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6. RESULTADOS E DISCUSSÃO

6.2. Os padrões relacionais na instituição

6.2.1. Os vínculos na instituição

6.2.1.1. O abandono

Como instituição de abrigamento, o abandono é a característica que reúne os indivíduos ali abrigados e também é o motivo para a existência da instituição. O discurso sobre o abandono considerando as suas causas, implicações e enfrentamento faz parte da ideologia estruturante da instituição, ao mesmo tempo em que percorre o imaginário de todos os indivíduos que vivem ali.

A situação desencadeadora do abandono aparece com uma alta recorrência e alta intensidade nos discursos de abrigados e cuidadores. Num dos seus polos, o dos abrigados, aparece nas repetições da história do abandono, na busca por culpados, nos seus motivos e a características. Esses conteúdos expressam o desejo de catarse, expurgando os sentimentos persecutórios em relação a essas figuras, uma busca de sentidos para a causa da angústia, ou ainda, como é possível notar em trechos dos discursos dos adolescentes, uma necessidade de convencer-se de que não são os culpados.

No outro polo, o das cuidadoras, as mães sociais, o abandono está nos discursos como um dos motivos para continuar o seu trabalho, se dizendo identificadas com o sofrimento dos filhos sociais. O trabalho contínuo e totalizante, palco de tensões e conflitos, que envolve afastamento das relações afetivas e sociais, também uma espécie de abandono, é justificado, nos discursos, pelo compadecimento em relação às crianças abrigadas. Mas é importante que se diga que o abandono não é apenas atual pela renúncia de relações, é também arcaico, pois, assim como os abrigados, as mães sociais o experimentaram pela vivência de situações tanto de abandono real, quanto por omissão e negligência. A identificação, nesse caso, está referenciada inconscientemente à sua própria angústia de abandono e temor de que isso volte a acontecer, o que parece contraditório, já que os vínculos temporários em que se baseiam as relações institucionais fazem com que o conteúdo seja revivido indefinidamente.

Percebe-se, nos relatos, a necessidade de localizar a culpa pelo abandono, na tentativa de afastamento da angústia e preservação de outros vínculos. Uma tendência nesse sentido foi a atribuição feita à figura paterna pelo abandono e adoecimento da mãe.

E aí ele decidiu pra se livrar da relação, ele decidiu que também não iria deixar as crianças com ela. Eu não sei se é porque ele achava que não tinha condições ou se ele tinha outros objetivos em mente. Daí a gente foi parar nesta creche Menino Jesus em Natal Aí chegaram os homens numa Kombi branca e só estávamos nós

seis, as filhas, a mais velha tinha 12 anos. E levaram a gente do jeito que a gente estava, de calcinha, sem chinela, esperneando, gritando. Fomos direto pra essa creche, quando minha mãe chegou do trabalho, que ela não esperava pela situação, e aí ela ficou louca, perturbada, literalmente fora do seu juízo comum, já estava meio perturbada e então ela chegou a ser internada, no hospício, no sanatório e assim, eu posso dizer que até hoje, ano de 2008, minha mãe faleceu em março, primeiro de março deste ano, mas até o dia dela falecer ela não estava sendo uma mulher 100% normal, embora ela tivesse melhorado muito. Mas ela ainda não me reconhecia. (Alessandra)

Nos discursos, a culpa está localizada na figura paterna que, por atitudes as mais diversas, provocou direta ou indiretamente o abandono. Como causador direto ele não apenas forja o desamparo, mas afasta os filhos definitivamente da mãe. Como causador indireto, a sua culpa está em não apoiar a mãe, não oferecendo condições para que ela mantivesse os filhos sob sua guarda.

A figura fortalecida e preservada nos discursos é a figura materna, a mãe biológica, apresentada como aquela que, inicialmente, antes de serem submetidas aos infortúnios e doenças, eram mães amorosas e dedicadas. Existe uma cisão nos vínculos ou na constituição deles, pois, de um lado há uma figura materna idealizada e de outro uma figura paterna perseguidora, agressiva, a quem são atribuídos: o sofrimento, abandono e a permanência na instituição de abrigamento. Os sentimentos positivos são totalmente projetados na mãe, enquanto os agressivos, na figura paterna.

Mesmo quando sentimentos negativos são ligados à figura materna, são justificados pela vivência de situações extremas, que aí funcionam como um anteparo para que a sua imagem não seja atingida.

Devemos agora considerar algumas questões dessa família imaginada e mitificada. A sua compreensão é importante, pois, segundo Vidal (1991, p. 186)

Nesse sentido, “a família fantasmática” deveria ser considerada como o inconsciente da família, em outras palavras como o inconsciente tal como é mobilizado pela situação relacional suscitada pelo encontro familiar. Assim, a “família fantasmática” está vinculada ao conteúdo das fantasias inconscientes que dominam os membros desse grupo elementar de parentesco. “A família fantasmática” é feita de crimes silenciosos, sonhados, cujos mitos e lendas (dos atridas ou dos labdácias4

) constituem um importante testemunho. Os mitos ou as fantasias inconscientes que os animam refletem ou representam de que maneira, na família fantasmática, cada membro se sente ameaçado por todos os outros e vice-versa “numa espécie de universo destrutivo sem escapatória”.

A existência de uma figura parental boa e outra má funciona como uma defesa diante da possibilidade de perda de ambos. Admitir conscientemente a irresponsabilidade ou o

desamor das figuras paternas e maternas é viver o desamparo na sua expressão mais dolorosa e desorganizadora. Uma figura paterna negativa representa uma perda, mas preserva um substrato egoico capaz de organizar e dar sentido às suas outras relações.

Outra evidência da preservação de apenas uma figura, ou da dificuldade de vinculação com alguma figura materna, está nos relatos que apontam para a convivência com diversas mães, dentro e fora da instituição.

No total, dos anos que eu vivi na organização, tive cinco mães sociais. Mas destas cinco só uma eu tenho lembranças desagradáveis. Tive tantas mães, mas parece que não tenho nenhuma. (Alessandra)

Eu era muito chorona, eu chorava demais. Era muito difícil eu me apegar com uma pessoa. Mas fui logo com ela assim. A mãe que a gente estava morando, ela não cuidava de mim. Eu ainda mamava, na mamadeira, e ela não comprava. E quando eu fui morar com a mamãe, ela foi toda amorosa, de mãe sabe? Ela sim, ela sim é mãe. Acho que sem ela... sei lá. Eu amo muito ela. (Agnes)

Está presente nos relatos uma postura de comparação das suas diversas mães, o que pode ser compreendido, a partir da experiência real de convívio com mais de uma mãe, já que, a princípio, todos os abrigados conviveram com duas mães, uma biológica outra social, contudo três das participantes conviveram com mais de uma mãe social, o que ampliou o universo das suas convivências com a figura materna. De outra forma, é visível uma necessidade de localizar uma mãe ideal, que consiga aliar diálogo e afeto, que traga em si somente os atributos positivos de todas as outras mães. Esse ideal, no entanto, não é encontrado e a conclusão de uma das participantes é sensação de ter muitas mães e ao mesmo tempo, nenhuma.

Essa figura ideal, presente no imaginário e nos discursos de mães sociais e adolescentes, pode ser considerada uma figura mítica familiar, conceito que Krom (2000, p. 47), define:

A figura Mítica Familiar é a pessoa que transcendeu limitações, determinou um caminho, deu origem a um percurso mítico em sua vida enquanto sua figura se perpetua e repercute em suas histórias e feitos. Freqüentemente, os pais, como líderes naturais, assumem esse lugar e passam a ser cultuados pelos próprios filhos. Muitas vezes, essas pessoas transcendem as suas limitações, com comportamentos inusitados e surpreendentes. […] Com todas essas histórias, é possível perceber como determinadas pessoas se tornam “modelos familiares” e atuam como verdadeiros “pontos de referência”. Podemos verificar como, respondendo às necessidades e à formação de expectativas míticas, essas pessoas dão cumprimento a suas próprias vidas e determinam um percurso mítico.

A figura mítica familiar existe imaginariamente para os indivíduos instituídos, porém é a mãe intangível e incorpórea que não pode suprir suas necessidades, mas que pode acalentá-

los com essa possibilidade. A mãe mítica será aquela, também, que não poderá causar um novo abandono e, com ele, uma nova desorganização familiar e individual.

Não encontrando essa pessoa na sua realidade externa, a realidade imaginária ganha força e subsiste a uma trajetória sem vinculações com objetos externos, somente com as características idealizadas. Na instituição, as relações não são reconhecidas como ideais e, por isso, os investimentos afetivos são rarefeitos e descontínuos. É sobre essa dificuldade de vinculação que trata o próximo item.