais, dizem respeito à díade, ou às outras relações vivenciadas no espaço de abrigamento. A manifestação do pacto denegativo aponta para a dificuldade compartilhada de perceber os atributos positivos do outro da relação. O pacto denegativo se organiza a partir da representação que se constrói a respeito do outro, com o predomínio do polo negativo sobre o positivo.

Nos relatos dos filhos sociais, as mães sociais são percebidas como pouco confiáveis, como no caso de Ana, Adriano e Alice, já que poderiam revelar os segredos e assuntos da família social para os demais indivíduos da instituição. Já para as mães sociais, os filhos são representados como perigosos, como no caso de Maiara, como pessoas que carecem de ajuda, para Milena, Marilene e Mara. Nos relatos das mães, os filhos sociais não são vistos como pessoas com quem possa trocar objetiva e subjetivamente, mas pessoas que carecem da sua dedicação. Para os dois indivíduos da díade, prevalece o polo negativo e efetiva-se o afastamento, rejeição velada e recusa afetiva, evidências do pacto denegativo.

De acordo com Trachtenberg (2005), para que a polarização fosse positiva, os vínculos se construiriam a partir de investimentos mútuos, identificações comuns, sobre ideais e crenças semelhantes e modalidades toleráveis de realização de desejos, características percebidas em apenas uma das díades, a de Milena e Agnes. Nessa díade as identificações são, na sua maioria, positivas e com perspectivas de continuidade, pois tanto a mãe social quanto a adolescente planejam a saída da instituição como um momento de reunião familiar, perpetuando a família social.

Eu quero fazer uma faculdade e ser advogada. E, morar com a mamãe, fora da aldeia, o quanto antes. E ter minha casa própria. Levar minha irmã Aída pra morar comigo. (Agnes)

Ah sim, às vezes eu fico deitada pensando porque, tem ele, tem essa daí e tem a Aída. Eu acho que vão tudinho lá. Os maiores vão tudinho comigo. Quando sair vão tudinho pra lá. Até porque eles conversam entre eles: bora pra nossa casa. Essa daí diz: mãe, bora pra nossa casa. Sabe? Às vezes eu converso muito com a mana, porque é bom ela começar a levantar a casa, comece a aumentar porque o povão vai tudo pra lá (risos). (Milena)

Essa disposição de continuidade não foi percebida nas outras díades, o que evidencia a prevalência do pacto denegativo. Compreendendo que os vínculos são circulares e envolvem sempre investimentos e contrainvestimentos, a manutenção das defesas e da polarização negativa na representação do outro perpetua o isolamento e mantém, de certa maneira, inalterada a experiência do abandono, motivo da existência da instituição de abrigamento.

A prevalência dessa modalidade de relação evidencia, por outro lado, uma dificuldade diretamente ligada à anterior, a de construção da parentalidade. Concepção por meio da qual, segundo Solis-Ponton (2004), se compreende que os pais e cuidadores necessitam de uma organização ou preparo psíquico para receberem e se relacionarem com os filhos e estes, com os pais. A relação construída entre a mãe social e os filhos será resultado da interação, das múltiplas representações e conflitos vividos por ambos, depois do seu encontro e constituição

do vínculo. No relato de Marilene, fica evidente a sua angústia diante da possibilidade de assumir o papel de mãe social.

Aí na época que eu assumi a casa eu achava que eu não podia gostar dos meninos, que se eu amasse eles eu iria estar traindo o amor dos meus sobrinhos. Eu falava pra ele: esses meninos já foram abandonados, aí a hora que minha mãe precisar eu

deixo tudinho e vou embora, vou abandonar de novo, não quero ser mãe.Aí isso foi

muito difícil, porque eu tive que ir me trabalhando pra eu entender que isso não tem nada a ver, (risos). E isso foi muito difícil. E as meninas também, elas não me aceitavam. Era muito difícil porque eu não sabia como lidar, eu falava que eu não sabia ser mãe, eu falava pras meninas e a Marli falava: mas tu vai aprender! Eu falava: mas quando eu vou aprender? Não tem como! Mas aí, fui me adaptando,

eles já tinham aceitado mais, eu já tinha aceitado eles. (Marilene)

O relato da experiência denuncia a angústia instalada antes e depois do convívio com os filhos sociais, as dificuldades são descritas não apenas a partir da sua perspectiva, mas também, a partir da dificuldade de aceitação dos filhos e filhas sociais, em recebê-los como mãe.

Tomando a compreensão de Houzel (2004) sobre as implicações da parentalidade e os três eixos de sua estruturação (exercício, a experiência e a prática da parentalidade), entende- se que, no espaço institucional, a parentalidade será um processo não realizado em termos absolutos, predominando uma parentalidade parcial, como se explicita na continuidade.

O exercício é o que constitui a parentalidade, já que situa o indivíduo nos seus direitos e deveres, definindo regras de filiação, pertinência e alianças. Na experiência institucional, os direitos e deveres são determinados, por um lado, pela função profissional que a mãe social ocupa, e por outro, pela condição de abrigado dos filhos sociais. Os laços não são definidos pela consanguinidade e sim, por uma organização formal, onde algumas interdições são excluídas, como o tabu do incesto, por exemplo. Esse eixo talvez seja aquele que mais se distancia das famílias organizadas a partir relações consanguíneas, pois as regras não são familiares, são institucionais, onde está previsto até mesmo o fim da relação, no momento do desligamento do adolescente ou demissão da mãe social. De outro modo, já existem alianças consanguíneas constituídas que inflenciam diretamente os novos vínculos, como pode ser percebido no relato de Ana.

O que eu acho importante era nos tempos que a nossa família era mais junto e que era toda a nossa família estava junto. Um ia lá conversar com a gente, a nossa mãe. Nós passava o Natal junto, nós era uma família, era feliz, mas depois, depois mudou tudo. Eu queria que voltasse a ser como antes, mas não assim, os negócios que a gente passava. (Ana)

As relações vividas na instituição não são mencionadas, o vínculo desejado é o da família biológica, nesse caso, preservado por idealizações e negação das situações críticas, como a violência e o abandono.

Quanto à experiência da parentalidade, que é subjetiva e envolve conteúdos conscientes e inconscientes como o desejo pela maternidade ou paternidade, os processos identificatórios com as figuras parentais, reparação de objetos parentais internos, entre outros, a experiência da parentalidade social também requer as mesmas resoluções que podem ser comprometidas em função das representações sobre o lugar que se ocupa e também do outro envolvido. Em outras palavras, o desejo pela maternidade ou afiliação social e a identificação com o outro da relação dependem das representações construídas a respeito e também das alianças já formadas anteriormente, como explicitado no relato anterior.

O terceiro eixo, o das práticas, se efetiva a partir do investimento realizado, por meio das tarefas e cuidados maternos e paternos em direção à criança que, consequentemente, geram um constrainvestimento fortalecendo a parentalidade. Na instituição, a noção de proteção e cuidado não é entendida pelos filhos e mães sociais como um atributo da família social e, sim, da instituição como um todo. Nos relatos a seguir, é possível identificar essa noção.

Aí com o tempo nós fomos convivendo, se adaptando, vivendo com outras pessoas diferentes, é assim, a aldeia é como se fosse uma comunidade assim, um condomínio, todo mundo se conhece e tal. Aprendi a estudar depois de um tempo.

(Adriano)

Nós somos uma família aqui, num condomínio, nós precisamos um do outro e ajudamos. (Maiara)

A construção da parentalidade, sob esse prisma, se dirige também para a instituição. A proteção é percebida como algo mais amplo do que aquilo que a família nuclear social pode oferecer. É a instituição, representada em alguns relatos, como uma família extensa dos abrigados e mães sociais, que funciona como o outro capaz de assegurar segurança, sustenção e perpetuação das famílias sociais.

Outro conteúdo manifesto nos discursos é o da violência tanto nas relações anteriores ao abrigamento, quanto nas famílias sociais. Sua importância para essa análise não está na sua recorrência elevada, mas, sobretudo, pelas marcas emocionais que imprime. A seguir, são explicitadas suas ocorrências e implicações.