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A VIOLÊNCIA GRATUITA DO ESTADO DIANTE DOS EXCLUÍDOS

Passados mais de três anos do início da organização, mobilização e fé, de um lado, e desconfi ança, medo e preconceito, de outro, um sentimento de tragédia se avizinhava. E assim aconteceu. O ataque sangrento da Polícia militar aos monges deu-se na Semana Santa de 1938 quando os penitentes, “mais de mil pessoas”, estavam reunidos em orações e cânticos na capela de Santa Catarina, na Bela Vista. O depoente Adolfo Carniel conta que veio o destacamento de Santa Maria para dar fi m àquelas “badernas” que esta- vam acontecendo naquelas paragens. No amanhecer da Sexta-feira Santa, o destacamento abriu fogo contra os penitentes que se aglomeravam no interior da capela e fora dela: “A igreja, ali embaixo, era de madeira naquela época. Ficou toda furada de bala”. O episódio, muito presente na memória do sr. Carniel, é assim relatado:

Os policiais começaram a atirar quando pegaram a declinar por cima da Igreja. Eram uns 12, um delegado, uns 10 brigadianos, mais o Amâncio Marques e o Beto de George. O que iam fazer contra 1200 pessoas? Daí, quando atiraram, muitos fugiram e, quando os policiais chegaram na Igreja, tava cheia de gente. O Deca França não tava.25 O Tácio Fiúza tava, foi baleado e morreu. O Deca morreu nas

25 André França, chamado popularmente de “Deca”, era um dos pequenos agricultores de sub-

sistência, plantador de feijão, trigo e fumo, que morava na região. Foi a principal liderança dos caboclos internalizando e propagando os ensinamentos do suposto São João Maria, que teria passado pela região. Algumas teorias divergem sobre a verdadeira identidade do monge “João Maria”. O que se sabe é que, em meados de 1935, um velho de barbas brancas, com um saco de linhagem às costas, apresentou-se na pequena propriedade de Deca França. Em troca da hospedagem, o velho, até então desconhecido, introduziu o colono na arte das ervas e em outros segredos da natureza. Ao partir, revelou a sua identidade e missão. Daí em diante, Deca França, pobre agricultor analfabeto, investido pela autoridade do “Santo” João Maria, passou a distribuir, em seu quintal, conselhos para a alma e para o corpo dos cada vez mais numerosos seguidores.

Monges Barbudos

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Campinas... O Pedro Antônio Pontes era o delegado. Junto com os outros 12, veio aí e fez tudo isso.

Este dia trágico também é relatado por outras testemunhas que estavam no local na hora do tiroteio.

A violência gratuita foi a tônica utilizada. Diz “seu” Carniel:

O Amâncio entrou e buscou o Estácio Fiúza (liderança) por um braço e tirou pra fora; quando largou na escada pra outros pegar, ele escapou. Quando o Fiúza foi pular a cerca, eles atiraram e acertaram ele. Não sabem quem que acertou. Dizem que foi o Júlio Telles. Ele morreu com três tiros...

O dia do “tirotéu” também é lembrado e relatado por outros depoentes, com uma maior riqueza nos detalhes, como o caso dos calçadinhos das crianças e dos chapéus que fi caram espalhados pelo chão depois do ataque dos policiais: “Aqui o dia do ‘tirotéu’, diz que tinha muita gente, eu não vi, eu vim depois, aí tinha um baleado dentro da igreja e calçadinhos de crianças e chapéu de palha de trigo espalhados pelo chão”, afi rmou “seu” Aníbal.

O depoimento do “seu” Aníbal fecha com o depoimento do “seu” Car- niel ao mencionar que Tácio Fiúza fora baleado naquele ataque: “Diz que ele (Tácio) morreu na estrada”. Além de Tácio, mais uma criança e um homem morreram:

E uma criança e mais um homem morreram na estrada, quando eles dispararam. E tinha uma cerca de arame assim, arame farpado, ali tinha fi o de cabelo, fi apo de roupa, naqueles arames todos, porque, quando começou o “tirotéu”, sabe, o pessoal até nem conheciam essas armas assim de quartel, e aí quando começou o “tirotéu” eles deram no pé.

Interessante o relato do sr. Aníbal ao contar um diálogo ocorrido entre um comissário e um homem integrante dos monges que fora ferido à bala e que estava na porta da igreja: “O que que tem homem?”, diz o comissário: “Eu não tenho nada”, respondeu o crente. “Não tem nada, então por que tá gemendo? Mas é assim que vocês querem, é bala que vocês querem em vez de trabaiá, fi cá em casa!!!”, exclamou o comissário com autoridade.

Continuando o relato do dia fatídico, os depoentes expressavam que, com o ataque da Brigada Militar, os romeiros dispersaram pelo mato adentro e a campo fora... Trouxeram Tácio Fiúza para ser velado e enterrado no Rincão dos Barnabés (Rincão dos Costas), no Jacuizinho, a uma distância de aproximadamente 40 quilômetros da capela da Bela Vista, onde foram atacados. A Brigada permaneceu na região naqueles dias e fi caram sabendo que os “monges barbudos” estavam reunidos no Rincão dos Costas. De pronto se organizaram e rumaram para aquela localidade à procura das

Formas de resistência camponesa: visibilidade e diversidade de confl itos ao longo da história

lideranças e com o intuito de prender todos que professassem tal crença. Diz “seu” Aníbal:

Bom, dali, daquela época em que saiu aquele “tirotéu”, fi cou uma parte da Brigada e aí iam perseguindo o tal de Deca, e ele se escondia. Ele era o chefe. Ele não fez mais a barba e não cortou mais o cabelo, isso já fazia uns três ou quatro anos ou mais. Assim se confi rmou a presença da Brigada no local, prendendo as pessoas, torturando e matando. Não descansaram até pegar o outro líder do grupo, o Deca França: “Custaram muito a conseguir pegar ele (Deca França), mas pegaram, e aí cortaram o pescoço dele e levaram a cabeça. E aí o pessoal pegou a se enforcar...”. Segundo testemunhas, muitos barbudos foram obrigados a raspar suas barbas, muitas humilhações sofreram, veneno fora colocado em suas barbas e seus cabelos, roubo às moradias e estupros foram violências cometidas pelo aparato militar. Todos os depoimentos foram unâ- nimes em mencionar tais crimes. Por muito tempo a polícia fi cou na região até que se comprovasse a não-existência de mais nenhuma manifestação da religião: “Aí foi terminando, foi terminando aquela crença. Não faziam mais aquelas caminhadas”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A história ofi cial brasileira sempre foi contada pelos vencedores, nunca pelos derrotados. Preocupou-se sempre com os heróis da classe poderosa, nomes importantes da mesma classe, datas comemorativas a decorar, fatos que não refl etiram e não refl etem a verdadeira realidade do povo que foi, e ainda é, massacrado. O objetivo desta pesquisa foi dar voz aos excluídos, escutá-los, deixá-los falar... e isso é o mínimo que podemos oferecer como forma de nos redimir pelos erros e omissões das instituições do passado.

Passadas quase sete décadas do desfecho trágico do episódio dos Monges Barbudos, encontramos ainda remanescentes que vivenciaram a tortura e a perseguição. Apesar disso, guardaram até nossos dias a mesma fé propa- gada na época. E mais, transmitiram a seus fi lhos e netos os ensinamentos espirituais de João Maria (o profeta) e dos líderes “consagrados” Deca França e Tácio Fiúza.

O confl ito dos “monges” de Soledade soma-se à lógica da hecatombe promovida pelo Estado diante dos demais movimentos sociais de cunho religioso no Brasil, como Mucker, Canudos e Contestado, entre outros, todos cruelmente massacrados pelas forças ofi ciais. Esses camponeses (ca- boclos na maioria) jamais tiveram seus direitos reconhecidos, nem mesmo mediante um pedido público de desculpas pelas autoridades constituídas, por esse crime de Estado singularmente gratuito.

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Como dizem Pereira e Wagner (1981),

a seita não foi varrida das crenças dos habitantes do Lagoão que continuam até os dias de hoje a homenagear em seus altares as imagens de Santa Catarina, Santa Terezinha e do profeta São João Maria em muitas casas pobres do lugar.

Aos sábados, os penitentes trabalhavam apenas nos serviços essenciais. Até hoje essa prática é igualmente verifi cada em diversas famílias da região. Até nossos dias é possível perceber manifestações da religiosidade popular dos moradores da região remanescentes do referido movimento. Todo domingo pela manhã integrantes da comunidade reúnem-se para rezar o “terço cantado”, costume dos primeiros integrantes do movimento, além das novenas e as “excelências” que são orações cantadas em duas vozes nos velórios e celebrações pelos já falecidos.

Diante da ideologia neoliberal capitalista, revestida do apanágio “globali- zante”, que procura, de todas as formas, infundir sua cultura dominante em todas as partes do planeta, buscando o apagamento e a extinção das culturas locais, este trabalho teve como objetivo resgatar a memória, a imaginação e a cultura local da Comunidade dos Monges Barbudos.

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A REVOLTA

CAMPONESA

DE PORECATU*

Angelo Priori

INTRODUÇÃO

A

região denominada “Porecatu” está encravada no extremo

Norte do estado do Paraná, situada no vale do rio Paranapanema. A colo- nização dessa região começou no fi m dos anos 1930 e início de 1940, no contexto da nova política de terras implementada pelo governo Vargas e conhecida como Marcha para o Oeste. Com Vargas, o Brasil irá criar, pela primeira vez, a possibilidade de efetivar um reordenamento agrário. A idéia de grandes propriedades latifundistas produzindo para a exportação, tão arraigada entre as classes dominantes da República Velha, será, em tese, transformada em uma política voltada para a constituição de uma política agrária, tendo como princípio a pequena e a média propriedade, com base em núcleos coloniais, com vista à produção de alimentos e matérias-primas para atender a uma demanda interna cada vez mais crescente.

É nesse contexto histórico que posseiros, pequenos proprietários, tra- balhadores e colonos, oriundos principalmente do estado de São Paulo, atraídos pela perspectiva de conseguir melhores condições de trabalho e de vida e, sobretudo, a posse de uma parcela de terra, irão se radicar naquele sertão quase desconhecido do Norte do Paraná.

* Este texto condensa refl exões da tese A luta pela defesa da terra camponesa e a atuação do PCB

no campo (1942-1952), defendida na Unesp de Assis em 2000 e de pesquisa recente, sobre a atuação do DOPS diante dos movimentos sociais no campo, fi nanciada pelo CNPQ (processo n.400059/2004-5) e Fundação Araucária/PR (Convênio n.017/2004).

A revolta camponesa de Porecatu

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Primeiro, a colonização ocorreu em pequenas posses de terra, pelo plantio de café, de culturas alimentares e de criação de porcos; posterior- mente, em meados dos anos 1940, a organização da propriedade da terra foi realizada com a presença de grandes grileiros, que expulsaram os pos- seiros e estruturaram suas propriedades com base no cultivo da cultura do café, na criação de gado, na plantação de cana-de-açúcar, associadas com o trabalho assalariado.

Portanto, são esses dois agentes sociais – posseiro e grileiro – os per- sonagens de um dos mais importantes confl itos de terra do estado do Paraná no século XX. A presença desses grandes grileiros na região, que por intermédio da polícia, de jagunços e de pistoleiros expulsavam e to- mavam as terras dos posseiros, é que irá motivar a organização de uma resistência – que posteriormente se transformou em resistência armada – com o objetivo de defender suas posses e as benfeitorias nelas existentes. Os confl itos armados tiveram início no fi m de 1948 e só foram desmo- bilizados em julho de 1951, com a presença das tropas da Polícia Militar do estado e de agentes das Delegacias Especializadas de Ordem Política e Social (DEOPS) de São Paulo e do Paraná. A resistência armada dos posseiros de Porecatu marcou a região, que se constituiu alvo de grandes reportagens nos principais diários do país e em órgãos de imprensa pe- riódica, como a revista O Cruzeiro e o semanário Voz Operária, órgão do Partido Comunista Brasileiro (PCB).

O PCB foi um agente fulcral da resistência armada. Através dos diretó- rios municipais de Jaguapitã e de Londrina, e mais tarde, do próprio Co- mitê Central, o partido participou da organização do movimento armado, enviando para a área de confl ito vários militantes experientes e dando uma efi caz retaguarda, mediante não só o envio de armamentos e muni- ção, mas também apoio fi nanceiro, assim como roupas e alimentos para os resistentes.

A intervenção do PCB na região e na organização do movimento armado de Porecatu foi possível dada a mudança de sua linha política, decorrente dos “manifestos” de janeiro de 1948 e de agosto de 1950, que apontavam para o Partido a necessidade da defesa da “violência revolucionária” como linha de ação, visando à luta direta para a tomada do poder. Nesse sentido, o Partido propôs, em seu programa, a formação de uma Frente Demo- crática de Libertação Nacional, cujo objetivo maior consistia em fazer a “revolução agrária e antiimperialista”. Em relação ao campo, defendia a imediata entrega das terras dos latifundiários para os camponeses que nelas trabalhavam. E para isso seria fundamental, na visão do PCB, a organização dos camponeses (pequenos proprietários, posseiros, arrendatários, meeiros, parceleiros) e trabalhadores rurais (assalariados) como aliados naturais do proletariado na tarefa de fazer a revolução.

Formas de resistência camponesa: visibilidade e diversidade de confl itos ao longo da história

ORGANIZANDO A RESISTÊNCIA.

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