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O trabalho de pesquisa com as famílias sociais, na instituição de abrigamento, pode ser considerado como um marco que divide dois momentos distintos de atuação nesse local. A experiência anterior na atuação como psicóloga da instituição, durante 12 anos anteriores à pesquisa, provocou na pesquisadora profundas modificações profissionais e pessoais que não caberiam nas argumentações e análises que compõem este trabalho. Por outro lado, as ressignificações provocadas por intermédio desse momento de pesquisa e reflexão reconduzem não somente a atuação, mas, principalmente, o olhar para os indivíduos que compõem o cenário institucional.

Ao encerrar esta tese, é necessário retomar alguns questionamentos que acompanharam o percurso de sua realização. Em primeiro lugar, o que este trabalho acrescenta do ponto de vista científico e social? Quais foram as suas principais limitações? E quais são as perspectivas de estudos futuros que o estudo aponta?

Os resultados oferecem evidências que permitem questionar os limites e possibilidades de realização da missão social do abrigo como contexto de desenvolvimento integral do adolescente em situação de risco psicossocial. Os achados sugerem que os padrões de vinculação estabelecidos entre adolescentes e mães sociais tendem a reproduzir legados transmitidos por herança psíquica que não logrou transformação. As narrativas produzidas trazem as marcas emocionais do abandono. A carência afetiva expressa no cotidiano é mascarada pela adesão cega a prescrições morais e normas de conduta rígidas e pouco flexíveis que engessam os relacionamentos e obstruem a circulação dos afetos, bloqueando o pensamento criativo que poderia dissolver as estereotipias e fomentar a mudança e constituição de novos enlaces e laços sociais. Os vínculos estabelecidos são silenciosos remanescentes de histórias pregressas de sofrimento que não se contam, permeadas por pactos denegatórios sustentados por defesas, não ditos e interditos que modelam o cotidiano das famílias sociais. Nesse contexto, a violência – sutil ou atuada, simbólica ou encarnada – surge como um recurso reiteradamente empregado na tentativa de tamponar as angústias inomeáveis e solucionar os conflitos estimulados pelo convívio familiar.

O trabalho das mães sociais, como profissionais da instituição de abrigamento, se justifica, nas suas representações conscientes e inconscientes, por meio de identificações com a condição de excluídos dos filhos sociais, lugar de privação e sofrimento ocupado historicamente pelos rejeitados, pelos párias sociais em qualquer época e cultura. Por isso detém a necessidade imperiosa de reconhecimento, por ocuparem a função de mãe de crianças

que sofreram rompimento precoce de vínculos afetivos. Essa identificação traz consigo, no entanto, a necessidade de manutenção desse lugar e da situação fundadora, o abandono. Apesar das fantasias de regulação social e redenção do grave problema do abandono, presentes nos sistemas simbólico e imaginário da instituição, a sua manutenção persiste e se diversifica em posturas individualistas, de baixo investimento afetivo e de negação das demandas dos filhos sociais. Dessa forma a instituição mantém aquilo que motivou a sua criação e existência.

O contexto institucional se apresentou, como modelo predefinido, com modalidades relacionais específicas, exigindo que seus membros se socializem seguindo o padrão ideal proposto, cumprindo as normas e leis sem contestações, postura que passa a fazer parte da identidade de cada um, uniformizando e desconsiderando as diferenças e negando a individualidade, aspectos pessoais substituídos pelas tarefas repetitivas e esvaziadas, sem o reconhecimento social e institucional.

Este estudo traz contribuições relevantes do ponto de vista da formulação de políticas públicas de proteção à infância, bem como alimenta reflexões sobre a atuação do psicólogo nos contextos institucionais de abrigamento. Em relação à prática do psicólogo, os resultados oferecem insumos para o planejamento de ações de cunho preventivo, assim como intervenções de caráter psicoterapêutico, visando à potencialização de recursos e à minimização do potencial traumático da repetição de padrões estereotipados que tendem a se cristalizar por meio da transmissão psíquica intergeracional. É preciso assegurar espaços de compartilhamento e acolhimento das necessidades emocionais das díades formadas por mães sociais e adolescentes, atuando no sentido do fortalecimento dos vínculos e no resgate das histórias pregressas como estratégia para possibilitar elaborações de conflitos e ressignificações de experiências afetivas.

Uma atuação do psicólogo institucional com essas características representa uma forma de enfrentamento das mudanças sociais e uma saída do hermetismo que restringia a sua ação ao espaço da clínica convencional. Significa uma aproximação de outras ciências e também de outros profissionais empenhados no trabalho de atendimento à infância e adolescência em situação de risco social e pessoal. A ação no contexto institucional implica, necessariamente, em um processo de investigação que a preceda, no sentido de avaliar a sua dinâmica e as condições que garatam a saúde mental de seus membros, como a sua capacidade de oferecer integração, segurança, gratificação e reparação.

A escolha por investigação a partir da abordagem psicanalítica, focalizada na história da vida, representou uma possibilidade de acesso aos processos psíquicos das transmissões

intergeracionais, manifestos nos conteúdos pré-conscientes dos participantes, sem a necessidade de que esses estivessem submetidos ao processo terapêutico, inviável para essa população. Apesar da riqueza de conteúdos manifestos nos relatos, um dos limites da pesquisa está na dificuldade de investigação de processo presente no campo intersubjetivo e do processo transferencial, construído entre pesquisadora e participante que se mostrariam com maior clareza dentro de uma modalidade clínica. De outra maneira, o trabalho clínico não se mostrou viável, tendo em vista a preservação e o respeito à subjetividade dos participantes.

Em relação às perspectivas de estudos futuros, a partir da pesquisa realizada, alguns possíveis desdobramentos podem ser visualizados como a continuidade da pesquisa sobre as transmissões psíquicas, pois, a pesquisa voltada para famílias sociais em situação de abrigamento não foi encontrada no levantamento bibliográfico, sendo a maioria das publicações voltadas para a transmissão em famílias consanguíneas, com sondagem de determinados padrões entre gerações. Sobre as transmissões intergeracionais em abrigamentos, caberia investigar outros contextos com estrutura, organização e modelos relacionais distintos, incluindo, ainda as famílias biológicas dos adolescentes abrigados, no sentido de distinguir as vinculações e conteúdos transmitidos no triângulo adolescente, mãe biológica e mãe social. Levando em consideração a realidade amazônica, seria de grande relevância uma pesquisa sobre as transmissões intergeracionais em comunidades tradicionais, como indígenas e ribeirinhos.

De acordo com Bleger (1994), a investigação tem o poder de modificar o intestigador e o objeto de estudo, o que, por sua vez, é investigado na nova condição modificada. Dessa maneira, investigar implica numa nova práxis e numa nova compreensão que resulta em novas investigações.

Essa noção de movimento interminável e criativo traz à tona possibilidades de intervenção no ambiente institucional, envolvendo os diferentes grupos que compõem aquela realidade. Uma intervenção não autoritária ou imposta, mas refletida a partir das discussões com os membros da instituição e suscitadas pelo contraponto que os resultados desta pesquisa podem proporcionar.