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3. MARCO TEÓRICO

3.2. A visão psicanalítica sobre a família

Em Totem e Tabu, Freud (1996) apresenta uma importante reflexão sobre a relação do Complexo de Édipo e a origem da civilização. A partir da compreensão sobre o mito da horda primeva, a morte do pai totêmico e a instauração do tabu do incesto, Freud constrói uma hipótese sobre a passagem do clã totêmico para a família.

O mito é contado a partir da figura paterna, um pai poderoso e despótico que detinha o direito de gozar de todas as mulheres da horda, e que fazia da sua própria lei a única. Como era o único pai, todos os filhos deviam-lhe total obediência e estavam proibidos de ter as mulheres da tribo. Os filhos, rebelando-se contra a lei tirânica do pai, se reúnem e o matam. A decisão repercute negativamente e a desordem se instala, pois, em uma festa, todos os homens querem possuir uma única mulher. A desordem é atribuída à morte do pai que passa a ser visto como aquele que até então garantia a ordem e a vida na horda. Na tentativa de resgatar a

ordem de outrora, decidem construir um totem que presentificasse a figura do pai e legitimasse a instauração de duas grandes leis: não matarás e não consumarás o incesto.

O cumprimento dessas leis implicava no cessamento da prática sexual entre os membros de uma mesma horda, sendo necessária a busca e troca de mulheres de outras tribos para a procriação. As relações se tornam exogâmicas. O pai representante da lei, não mais um pai de carne e osso, apesar de ser o seu representante muitas vezes, é um pai simbólico.

De acordo com Freud (1996), o incesto é proibido na maioria das sociedades, o que aponta para uma ambivalência dos indivíduos, pois não precisaria sê-lo senão fosse desejado. Na tentativa de dar uma explicação plausível para esse desejo, compreende que a mãe é o primeiro objeto de amor da criança, mas essa relação não pode se perpetuar para que não seja colocada em risco a vida em sociedade. A prática do incesto precisa ser duramente punida para que outros membros da sociedade não o realizem.

Para Freud (1996), o totemismo estaria na base para a organização social de todas as culturas, por ser um sistema social marcado pelo respeito e proteção entre os seus integrantes, a partir das normas e da perpetuação dos costumes e tradições. É nesse ponto que se deu a passagem da natureza para a cultura.

Segundo Roudinesco (2003), o assassinato do pai é o ato que separa o mundo da natureza e nos introduz na cultura, também é o que nos faz internalizar os interditos paternos. É sobre as normas e, mais particularmente, sobre o tabu do incesto, que a instituição familiar é constituída. Por outro lado, a autora argumenta a invenção da família edipiana, proposta por Freud (1996), pois a tragédia é descrita a partir de uma posição de conflitos individuais de Édipo, ignorando a história familiar na qual esse personagem estava inscrito. Dessa maneira, a teorização freudiana sobre o inconsciente não se detém sobre o inconsciente dos pais, ou da família, como determinantes na constituição do indivíduo.

Assim, a visão freudiana sobre o indivíduo é recortada da família. Ele não é entendido como um membro de uma família, que sofre a influência definitiva dos antepassados e está inserido dentro de um continuum familiar, compreensão que a psicanálise dos nossos dias busca resgatar quando se preocupa com os desejos inconscientes da mãe e do pai frente ao filho, com o lugar que este ocupa no psiquismo dos pais e como isso é assimilado pelo filho, além de incluir os segredos, silenciamentos e transmissões que acontecem entre gerações.

Roudinesco (2003) defende que a família nuclear, como é conhecida hoje no Ocidente, se impõe entre os séculos XVI e XVIII e sua evolução conta com três fases distintas: a tradicional, a moderna e a contemporânea ou pós-moderna. Na fase tradicional, o seu papel era de transmissão do patrimônio, os casamentos eram arranjados pelos pais, e a vida sexual e

afetiva dos futuros esposos não era levada em consideração. Por isso, era possível que o casamento acontecesse muito precocemente. A ordem dominante era a patriarcal que copiava a monarquia de direito divino.

A segunda fase, a família moderna, é constituída a partir de uma lógica afetiva e se impõe a partir do século XVIII e se estende até meados do século XX. A característica desse tipo de organização é o mito do amor romântico, a reciprocidade de sentimentos, a valorização da divisão do trabalho entre os esposos, ao passo que a educação dos filhos é dividida entre os pais e o Estado.

A terceira fase, da família contemporânea ou pós-moderna, surge na década de 1960, marcada pela busca de relações íntimas ou realização sexual e também pelas rupturas e recomposições do núcleo familiar, o que faz com que a autoridade vá se tornando mais difusa. Estabelecendo uma relação entre a família da primeira e da última fase, Roudinesco (2003, p. 20) mostra que:

Na época moderna, a família ocidental deixou, portanto de ser conceitualizada como o paradigma do vigor divino ou do Estado. Retraídas pelas debilidades de um sujeito em sofrimento, foi sendo cada vez mais dessacralizada, embora permaneça, paradoxalmente, a instituição humana mais sólida da sociedade. À família autoritária de outrora, triunfal ou melancólica, sucedeu a família mutilada de hoje, feita de feridas íntimas, de violências silenciosas, de lembranças recalcadas. Ao perder sua auréola de virtude, o pai, que a dominava, forneceu então uma imagem invertida de si mesmo, deixando transparecer um eu descentrado, autobiográfico, individualizado, cuja grande fratura a psicanálise tentará assumir durante todo o século XX.

O modelo tradicional e a figura suprema do pai mantiveram-se por séculos, mas aos poucos, assim como as monarquias, foi perdendo sua força até sofrer um golpe de misericórdia pela Revolução Francesa que, com sua proposta laica, questionou também o modelo divino, o Deus Pai e, com ele, o pai desse modelo.

É nesse momento histórico que Freud

(1996)

propõe a teoria psicanalítica e com ela uma explicação para a morte simbólica da figura paterna, bem como um lugar para o feminino nos desejos incestuosos do filho, mesmo sendo uma mulher castrada, sujeitada à inveja do pênis. O feminino emerge, também, em outros teóricos da psicanálise, como Klein (1992), que toma a figura materna como central no desenvolvimento da criança, e Winnicott (2001) que, no conceito de mãe suficientemente boa, a posiciona como a mediadora entre a criança e o ambiente/mundo.

A organização familiar, baseada no modelo edipiano, sustenta-se a partir de três pilares: a exigência da afetividade entre os cônjuges, a abertura para a vivência da sexualidade masculina e feminina e o lugar de destaque dado ao filho.

Roudinesco (2003) compreende que, com o avanço tecnológico da biomedicina, as mulheres conquistaram o controle sobre o seu corpo e também sobre a procriação, podendo, até mesmo, prescindir da participação masculina na concepção. Essa conquista associada à luta feminista permite que as mulheres redefinam o seu papel na sociedade e na família, apesar do temor que isso significava naquele momento. O fortalecimento da figura feminina que muda a ordem procriadora faz com que surjam novos tipos de vínculo. O parentesco e os laços consanguíneos passam a conviver com a parentalidade que se refere a laços psíquicos definidores de uma relação familiar. Há uma mudança significativa na ordem familiar, pois a família é desvinculada da instituição do casamento e entregue pela ciência ao poder das mães, tornando as relações mais horizontais e fraternas.

Apesar dessas transformações profundas ocorridas no seio da família e nos papéis feminino e masculino, materno e paterno, Roudinesco (2003) apresenta uma visão bastante otimista sobre essa instituição, principalmente pela sua capacidade de se reinventar e se manter como insubstituível na constituição humana. Um exemplo disso é a construção do conceito de parentalidade que envolve o aprendizado das funções parentais, apontando para numa nova forma de pensar as relações familiares.