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CARACTERIZAÇÃO DOS GRUPOS SOCIAIS QUE CONTRIBUÍRAM COM A IMPLANTAÇÃO

DA PRODUÇÃO CAMPONESA NA REGIÃO DO

SUDOESTE DO PARANÁ

Três foram os grupos sociais que contribuíram decisivamente na ocupação da região do Sudoeste do Paraná: o caboclo, o colono gaúcho e catarinen- se e o comerciante de vila. Não se pode atribuir a um, maior ou menor importância que outro, mas se deve analisar o resultado do conjunto de marcas que tais grupos sociais deixaram sobre a região e os acontecimentos históricos que os uniram no sentido de resistência camponesa na região.

Os caboclos

A região do Sudoeste do Paraná é marcada, historicamente, pelo Levante Armado dos Colonos de 1957. Esse evento que marca sua história atraiu atenção diferenciada da academia, de forma que, sem dúvida, se trata de uma região brasileira das mais estudadas. Mas entre os numerosos estudos realizados, em especial entre os que se dedicam à análise da ocupação, a presença dos caboclos como elemento importante na formação territorial da região é timidamente considerada. Certamente quem viveu nessa região

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há vinte ou trinta anos sabe testemunhar a presença marcante dos caboclos, seus feitos, seus traços culturais, a infra-estrutura regional iniciada por eles. Desconhecer a presença dos caboclos é adotar um entendimento de terri- tório sem considerar o todo, a história, a cultura, o processo da construção da infra-estrutura etc.

Nos anos de 1987 e 1988 realizou-se uma pesquisa na região do Sudoeste do Paraná intitulada “Safras e Safristas – A Produção Cabocla do Sudoeste do Paraná”, com auxílio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científi ca e Tecnológico (CNPq), cujas conclusões já foram publicadas (Boneti, 1998), com o objetivo justamente de estudar a marca deixada pelos caboclos no Sudoeste do Paraná em termos da constituição de um sistema produtivo. Com essa pesquisa se conclui que não eram apenas os pesquisadores que minimizavam a passagem dos caboclos pela região, mas esse desprezo vinha sobretudo da população migrante, gaúchos e catarinenses, e que, ao contrário, a presença dos caboclos era visível no sistema produtivo e no convívio social historicamente construído.

Fundamentalmente, o caboclo, no período que antecedeu a vinda dos migrantes gaúchos e catarinenses, dedicou-se a três tipos de atividades econômicas: extrativismo de erva-mate, a comercialização do couro de animais silvestres e a criação de suínos no mato.

Constata-se que os caboclos estabeleceram com a Argentina, mediante picadas, a primeira relação com o mundo externo. E foi com os argentinos que o caboclo aprendeu lidar com erva-mate, desde o extrativismo até o próprio consumo. Esse contato dos caboclos com a Argentina não se deu por iniciativa deles próprios, mas dos argentinos intrusos que vinham explorar a mata nativa da região. Posteriormente a Argentina representou um importante intercâmbio comercial entre os caboclos no que se refere à comercialização de erva-mate em troca de produtos de primeira necessidade para a sobrevivência.

Paralelamente à erva-mate, a comercialização do couro de animais silvestres representou a forma que o caboclo encontrou para suprir-se do que considerava importante à sua sobrevivência na região, como sal, que- rosene, tecidos etc.

A comercialização do couro e a produção de erva-mate representa- ram a efetivação de uma pequena capitalização de alguns caboclos que, utilizando-se dessa capitalização, se lançaram na intensifi cação da criação de suínos no mato. Além dessa pequena capitalização, considera-se que a comercialização do couro de animais silvestres trouxe ao caboclo a aber- tura de mercados que representou daí em diante o ponto fundamental do escoamento do excedente de produção regional. Essa abertura ao mercado deu-se graças a condições de acesso construídas (picadas) pelos próprios comerciantes de couro. Com tal acesso dos caboclos ao mercado, teve início

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na região a primeira forma sistemática de produção cabocla que se deu em decorrência da criação de suínos no mato.

Pode-se dizer que a exploração de erva-mate e de couro de animais silvestres se constitui uma espécie de “acumulação primitiva” conforme a designação de Marx, para a implementação da atividade da produção de suínos no mato. Essa acumulação inicial possibilitou se estruturar, entre os caboclos, uma espécie de divisão social do trabalho, a partir dos que já dispunham de recursos fi nanceiros básicos, dando base para o início da comercialização de suínos criados no mato, entre os próprios caboclos e a origem das “safras” uma atividade resultante da comercialização de suínos entre os próprios caboclos.

Denominou-se safra na região o processo de engorda de suínos criados soltos no mato, em mangueirão ou no meio de uma lavoura de milho. O safrista, graças a seu capital disponível, adquiria de seus vizinhos suínos magros e os reunia para engordar. No fi nal da engorda, transportava-os a pé, pelas picadas no mato, “enxotando-os”, o que se chama “tropas”. Nesse caso, o que chama a atenção não é a criação de suínos em si, mas o comércio gerado a partir dessa produção e a capitalização interna decorrente desse comércio.

A safra signifi cou a inserção dos caboclos no mercado formal. Dava-se o início do contato formal com o mundo capitalista, na qualidade de pro- dução de mercadorias. Tratava-se do excedente produzido pelo caboclo, à disposição do mercado, possibilitando a ele a aquisição de gêneros de primeira necessidade não produzidos na agricultura.

Outro elemento de análise importante é o papel desempenhado pelas tropas no processo de capitalização dos safristas, as quais viabilizavam a venda do excedente e traziam, por intermédio do próprio tropeiro, o capital necessário à complementação do círculo comercial. Seria o capital necessário para aquisição, pelo safrista, além dos gêneros de primeira necessidade, de suínos magros para a constituição de outra safra. Com isso, o capital tinha uma circulação interna entre os próprios caboclos.

O sistema de produção por safras gerou o aparecimento da exploração comercial da compra e da venda de suínos entre o caboclo comum e o caboclo safrista. Isso desencadeou o aparecimento de certa diferenciação social provocada pela capitalização de alguns safristas, com a exploração do lucro na compra e na venda da produção de suínos. Esse aspecto se constitui no ponto fundamental da capitalização interna havida desde o início da ocupação da região, que possibilitou o aparecimento de grandes safristas com grande volume de negócios. Esses safristas permaneceram com suas atividades, mesmo após a chegada dos primeiros migrantes, gaúchos e catarinenses. O caboclo comum, descapitalizado, foi deixando a região à medida que o migrante chegava e adquiria suas posses, caracterizando um

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processo de expulsão se se considerarem as contingências impostas pelas relações mercantilistas daquela época na região.

Outro fator importante a ressaltar em relação à presença dos caboclos na região diz respeito à origem da noção da propriedade da posse da terra, considerando que se tratava de uma região cuja área territorial pertencia à União. Isto é, os caboclos já tinham a noção mercantilista da propriedade da terra, mesmo que essa fosse representada pela posse. As divisas, mesmo feitas de forma precária, demonstravam que o caboclo tinha a noção formal da propriedade individual da terra, de forma que entre eles havia a “lei” do respeito às divisas feitas com picadas ou com árvores “falquejadas”. Mesmo o migrante, ao chegar à região, adotou a “lei” criada pelos caboclos, ou seja, a estipulação de divisas e o respeito pela propriedade de posses da terra. Essa regulamentação da posse da terra criada pelos caboclos foi adotada pelo migrante e passou a pertencer a seu cotidiano até a intervenção do Estado com a regulamentação da propriedade da terra em benefício dos já posseiros.

Em relação à organização social, como os caboclos não possuíam uma infra-estrutura produtiva defi nitiva na propriedade rural, não dispunham de uma estrutura física de sua organização social. Os caboclos gostavam muito de festas, mas não construíam seus clubes, por exemplo. A diversão preferida era dos bailes, mas esses eram feitos nas próprias casas de moradia ou nos terreiros de sua casa.

A base da organização moral e ética dos caboclos era a Igreja (Católica), os caboclos se diziam católicos, mas não exerciam o catolicismo como o migrante, por exemplo. Eles não freqüentavam a Igreja. A capela, como infra-estrutura da organização social, não existia para os caboclos. Mesmo depois da chegada dos migrantes e da construção das primeiras capelas à região, os caboclos não compareciam aos cultos dominicais. Mas demons- travam religiosidade, rezavam em casa, nem sempre a oração “ofi cial” do catolicismo.

O ritual do Divino Espírito Santo acontecia todos os anos na data da Festa do Divino. A bandeira do Divino era conduzida numa procissão, visitando as casas dos caboclos, pedindo reza. Num ano, essa tarefa era assumida por uma localidade, ou uma “linha” e no ano seguinte era assumida por outra localidade, assim por diante.

Outro ritual muito difundido entre os caboclos era o que eles chama- vam de procissão das almas. Na Semana Santa, um grupo de pessoas saía peregrinando de casa em casa pedindo reza para as almas.

Quanto à medicina cabocla, essa era simples. Não dispunham de recursos médicos e sequer desejavam isso, buscavam na natureza o que lhes seria necessário. Nos casos mais sérios, procuravam os curandeiros, entre os próprios caboclos. Mais tarde, alguns migrantes trouxeram para a região a

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medicina homeopática, como foi o caso do comerciante Joaquim Bonetti, um dos fundadores da cidade de Enéas Marques. Ele, como foi um dos pri- meiros migrantes a chegar à região, dedicou-se, além do comércio, a tratar as famílias de caboclos ainda remanescentes com homeopatia.

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