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PARA TER UMA TERRINHA: PEDINDO UM LOTE AO PRESIDENTE DO MEU PAÍS

Aqui buscamos avaliar não aqueles camponeses prestes a perder sua terra, ou que já a tinham perdido. Analisamos aqueles que, possivelmente infl uen- ciados por um discurso ofi cial que valorizava simbolicamente o trabalhador do campo, incentivando uma hipotética Marcha para o Oeste, sentiam-se encorajados a escrever a Vargas durante o Estado Novo.

Comecemos pela carta de Manuel dos Santos Rosa.14 Morando no Rio

de Janeiro, Manuel se inscrevera na Divisão de Terras e Colonização do Ministério da Agricultura para obter um lote em Nova Iguaçu, no Núcleo Colonial de São Bento. Quando foi levar a documentação para ser contem- plado com o lote, foi informado de que não poderia ocupá-lo, pois a lei de proteção às famílias numerosas (Decreto-lei n. 3.200) determinava que a prioridade fosse para os que já tinham pelo menos cinco fi lhos menores, e ele, Manuel, embora tivesse sete fi lhos, só tinha um menor de idade. Manuel escreveu ao ministro da Agricultura esclarecendo que seus fi lhos estavam todos desempregados e ele teria de sustentá-los. Recebendo nova negativa, Manuel escreveria nova carta, agora a Vargas, contando suas difi culdades.

“Presidente, todos os meus fi lhos já possuem fi lhos e eu tenho que sus- tentar meus netinhos. Tenho certeza que o senhor, como avô amantíssimo, entende minha difi culdade.” O pai Manuel pedia que o presidente que ele afi rmava ter o sorriso emoldurado em um quadro, abrisse-lhe uma exceção.

Manuel não foi atendido, pois a Divisão lembrava a impossibilidade, mas, em suas cartas, podemos perceber o jogo que procurava estabelecer

14 Ver o processo de Manuel dos Santos Rosa em Arquivo Nacional, Fundo Gabinete Civil da

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com a autoridade central. Apelava, em primeiro lugar, para a noção de família. Vargas não era apresentado como o grande pai nacional, que tudo faria pela família Brasil, pelo regime? O pai Manuel pedia ao pai Getúlio que o ajudasse a cuidar de sua família.

Outro aspecto importante é a noção de justiça contraposta à da legali- dade stricto sensu. Manuel era informado de que a prioridade devia ser de quem tivesse fi lhos menores, mas ele não tem pejo em pedir a exceção por considerar seu pedido justo. A aparente submissão na verdade acaba convertida em esperança, quase certeza, de que será atendido. Finalmente, lembremos que Manuel é um homem que já mora na cidade, mas deseja voltar ao campo. Tanto durante o Estado Novo como no segundo governo Vargas, será freqüente a idéia de retornar à lavoura para reconstruir a vida desorganizada nas cidades.

Também do Rio de Janeiro, Américo Chaves15 escrevia ao presidente

“que a santíssima trindade colocara para guiar os destinos do país”. Aqui o que temos é um discurso que aponta, além da noção de justiça, a da ca- ridade. Américo já tivera seu lote na estação ferroviária de Belém (Japeri), mas não conseguira cultivá-la por doença. Escrevia agora ao presidente com um discurso pontilhado por citações de cunho místico. O presidente, posto à frente do país pela Providência, o auxiliaria a construir a pequenina “Santíssima Verdade”, nome que daria à sua propriedade. Américo, que trabalhava como pedreiro, acabou não sendo encontrado.

A idéia de deslocar-se para o campo durante o Estado Novo não ocorria

só no Rio de Janeiro. De Belo Horizonte, Minas Gerais, Enéias Couto16 es-

crevia pedindo ajuda para comprar uma “fazenda”, pois “não me ajeito aqui na cidade”. O regime, através de Otávio Rodrigues da Cunha, diretor da Divisão de Terras e Colonização, esclarecia que ele poderia deslocar-se para uma das colônias agrícolas, no caso a de Goiás, onde poderia ter um lote de 20 a 50 hectares. Vale salientar que a proposta de colonizar tinha dois obje- tivos estratégicos: de um lado, desinchava-se a cidade dos desempregados; de outro, criava-se no campo um setor dependente da burocracia central (Lenharo, 1986, p.45). Todavia, não é demais recordar que normalmente os missivistas que escreviam estavam em situação por demais precária para se deslocarem para outros pontos distantes de seu estado natal.

Tal, por exemplo, é a razão de Nelson Limoeiro Castelo Branco.17 Tam-

bém de Belo Horizonte escrevia pedindo um auxílio em dinheiro para se

15 Ver Arquivo Nacional, Fundo Gabinete Civil da Presidência da República, Lata 331, Prot.

10.325/1940.

16 Ver a carta de Enéias Couto em Arquivo Nacional, Fundo Gabinete Civil da Presidência da

República, Série Ministério da Agricultura, Lata 397, Processo 4378/41.

17 A carta de Nelson Limoeiro Castelo Branco pode ser analisada em Arquivo Nacional, Fun-

do Gabinete Civil da Presidência da República, Série Ministério da Agricultura, Lata 396, Processo 5326/42.

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dirigir à fazenda que um amigo lhe oferecera. Desempregado e com cinco fi lhos, não tinha como se deslocar e pedia auxílio ao presidente. Otávio lhe oferecia uma possibilidade: um lote em Goiás. Nelson agradecia, mas explicava não ter como ir para Goiás. Otávio no processo reconhecia que “o senhor Nelson merece ser ajudado”, mas o Ministério não tinha recursos para fazê-lo.

As difi culdades dos missivistas sempre eram um ponto importante para que tentassem em suas cartas sensibilizar o presidente da República. Vitório

da Costa,18 ao escrever de Jequiriçá, na Bahia, contava sua saga. Perdera o

pai aos nove anos de idade e, em sua letra quase incompreensível, sabemos que trabalhava desde cedo. Agora casado, com dois fi lhos, esposa cega e mãe idosa, se preocupava com o futuro. O proprietário da fazenda de café onde ele trabalhava, morrera; Vitório fora para a casa de um cunhado mas, temendo pela situação de seus fi lhos, pedia uma ajuda em dinheiro para comprar terras no interior do estado. Otávio usava a mesma estratégia de Nelson. O Ministério não tinha terras na Bahia, mas ele poderia, assim que fossem construídos os Núcleos Coloniais no Amazonas, Pará e Maranhão, solicitar diretamente à Divisão de Terras para ser incluído. Como alguém com tantas difi culdades poderia fazer uma viagem de milhares de quilô- metros Brasil adentro?

A idéia de família que Vitório procurava sustentar também está presente em outros pedidos. A noção de que pais recorriam ao grande pai nacional para ajudá-los a cuidar de seus fi lhos era recorrente nas cartas por nós ana- lisadas. Os muitos fi lhos eram sempre lembrados como uma motivação a mais para que o regime atendesse ao peticionário.

O nordestino Manuel de Brito19 ao escrever de Penápolis (São Paulo)

lembrava que já lutara contra a seca e agora pedia um lote de terras para que pudesse sustentar seus dezessete fi lhos.

No mesmo sentido, João Gotardo escrevia de Cachoeiro do Itapemirim,

Espírito Santo,20 explicando que tinha dezessete fi lhos e agora precisava

aumentar sua área de terras, visto que os cinco alqueires que possuía já não lhe permitiam sustentar a família. Pedia auxílio ao presidente que “é o pai da pobreza”.

Américo Farias Lima21 escrevia de Itaperuna. Esclarecia que não queria

mais “trabalhar em terra alheia” e desejava amparo para cuidar de seus dez

18 A carta de Vitório da Costa Souza pode ser vista em Arquivo Nacional, Fundo Gabinete

Civil da Presidência da República, Lata 397, Processo 6578/42.

19 O processo de Manuel de Brito pode ser visto em Arquivo Nacional, Fundo Gabinete Civil

da Presidência da República, Lata 331, Processo 6145/60.

20 Quanto a João Gotardo, ver Arquivo Nacional, Fundo Gabinete Civil da Presidência da

República, Ministério da Agricultura, Lata 398, Processo 8913/42

21 O documento que se refere a Américo Farias Lima está em Arquivo Nacional, Fundo Gabi-

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fi lhos. Não se esquece de anexar as certidões de nascimento, como prova da veracidade do que alegava.

Qual era a reação da burocracia da Divisão de Terras e Colonização para esses pedidos? Nos casos de Manuel e Américo, foi oferecido ao primeiro um lote no Núcleo Marquês de Abrantes, no Paraná; e, ao segundo, em São Bento, na Baixada Fluminense. Entretanto, Manuel recusou o pedido posto que, certamente com mais de sessenta anos, não poderia se deslocar para o Paraná. Américo sequer responde à oferta. Prevalecia aqui a noção já exposta de manter aberta para o roceiro a possibilidade muito mais imaginária que efetiva do acesso à terra, num lote do Núcleo Colonial em área pública.

Para João Gotardo a resposta seria um tanto diferente: simplesmente recomendava-se o não atendimento, pois o Ministério da Agricultura não tinha núcleos no Espírito Santo, e não seria conveniente trazer o senhor Gotardo e sua numerosa prole para próximo do grande centro, ou seja, o núcleo na Baixada Fluminense, próximo à capital federal. Conforme Otávio Cunha, isso seria exatamente o contrário do que preconizava a política estatal, que se orientava a fi m de afastar o camponês do grande centro, tentando anular o crescente inchaço das cidades. Contudo, há aqui um não-dito: Gotardo, apesar dos pesares, era um proprietário. Não poderia bancar um fi nanciamento no Banco do Brasil, mas não pertencia ao número dos lavradores pobres a quem seria importante contentar com a perspectiva de um lote, ainda que numa situação improvável.

Se no Estado Novo eram comuns as cartas pedindo um lote de terras ao presidente da República, elas continuaram a chegar durante o segundo governo Vargas. Infelizmente, para nossas perspectivas, a maioria dessas cartas era agora remetida aos governos estaduais e não voltavam ao go- verno federal, ou pelo menos não temos o registro dessa correspondência. Mas, às vezes, o missivista pedia terras de uma empresa pública federal e aí podemos acompanhar o processo.

João Benevides de Azeredo22 escreve de Senhor do Bomfi m, na Bahia.

Informa que existia um faixa de terra devoluta da Ferrovia Leste Brasileiro, e pedia ao presidente para “dar uma ordem a quem de direito” para que ele pudesse ocupar esse quinhão. A Leste, consultada, informava que não poderia ceder, pois as terras ainda eram utilizadas para a ferrovia, já que ainda se usava o trem a vapor.

Em Benevides há dois aspectos importantes: em primeiro lugar, sua plena consciência do que fosse terra devoluta, terra abandonada, portanto, pronta para ser usada independentemente de ser propriedade. Além disso, Benevides informava que já se achava havia catorze anos na cidade. Ou seja, poderia ter-se acostumado mas, desempregado, via na possibilidade

22 A carta de João Benevides pode ser vista em Arquivo Nacional, Fundo Gabinete Civil da

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de voltar ao campo uma alternativa. Mesmo após o fi m do Estado Novo, não eram poucos aqueles que sonhavam com a volta ao meio agrário para refazer sua vida. Se durante o Estado Novo não era incomum homens pedirem passagens para Goiás ou Mato Grosso, no ritmo do discurso de Marcha para o Oeste, agora ainda se pensava o trabalho no meio agrário como alternativa à crescente urbanização.

Provavelmente assim pensava Cristino Antonio Soares23 que, escrevendo

de Cachoeiro do Itapemirim, pedia um auxílio em dinheiro para adquirir uma propriedade. Explicava que tinha dois fi lhos, que nem registrara por falta de recursos. Era-lhe recomendado procurar o Banco do Brasil, que respondera afi rmativamente no sentido de que buscasse uma agência mais próxima.

A mesma recomendação recebeu Emílio Ilarião Filho que, ao escrever de Pindobaçu (Bahia), pedia um empréstimo de cem mil cruzeiros para adquirir uma propriedade. O banco até lhe emprestava, mas devido à sua pobreza, uma quantia muito menor. Se durante o Estado Novo a idéia de acenar com um lote num núcleo colonial tinha, para a burocracia, a função de manter o contato iniciado pelo próprio trabalhador rural, durante o segundo governo essa função ideológica parece ter sido cumprida pela possibilidade de um improvável empréstimo do Banco do Brasil para fi nanciamento da pequena propriedade. Como lembra Sonia Regina de Mendonça (2001), embora os discursos de dirigentes do Banco do Brasil exaltassem o empréstimo aos peque- nos agricultores, não parece ter sido essa a regra durante o período analisado.

De qualquer forma, o importante é perceber que também quando dizia respeito à aquisição de terras, fosse durante o Estado Novo, fosse no período do segundo governo Vargas, o rurícola buscava atingir seu objetivo através do poder central. Podemos afi rmar que reagia à propaganda ofi cial, que valorizava o governante máximo como símbolo paternal, que tudo podia resolver. Vejamos agora pedidos de outra natureza: Não mais pedidos de terras propriamente, mas de meios ou elementos necessários à agricultura, ou ligados de outras formas ao meio rural.

DA ENXADA AO DINHEIRO: OUTROS PEDIDOS DE

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