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A tese do afastamento do campesinato dos benefícios materiais e simbó- licos da legislação trabalhista embasou como principais desdobramentos a defesa da “intocabilidade” das relações tradicionais no campo durante a Era Vargas; o populismo como esquema explicativo das relações entre Estado e classe trabalhadora entre 1930-1964; e o entendimento das mobi- lizações camponesas como resultado da ausência de direitos, mais do que a valorização de toda uma experiência coletiva na construção de noções de justiça e injustiça.

A afi rmação de que o projeto do Estado, pensado como instrumento de classe, para o mundo rural na Era Vargas procurou e logrou êxito em assegurar a preservação das relações tradicionais no campo esvazia o es- tudo das formas de resistência camponesa, sobretudo as cotidianas, mais comuns, apesar da menor visibilidade. Também minimiza as estratégias dos proprietários para barrar os avanços legais, seja por suas instituições, seja por suas práticas nos níveis locais. Por fi m, negligencia os obstáculos políticos e jurídicos que o projeto da burocracia estado-novista atravessou para contornar as pressões contrárias à extensão dos direitos sociais aos trabalhadores rurais.

O segundo elemento bem forte nas análises tradicionais é o referencial do populismo como principal modelo explicativo para o longo período iniciado na Revolução de 1930, para alguns, ou, no fi m do Estado Novo, em 1945, para outros autores, até o golpe civil-militar de março de 1964. As massas urbanas foram incorporadas num esquema de manipulação pelas lideranças carismáticas, inserindo o campesinato como mais um agente passivo dessa manipulação, incapaz de articular demandas e interesses próprios.

Dessa forma, a mobilização camponesa nas décadas de 1950 e 1960 foi pensada como resultado do afastamento dos direitos outorgados aos trabalhadores urbanos, ou seja, foram tratadas de uma forma negativa, ex- plicadas pelas suas ausências, abandonando o que efetivamente possuíam de peculiar para contribuir com as lutas, como uma cultura política própria. Reforçava-se com isso, a passividade, a ignorância, a leniência, marcas a- históricas do que seriam não só o campesinato, mas as camadas populares brasileiras.

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A possibilidade aqui defendida, em sentido contrário, é a do desenvol- vimento de uma cultura política, durante o período de adversidades atra- vessado no mundo rural brasileiro, que coincide com os efeitos da crise de 1929 na grande plantação e do afastamento de grupos políticos tradicionais do protagonismo político nacional e estadual no primeiro governo Vargas. Essa cultura política camponesa poderia ser aferida pelos indícios forne- cidos pela forte presença da imagem de Vargas na memória dos camponeses sobre o período, retratando-o como o “homem que abriu o caminho de todos”, o “verdadeiro responsável pela abolição”, associado a leis e direitos, e a um poder superior ao da dominação pessoal tradicional dos proprietá- rios. As cartas remetidas ao presidente nos permitiram constatar como por baixo do véu do paternalismo, as imagens caras ao regime foram utilizadas como as armas dos mais fracos para pleitear e até mesmo realizar aquilo que consideraram justo.

O material analisado abarcou duas regiões rurais importantes, cujas conclusões de forma alguma podem ser aplicadas indiscriminadamente a todo o país. Afi rmações mais taxativas deverão estar lastreadas em novos estudos assentados em investigações empíricas que permitam generalizá- las de forma segura às outras regiões do Brasil. No entanto, pode-se afi rmar que essa cultura política vinculada à emissão do discurso ofi cial, mas fundamentalmente fi ltrado, selecionado e utilizado a seu favor pelos camponeses, contribuiu para a erosão da autoridade tradicional dos grandes proprietários rurais, para um senso de justiça e, conseqüentemente, para as mobilizações posteriores.

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