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6. RESULTADOS E DISCUSSÃO

6.1. A análise das transmissões nas díades

6.1.4. A díade Milena e Agnes

6.1.4.2. Emergência e a interdição da sexualidade

A puberdade e a percepção do outro sobre a sua emergência são relatadas com uma grande similaridade por mãe e filha, tanto no que se refere à situação em que ocorre, quanto nas reações experimentadas. Para que as similaridades se evidenciem, os relatos foram expostos em sequência, para, a partir de então, realizar as considerações.

Então assim, meus 15 anos, eu lembro que a mamãe não fez festa, não tinha condições de fazer festa, o meu irmão já trabalhava. Eu morava na Cachoeirinha, ali perto da TV Amazonas, lá em baixo, inclusive até venderam lá. Aí meu irmão fez um almoço, chamou meus colegas, colegas dele de trabalho, aí ficamos no quintal, o quintal era bem grande, conversamos, brincamos. Aí eu sei que comecei a chorar ainda porque começaram me aperrear: ah porque você já é moça, não sei o que. E eu assim, sempre fui muito tímida, desde pequena eu era muito tímida, aí passou o

aniversário, continuei indo pra escola, a mamãe foi ficando velha, todo mundo crescendo, todo mundo estudando, meu irmão se formou e a mamãe adoeceu.

Adoeceu e não levantou mais, daí foi pra morte. (Milena)

Eu era muito magrinha, aí de repente comecei a engordar. Aí um dia a gente estava

em uma festa, aí minha madrinha estava lá. Aí apareceu um tio nosso bonito e falou bem assim: olha a Agnes tá ficando mais fortinha! Aí minha madrinha falou: sabe o que é isso, isso é acocho. Meu irmão até ficou com raiva da minha madrinha. Porque ela fica falando, ela é desbocada assim, fala tudo o que pensa. (Agnes)

Um rito de iniciação é descrito nos dois discursos. A festa é o cenário para que ali se manifeste a sexualidade adolescente. Os convidados são parceiros sexuais em potencial, mas a família também ocupa o seu lugar, o da interdição. Segundo Krom (2000, p. 30), um ritual pode ser compreendido da seguinte forma:

Os rituais podem se apresentar como uma série de atos e comportamentos estritamente codificados na família, que se repetem no tempo e dos quais participam todos ou uma parte de seus membros, tendo, sobretudo na família a tarefa de transmitir a cada participante, valores atitudes e modalidades de comportamentos relativos a situações específicas ou vivências emocionais a eles ligados.

No ritual da família, a puberdade acontece de súbito e de maneira despercebida. Não são elas quem percebem as características sexuais emergindo, é o olhar de desejo do outro que as assalta e mobiliza. A mãe chora, a filha não fala de nenhuma emoção que seja dela mesma. É o irmão que sente raiva.

No primeiro relato, são os amigos do irmão que anunciam a possibilidade do enlace erótico; no segundo, um homem bonito, irmão da madrinha. O distanciamento da sexualidade é quebrado quando seu desejo é tocado por alguém.

As regras familiares educaram os corpos de tal maneira que as evidências sexuais foram negadas, para que o seu lugar nesse grupo não seja ameaçado. Não são regras conscientes, explícitas e restritas apenas a esse contexto familiar, envolvem questões tanto da instituição familiar como da instituição de abrigamento.

A interdição nesse caso está baseada num mito compartilhado dentro da instituição de abrigamento: o mito da prostituição. Nos discursos de vários membros da organização, ele aparece de diferentes maneiras. Nessa dupla familiar, eles se mostram do seguinte modo:

Eu via que a mamãe só queria meu bem, a Milena. Aí minha outra mãe dizia que ia me deixar andar de shortinho, deixar tu andar deste jeito, furar teu umbigo, deixar isso, isso e aquilo. Aí a mamãe chegou, a mãe Milena e me falou que não é por aí, que eu ia me tornar uma galerosa e poderia até, como outras garotas estar me prostituindo por aí. Aí que eu fui cair na real, que minha mãe não estava ali pra me ajudar, mas pra me atrapalhar. Aí minha irmã começou a dar problema, a Adélia. Ela começou sair, não parava em casa. E ela é muito bonita, aí a gente ficava: mãe será que ela tá bem, não sei o que, não sei o que? Aí minha mãe queria tirar o

dinheiro dela. Aí meu padrinho, marido da minha mãe tentou agarrar a Adélia. Depois, a Adélia foi morar com o marido dela agora. (Agnes)

Em vez de conversar ele já ia. As meninas não podiam usar uma calça, uma blusa frente única, sabe. Ele dizia que as meninas já iam atrás de macho. E nisso eu nunca entrei em atrito com ele. Aí quando foi um dia a Adélia ia pro curso ou ia fazer um mandado pra mim e sentou no meio fio ali, ele ia saindo com a Micaela, eu me lembro benzinho, ele ia saindo com a Micaela e chamou a Adélia. Ela me disse: eu pensei que ele ia me levar dar uma carona e aí ele disse pra ela: essa posição que você está sentada aí é uma prostituta esperando macho. Eu achei aquilo muito, muito, muito pesado sabe. Aí ela veio e ficou indignada, veio chorando dizendo que

não estava fazendo nada, estava esperando o ônibus. (Milena)

Na família são concebidas as regras sobre a exposição do corpo, determinando aquilo que poderá ser revelado e aquilo que deverá ser escondido. Para que as regras sejam cumpridas e preservadas, os valores sobre a sexualidade, castigos e punições são associados ao seu descumprimento. As roupas e adereços que revelem a sensualidade do corpo são condenados, e o seu uso implica em ser comparada a uma prostituta. Nessa família e instituição, a punição explícita para mulher ou adolescente que se mostra sensual é um exercício exacerbado da sexualidade, fantasia que existe em torno da prostituição.

Apesar do aparente paradoxo entre a regra e a punição, elas interagem no sentido de interditar as relações sexuais e os comportamentos erotizados. Porém, alguns comportamentos traem essa ordem. No caso relatado por Milena, o dirigente da organização, o pai social dos discursos, é tocado pela imagem da adolescente que, fora dos muros da instituição, é atraída pela filha social e, impedida pela interdição do incesto, a ataca agressivamente. O desejo incestuoso é projetado em outros homens, por quem, supostamente, estaria esperando.

Para que a sexualidade adolescente não se manifeste ou realize, o pai simbólico a pune com a ideia que mais teme, ser comparada a uma prostituta. A mãe, que percebe o desejo, a punição e a dor da filha pela reprovação, porém, não questiona nem a norma, nem a punição, pois esse é também o seu discurso, a sua regra, o conteúdo que ela também herda.

De acordo com Fustier (1991, p. 142):

Por um lado, as relações adulto-criança estão ao mesmo tempo no centro do que na origem da instituição; por outro lado, aquilo que o jargão profissional chama de “ligação afetiva”, e que evoca sedução, é considerado pelos interessados seja como o motor principal, seja como o perigo maior da ação reeducadora.

Diante do perigo da liberação da sexualidade e da necessidade do seu controle e interdição em adolescentes e adultos, nessa instituição um mito é criado, o mito da prostituição, funcionando como uma defesa diante dos desejos. O mito, segundo Krom (2000, p. 27), pode ser assim compreendido:

O primeiro olhar ao mito foi dirigido por Ferreira3

, que o reconhece em uma função defensiva na família, verificando-o na homeostase e na estabilidade das relações, e o define como crenças, que são sistematizadas e compartilhadas por todos os membros da família. Segundo este conceito, tais crenças não são contestadas por nenhuma das pessoas interessadas, apesar de incluir distorções evidentes da realidade.

Nesse caso, o mito da prostituição foi fundado para dar sentido aos valores morais da família e da instituição que carecem dessas estruturas para se organizar e também justificar os seus manejos contraditórios.

No caso da dupla parental Milena e Agnes, os conteúdos compartilhados são da ordem parental e sexual, ambos funcionando como fontes de angústia e, ao mesmo tempo, de preexistência em suas histórias familiares.