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Nos estágios iniciais da extraordinária expansão da fronteira do café, os colonos foram se instalar no Oeste do estado de São Paulo, onde deram preferência a empregos no território recém- desmatado. Ali podiam ma- ximizar seus esforços e economias no plantio de lavouras de subsistência nos corredores abertos entre as fi las de café que cultivavam. Conseqüente- mente, os colonos descobriram que podiam cumprir suas obrigações com o café enquanto cultivavam a lavoura de subsistência que os sustentava. Uma vez que os colonos cuidavam da própria alimentação, os fazendeiros obtiveram assim um sistema de colonato confi ável, trabalho dependente que custava pouco para atrair, enquanto obtinham, depois de poucos anos, o produto de milhares de novos cafeeiros, cada um dos quais continuaria a produzir pelo menos por mais outros vinte anos. Por sua vez, o sistema de plantio intercalado fez do colono um camponês, criando outro pólo do campesinato brasileiro no século XX.

A herança maior de escravidão no campo paulista não foi a democracia racial de Gilberto Freyre, mas uma cultura de autoritarismo. Gerações

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de fazendeiros se consideraram uma espécie superior aos trabalhadores. Para eles, só a força resolveria os problemas de disciplina nas relações de trabalho nas fazendas. Recrutaram agregados para servir como capangas e para policiar suas propriedades. Estes homens – valentões que gosta- vam de violência, outros, trabalhadores rurais comuns coagidos a fazer o serviço – eram a polícia do fazendeiro, sempre presente. “Eu sozinho comando minha fazenda”, gabava-se em 1908 o fazendeiro de Campinas, Artur Leite. “As casas dos colonos são guardadas por capangas fi éis os quais não permitem tentativas de libertação; estão lá para persuadir os colonos que contra a força a razão não vale.” Por volta de 1910, o viajan- te francês Pierre Denis descreveu o mundo fechado que os fazendeiros comandavam.

A tarefa do fazendeiro é dupla. Ele emprega a sua atividade com o fi m de ob- ter a regularidade do trabalho, mas também para manter a ordem e a paz entre a população heterogênea que ele governa. Executa as funções de policial. A polícia pública, com efeito, não existe para assegurar o respeito pela lei civil, pela pessoa e pela propriedade.

As queixas dos imigrantes italianos, a maior nacionalidade representa- da entre os imigrantes, inevitavelmente vazaram para a Itália e afetaram o fl uxo migratório. Enquanto os italianos compunham 73% do total de imigrantes entre 1887 e 1900, seu percentual caiu de modo considerável após essa data, e sua cota total de imigração se reduziu a 43% para o pe- ríodo compreendido entre 1887 e 1930. Para tomar medidas em relação ao declínio, e talvez revertê-lo, as autoridades de São Paulo criaram em 1911 uma nova agência estatal para forçar o cumprimento dos termos contratuais tanto por colonos como por fazendeiros, o Patronato Agrícola. Para maximizar seu impacto no fl uxo de imigrantes, o primeiro artigo da lei a descrevia como uma medida em “defesa dos direitos e interesses dos operários agrícolas”.

Em seu momento de maior atividade, na década de 1920, os poucos fi s- cais do Patronato Agrícola podiam ser encontrados cavalgando pelo campo, resolvendo confl itos pela superação da desconfi ança e da animosidade entre fazendeiros e colonos, e persuadindo que cooperassem uns com os outros. Durante a década de 1920, segundo o historiador Francês Rocha, a agência construiu uma reputação de relativa autonomia diante dos proprietários de terras, mas nas disputas entre desiguais ela tinha poucas ferramentas para forçar a aquiescência dos fazendeiros. Nas disputas sobre acordos verbais, tão comuns no mundo de tradições rurais, em especial entre os camaradas e os fazendeiros, os fi scais não tinham autoridade. Entretanto, uma lei de 1913 obrigou as agências de imigração a distribuir a todos os colonos livri- nhos de contas (chamados “caderneta agrícola”), para ajudá-los a guardar

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um relatório de seus débitos e créditos nas fazendas onde trabalhavam, e isso passou a ser um instrumento de luta.

Muitas vezes, a caderneta foi uma referência importante para os colo- nos comprovarem suas reivindicações por pagamentos atrasados e outros direitos. Mesmo quando os esforços foram suplementados pelos poucos tribunais rurais introduzidos por volta de 1925, eles se revelaram inefi cazes em assegurar o cumprimento das obrigações decorrentes de acordos fora das especifi cações dos contratos de trabalho escritos dos colonos. Com a depressão de 1930 houve uma diminuição da imigração européia em massa para São Paulo; da mesma maneira, uma das principais justifi cativas para a existência do Patronato Agrícola desapareceu. Em 1934, a agência havia sido descontinuada, e suas responsabilidades em prover serviços legais para os trabalhadores rurais foram absorvidas pelo recém-formado Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio.

Armados com cadernetas e promessas de mobilidade social, os campo- neses imigrantes europeus continuaram a encontrar modos de resistir aos caprichos dos fazendeiros e às injustiças da vida na fazenda. Os colonos e seus fi lhos brasileiros aproveitaram a oportunidade apresentada pela época da colheita para negar seus serviços, forçando os fazendeiros a negociar. Essas práticas foram sufi cientemente disseminadas a ponto de merecerem um comentário de Augusto Ramos, fazendeiro contemporâneo e analista da indústria do café:

Não causa grande surpresa ver-se no dia mesmo de se iniciar a colheita em uma fazenda, que cada colono, em vez de seguir cedo para o serviço, deixa-se fi car em casa ... Para o fazendeiro essa é a hora crítica ... Cientes dessa situação, os colonos aproveitam para fazer suas imposições, justas ou injustas.

Como Ramos indica, de modo exagerado, o processo de trabalho nas plantações de café criou uma alavanca que auxiliou os colonos a confron- tarem o poder dos fazendeiros.

Os colonos protestavam contra os abusos sempre que podiam. Ao menos 70 famílias de colonos da fazenda Iracema, de propriedade do fazendeiro e coronel Francisco Schmidt, em Ribeirão Preto, na região da Alta Mogiana, superaram os obstáculos em maio de 1912, organizando uma greve bem- sucedida de oito dias no início da colheita. De acordo com um observador, conhecido apenas por seu revelador pseudônimo, “Um Socialista”, os co- lonos facilitavam a comunicação e resistiam à repressão formando grupos de quatro ou cinco famílias, sem nenhum líder de destaque. Os represen- tantes desses grupos ou células se uniram em um “Diretório Secreto” e se encontraram pela primeira vez na manhã de 4 de maio, “... resolvidos a empregar todos os expedientes consoantes à razão do livre-pensamento, resistindo até morrer no caso da justiça falhar”. Para proteger seus empregos

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e fortalecer os grevistas, os colonos trabalhavam clandestinamente para evitar que os trabalhadores das redondezas os substituíssem. Essa estratégia clandestina provou ser efi caz, e a greve terminou com uma vitória parcial quando Schmidt concordou em aumentar seus ganhos em 20%, de 500 para 600 réis por saca de 50 litros de grãos de café colhidos. Como comentou Ramos, a pressão da colheita certamente deu poder a esses colonos. Talvez também uma modesta elevação do preço do café que estava acontecendo na época tenha possibilitado a Schmidt repassar os custos adicionais aos compradores.

As condições estruturais e ideológicas convergiram mais uma vez em abril e maio de 1913. Os preços do café estavam em declínio internacional- mente e os fazendeiros respondiam cortando salários, enquanto mantinham os altos preços das mercadorias vendidas aos colonos nas fazendas. Estes sofreram ainda maior privação ao ter o acesso ao interplantio restringido. Enquanto o preço do café caía, os fazendeiros afi rmavam que o plantio entre as fi leiras de café danifi cava o crescimento e a produtividade das árvores, e proibiram a prática, forçando os colonos a produzirem em terras menos desejadas e mais distantes. Frustrados com essas condições, mais de 10 mil colonos escolheram o início da colheita para suspender o trabalho, espe- rando melhorar seu quinhão, como havia acontecido com os colonos de Iracema. Os grevistas da Alta Mogiana, italianos na maioria, mobilizaram-se contra muitas das maiores fazendas de Ribeirão Preto, incluindo a fazen- da Macaúbas, da companhia do coronel Schmidt. Dessa vez, entretanto, os fazendeiros resolveram não ceder. Depois de duas semanas, a greve terminou com a deportação de 137 trabalhadores italianos, tachados de “agitadores” na imprensa.

A historiadora regional Maria Angélica Momenso Garcia afi rma que essas greves marcaram um “momento novo” nos movimentos de traba- lhadores rurais por causa de sua importância e do reconhecimento que receberam. Infelizmente, estes movimentos não parecem ter levado a um novo despertar dos trabalhadores rurais ou a um nível organizado de resis- tência entre eles. Ao contrário, as greves dos colonos nos cafezais em 1912 e 1913 provaram ser eventos excepcionais, sem precedentes e com poucas imitações até os anos 1940. Uma equipe de pesquisadores liderados por José Cláudio Barriguelli, examinando dezenas de jornais esquerdistas, não encontrou registros de greves entre 1914 e 1946. Sabemos pelos registros mantidos pelo Patronato Agrícola que os colonos fi zeram greves durante esse período, mas a maior parte desses incidentes era pequena, isolada e rapidamente resolvida. Por exemplo, quase metade das 23 greves regis- tradas no ano de 1923 foi associada a colonos que protestavam contra o prolongamento da época da colheita – devido à chuva – porque estavam ansiosos para se mudar para outras fazendas. Assim, o “novo movimento” de 1913 foi breve, mas sufi cientemente impressionante.

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A POLÍTICA DA MOBILIDADE SOCIAL

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