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6. RESULTADOS E DISCUSSÃO

6.1. A análise das transmissões nas díades

6.1.1. A díade Marilene e Adriano

6.1.1.2. Os obstáculos nas vinculações

Para Fernandes, Svartman e Fernandes (2003), o termo vínculo pode ser definido como a união de uma pessoa ou coisa com outra, pressupondo uma durabilidade, situando-se entre o mundo intra, inter e transubjetivo e referindo-se, também, tanto ao mundo interno quanto ao relacionamento com a sociedade. As vinculações do indivíduo se processam ao longo da sua vida e partem invariavelmente de um modelo externo oferecido pelos pais.

Na situação de abrigamento, as vinculações podem tanto refletir modelos relacionais externos e primitivos como também a matriz vincular da própria instituição de abrigamento. Nos discursos abaixo, analisam-se, a partir dos discursos, as vinculações e suas dificuldades dentro do contexto institucional. Essa análise inicia-se pelo discurso de Adriano.

Essa mãe de agora é ótima, me ensina muitas coisas, uma boa mãe. Só tem um problema que é preocupada demais. Quando fica tarde aí ela começa a ligar. Fala, fala, fala, fala. Aí aqui em casa eu acho que eu sou o mais difícil de conviver. Não sei se eu sou o mais difícil a convivência aqui, porque sempre que eu sentava pra conversar com ela, eu não falava e tal e eu não sou muito de ficar falando. Coisas assim do cotidiano. Não tenho dificuldades, mas quando ela chega eu não quero,

não falo, não gosto de falar, não gosto de falar não. (Adriano)

Apesar da atribuição de qualidades positivas conferidas à mãe social atual, o silêncio é utilizado como defesa diante da preocupação da mãe. O modelo vincular, estabelecido com a mãe social e comunicado no discurso, é o do distanciamento e silenciamento. Esse modelo está ligado tanto às frustrações nas suas relações com a figura materna, pelo grande número de pessoas que ocuparam esse lugar, e pelas atitudes de abandono, agressão e desinteresse percebidos nessas figuras como também pela fase no desenvolvimento psicossexual que vive.

A necessidade de separação dessa figura de autoridade e o desprendimento são evidências da vivência adolescente, já que a fase exige tanto uma preparação para a entrada na vida adulta quanto a saída da instituição (nas regras da instituição, o adolescente é desligado aos 18 anos de idade).

O afastamento está associado à vivência edípica que acontece na adolescência que, de acordo com Aberastury (2000), é determinada, em primeiro lugar pelas mudanças biológicas que habilitam o indivíduo a exercitar a sua genitalidade, desencadeando uma angústia pela fantasia de união com o genitor do sexo oposto, a consumação do incesto. A intensidade da angústia e a maior necessidade de separação dependem da elaboração e do tipo de relacionamento estabelecido nas fases anteriores, o que, no caso de Adriano, se apresenta de forma parcial e defensiva.

Esse processo, no entanto, é uma vivência dual, pois se processa ao mesmo tempo com as figuras parentais que também revivem a sua situação edípica e podem se angustiar e atemorizar diante da evolução da sexualidade dos filhos.

Apesar da não existência de um vínculo consanguíneo entre essa dupla parental, é possível perceber mecanismos de defesa que apontam para a interdição do incesto e para uma resolução comum do conflito edípico, ou seja, a separação progressiva de ambos. O afastamento mais rígido construído pelo adolescente pode ser encarado como uma intensificação de defesa, em virtude da falta da figura paterna, o outro vértice do triângulo, com a sua função limitadora na consumação do incesto.

Para a mãe social, outras questões entram em jogo, quando se trata das vinculações possíveis com os filhos sociais.

Aí na época que eu assumi a casa eu achava que eu não podia gostar dos meninos, que se eu amasse eles eu iria estar traindo o amor dos meus sobrinhos. Eu falava pra ele: esses meninos já foram abandonados, aí a hora que minha mãe precisar eu

deixo tudinho e vou embora, vou abandonar de novo, não quero ser mãe.Aí isso foi

muito difícil, porque eu tive que ir me trabalhando pra eu entender que isso não tem nada a ver, (risos). E isso foi muito difícil. E as meninas também, elas não me aceitavam. Era muito difícil porque eu não sabia como lidar, eu falava que eu não sabia ser mãe, eu falava pras meninas e a Marli falava: mas tu vai aprender! Eu falava: mas quando eu vou aprender? Não tem como! Mas aí, fui me adaptando,

eles já tinham aceitado mais, eu já tinha aceitado eles. (Marilene)

O relato remete a duas grandes questões no que tange ao estabelecimento de vínculos: a construção da noção de parentalidade e a dificuldade vivida nos vínculos com as filhas sociais.

Em função da proposta da instituição, que é a de formação de lares sociais, onde um de seus valores é vivência similar a de uma família nuclear e as funcionárias são chamadas de mães sociais, a parentalidade se torna uma construção sugerida e percebida como necessária para as mulheres que se dispõem a ocupar esse lugar.

Para se adquirir a noção de parentalidade (Houzel, 2004), não basta que a pessoa seja designada para essa função de mãe, é necessário, “tornar-se”, por meio de complexo processo que envolve níveis conscientes e inconscientes do funcionamento mental.

A instituição de abrigamento, ao colocar a mãe social na posição de cuidadora de crianças e adolescentes que estão sob a sua guarda, favorece o exercício da parentalidade, o primeiro de seus eixos, aquele que transcende o indivíduo, pois situa o indivíduo nos seus direitos e deveres, ao mesmo tempo em que garante um espaço social para desenvolver as suas atividades.

No trecho acima, Marilene expõe a sua dúvida e angústia diante da experiência da parentalidade que representa a construção subjetiva consciente e inconsciente de preencher o papel de mãe social. A princípio, essa construção se processa a partir das identificações realizadas no convívio com a figura materna e depende do tipo de vínculo que se empreende. Para Houzel (2004), para que a experiência da parentalidade se processe, é preciso que o conflito edípico resulte numa identificação com o pai do mesmo sexo e também um desejo de reparação dos objetos parentais danificados.

A angústia expressa pode estar ligada exatamente a esse ponto da experiência da parentalidade, assim como a relação difícil com as filhas reflete, também, a identificação restrita ou parcial com a figura materna, agressora e distante. No entanto, a disposição para ocupar esse lugar aponta para uma identificação suficiente para o enfrentamento da prática da parentalidade.

A prática da parentalidade se efetiva nas tarefas cotidianas destinadas a quem ocupa o lugar de filho. Os cuidados destinados ao filho favorecem a experiência da parentalidade, pois desenvolve a noção de competência, ou a certeza de conseguir proporcionar-lhe bem-estar, por meio da comunicação e interação.

Para Marilene, a prática descrita como adaptação e aceitação mútua evidencia o surgimento do sentido de parentalidade, o que também foi percebido pelo filho social, no reconhecimento da sua função materna.

Dessa forma, é possível distinguir o compartilhamento da evolução da parentalidade entre mãe e filho social, somente possível pelo convívio e trocas afetivas, suficientemente fortalecidas para suportar a resolução de conflitos tão invasivos como os descritos nas suas histórias.

Além da experiência como família social, existe ainda aquela que diz respeito à instituição de abrigamento, que precede e define as posturas dos seus abrigados. Quanto à representação que se faz a esse respeito, destaca-se o que segue.