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3. MARCO TEÓRICO

5.4. Fundamentos teóricos para análise dos dados

Um dos grandes desafios da pesquisa foi o encaminhamento da análise dos seus resultados, no caso, a reconstrução verbal da história de vida pessoal, a partir da análise dos discursos apresentados no momento da entrevista. O referencial teórico utilizado pauta-se na proposta de análise do método psicanalítico.

Para a psicanálise, os discursos proferidos são tramas complexas, cheias de significados, atravessadas por outros discursos que se complementam e contradizem e cabe ao analista desamarrar, esclarecer por intermédio da interpretação. O ato de interpretar do analista consiste no levantamento das linhas de significados possíveis no discurso do paciente, indo para além da exposição consciente da palavra, buscando as conotações que não se encontravam na intenção do dizer. Segundo Herrmann (2001, p. 82):

Interpretar a descrição metafórica da condição analítica de um paciente consiste em operar uma tradução dos significados possíveis, fantasias, apresentando-os em nova versão, mais claramente nomeada, mais precisa. Todavia, versão de fantasia que é a interpretação produz asserções descritivas meramente possíveis, cuja meta é jogar com as diferenças que se produzirão no sujeito. A precisão da apreensão dos sentidos possíveis não equivale, portanto, a uma explicação de processos psíquicos, mas à precisão em fazer com que se choquem diferentes representações, nisso consistindo as interpretações.

O olhar interpretativo exige que se compreenda o objeto de análise e seu contexto, o que definirá os elementos constantes na ação interpretativa. A transmissão intersubjetiva pressupõe um indivíduo inserido no seu grupo, formador e formado por ele, assim, o tipo de análise utilizada se fundamenta na proposta de Renè Kaës (2005) para o trabalho psicanalítico em situação de grupo, não se tratando de uma aplicação da técnica psicanalítica individual, mas de uma construção metodológica própria. Nas palavras do autor:

O grupo que constitui o objeto das práticas e das teorizações psicanalíticas é uma construção do método psicanalítico. Essa construção do grupo como dispositivo metodológico introduz uma mudança capital em relação às especulações freudianas: um dispositivo de grupo é construído de tal modo que as características gerais do método psicanalítico produzem nele seus efeitos de conhecimento do inconsciente,

de tratamento dos distúrbios psíquicos inacessíveis de outra forma, de transformação da relação do sujeito com sua história (Kaës, 2005, p. 72).

Apesar de a técnica utilizada na pesquisa, a história de vida, ter sido apreendida num espaço individual, entre participante e pesquisadora, os elementos buscados na análise das entrevistas dizem respeito à vivência no grupo familiar, às intersecções existentes entre esses indivíduos que se inseriram, num determinado momento de suas vidas e assim permanecem, numa estrutura institucional preexistente, espaço de transmissões intersubjetivas constantes e massivas, com manifestações de identificações que se expressam nos sintomas, mecanismos de defesa, manejos relacionais e da realidade.

De acordo com Kaës (2005), o trabalho da psicanálise grupal, de intervenção ou de pesquisa deve levar em consideração três características morfológicas: a pluralidade, o face a face e a interdiscursividade. Para a análise dos discursos, destacamos duas delas, a pluralidade e interdiscursividade como elementos organizadores dos conteúdos presentes nos mesmos. Na continuidade, explicam-se como essas características suportam a análise.

Na vivência grupal, cada membro é partícipe de um encontro múltiplo e intenso com vários outros, uma pluralidade que envolve investimentos pulsionais, de emoções, de afetos, representações diversas e, até mesmo, antagônicas. Essa pluralidade implica numa relação constante entre os componentes intrapsíquicos e intersubjetivos que resultam no estabelecimento de mecanismos de defesa conjuntos e comuns, além de identificações e renúncias, sem que haja a consciência desses processos. Existe de acordo com Kaës (2005) um mecanismo denominado de identificação urgente, descrito como:

A. Missernard descreveu a identificação urgente como um mecanismo fundamental em tal situação. A noção de urgência conota situação precária de transbordamento e de não ligação, a qual se pode encontrar exposto o Eu dos membros do grupo. Tudo se passa como se o primeiro objeto que sustentará um novo laço intrapsíquico restabelecerá, de uma só vez, a consistência da realidade psíquica decomposta e “conterá” o pânico. Esse objeto não é qualquer objeto, é um objeto escolhido por sua função defensiva e ao qual cada um poderá identificar-se segundo diversas modalidades, adesivas ou projetivas (Kaës, 2005, p. 78).

A pluralidade é o que permite aos grupos a atribuição de sentidos e significados, construção de vínculos e eliminação de representações destoantes, delimitando o de dentro e o de fora, elementos de análise e compreensão dos discursos e realidades dos participantes da nossa pesquisa.

Outra característica, proposta por Kaës (2005), é interdiscursividade, ou a pluralidade dos discursos, passível de conhecimento a partir dos enunciados de fala que se ordenam

segundo um duplo eixo sincrônico e diacrônico, enunciados em conformidade com a cadeia associativa de representações do grupo ou destoante do padrão grupal.

A interdiscursividade como organizadora da análise nos deu também a possibilidade de compreensão das ambiguidades e ao lugar que o indivíduo vai assumindo ao longo do seu discurso e apresentando as suas contradições e sentidos. Além disso, Kaës (2005) entende que alguns indivíduos assumem o lugar de porta-voz do grupo:

Considero que esses sujeitos ocupam no vínculo um lugar determinado. Fazem-no como sujeitos, sob efeito de determinações intrapsíquicas, mas também como sujeito do grupo ao qual estão submetidos no conjunto do qual são beneficiários e participantes. Esses sujeitos cumprem funções de porta-voz, porta-sintoma, porta- sonho, etc. (Kaës, 2005, p. 35).

Para ele, o porta-voz seria o indicador da doença ou fantasia inconsciente do grupo, elemento importante quando se investigam os vínculos e espaços intermediários na relação grupal familiar.

Na transmissão intersubjetiva, aquilo que se transmite é o que compõe a história do indivíduo e não é formado apenas pelo positivo, continuidades narcísicas e objetais, vinculações, identificações e mecanismos que organizam o psiquismo, também pelo negativo, os conteúdos que não podem ser contidos, lembrados, são representações esquecidas da doença, da morte, do luto não realizado. A análise pressupõe as descontinuidades psíquicas, as rupturas, as falhas, os hiatos não pensados, elementos do negativo.

Existem, de acordo com Kaës (2005), três modalidades do negativo: a negatividade de obrigação que corresponde àquilo que acentua a necessidade do aparelho psíquico de operar rejeições, negações, recusa, desmentido/retratação e renúncias, procurando preservar a organização psíquica diante de um interesse maior; a negatividade relativa que sustenta o espaço potencial da realidade psíquica buscando suprir diante do sofrimento de uma perda, algo que foi e não é mais por falta ou excesso; a negatividade radical, a que, dentro do espaço psíquico, tem o estatuto daquilo que “não está”, representado pelo desconhecido, o vazio, a ausência.

Assim, o desafio da análise dos relatos das díades foi desvendar, a partir das falas dos participantes, os conteúdos reveladores da sua subjetividade e também aqueles que remetiam, na sua relação com o outro, ao fenômeno da transmissão intersubjetiva, levando em consideração as vinculações, os mecanismos de defesa, as pulsões e as interdições. Para atingir esse desafio, os passos relatados a seguir foram imprescindíveis.

5.4.1. Procedimento de análise dos dados

Para chegar à interpretação dos discursos, estabelecemos alguns passos para a sua realização, inspirados nos procedimentos relatados por Guirado (2004).

O primeiro momento da análise é a transcrição, onde é possível, marcar os tempos de silenciamentos ou ainda as repetições. A seguir, proceder à leitura repetida do material transcrito e, ao mesmo tempo, à escuta das gravações novamente. A partir de então, foram aplicadas as seguintes etapas: marcação das palavras que se repetiam e as palavras que pareciam deslocadas do conjunto; levantamento dos atributos usados a personagens e situações mencionadas; compreensão das histórias e enredos trazidos, bem como os personagens e lugares que cada um ocupava; construção de um texto que trazia a ordem desses trechos e os lugares em que o locutor e os personagens trazidos ocupavam; construção de organizadores desses trechos, categorias que expressavam similaridades.

Esses passos foram aplicados a todas as entrevistas realizadas. Para a exposição dessa análise, os discursos organizados a partir das díades apresentam as convergências entre os discursos dos pares da mesma família social, numa compreensão sobre a transmissão psíquica percebida. Em outro nível, a correlação dos pontos levantados com a teoria que funda o trabalho.