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INTRODUÇÃO: HISTORIOGRAFIA, DIREITOS SOCIAIS E CAMPONESES

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e forma quase consensual, a historiografi a brasileira tem

considerado que o campesinato esteve afastado dos benefícios materiais e imateriais trazidos pelos direitos sociais integrantes da legislação produzida no primeiro governo Vargas (1930-1945). A esse respeito, realçando peque- nas exceções conquistadas pelos trabalhadores do campo, Alcir Lenharo afi rma ser possível notar:

uma descontinuidade entre a legislação social aplicada ao trabalhador urbano e ao trabalhador rural. Somente as legislações extensivas aos acidentes de trabalho e ao salário mínimo atingiram o trabalhador rural. Em outras palavras, a maior parte dos trabalhadores do país, 9 entre 12 milhões, aproximadamente, passaram a ser assistidos por uma legislação trabalhista simplesmente inconclusa. Assim é que o decreto-lei sobre a organização sindical não atingiu o trabalhador rural, que também não foi assistido pela lei básica sobre a duração do trabalho. (Lenharo, 1986) Da exclusão formal dos camponeses dos aspectos-chave da legislação trabalhista e sindical, identifi cada pela historiografi a, derivam outros des- dobramentos analíticos que merecem maior atenção. O primeiro deles diz respeito à afi rmação da “intocabilidade sagrada das relações sociais no campo” no pós-1930 e, em especial, durante o Estado Novo. Tal visão se embasa na noção de “Estado de Compromisso”, formulada inicialmente por Francisco Weffort. Boris Fausto em sua obra clássica, A revolução de

1930. Historiografi a e história, concebe o governo provisório que ascende após a Revolução de 1930 como representante de apenas uma “transação

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no interior das classes dominantes” (Fausto, 1998). Os inúmeros entraves burocráticos e legais à sindicalização rural reforçariam o distanciamento en- tre trabalhadores do campo e da cidade, ao mesmo tempo que, atribuídos a uma política do Estado, apontam para a intencionalidade da preservação das relações tradicionais no mundo rural. Novamente, segundo Alcir Lenharo:

O descompasso agravou-se defi nitivamente quando do aparecimento da CLT [1943]. A rigor, a única conquista conseguida foi a extensão dos direitos trabalhistas do operário urbano para os trabalhadores das usinas, assim mesmo somente para aqueles que estivessem empregados em funções técnicas especializadas nas seções in- dustriais das usinas, fi cando fora, portanto, os trabalhadores agrícolas. (Lenharo, 1986) Um segundo desdobramento analítico vinculado à relação entre legis- lação trabalhista e campesinato é o uso do referencial do populismo como modelo explicativo para se pensar o período inaugurado com a Revolução de 1930 e que se estende até o golpe civil-militar de 1964. Boris Fausto e Fernando Devoto (2004) são autores que recentemente defenderam a utili- zação desse conceito para pensar de modo comparativo Brasil e Argentina, respectivamente, sob Vargas e Perón. Mesmo reconhecendo que o conceito “tem servido para designar relações sociais e formas políticas tão diversas que seu uso se torna muitas vezes problemático”, no artigo “Duas faces do populismo” Fausto compara “a relação dos dois populismos com a gente do campo”, afi rmando categoricamente que:

Embora sua base social estivesse essencialmente nas cidades, Perón lançou uma ponte em direção aos trabalhadores rurais, aos quais estendeu vários direitos. Vargas, pelo contrário, os ignorou praticamente, e isso num país caracterizado pelas mise- ráveis condições de vida das massas do campo e em que a reforma agrária sempre foi um tema sensível e concorrente. (Fausto, 2004b, p.14)

Essa curta passagem sustenta uma tese corrente nos manuais de História: o afastamento dos camponeses do recebimento das “benesses populistas”, o qual se justifi caria pela “opção do Estado” na manutenção “das bases sociais e econômicas da dominação” das oligarquias rurais (Motta, 1984, p.277-8). Isso teria ocorrido em troca de “uma espécie de compromisso tácito entre elas [oligarquias rurais], o governo e a burguesia industrial” (ibidem). É exatamente essa a argumentação de Fausto: “a aliança abrangeu o Estado, a burguesia nacional e a classe trabalhadora, tendo como pólo articulador o primeiro” e o comportamento em relação aos trabalhadores do campo é explicado pelo “desejo de manter boas relações com os grandes proprietários e o fato de não existirem, em sua época [a de Vargas], mobi- lizações signifi cativas no campo” (Fausto, 2004b, p.14). O que se percebe aqui, mais uma vez, é a idéia da manutenção das relações tradicionais do campo como condição para implementar os direitos sociais na cidade e o

Formas de resistência camponesa: visibilidade e diversidade de confl itos ao longo da história

projeto intervencionista promotor da industrialização, com um governo Vargas que “praticamente ignora” os camponeses.

Um último desdobramento recorrente na historiografi a que se funda- menta no alijamento dos camponeses dos ganhos do “arranjo populista”, é a análise da intensa mobilização observada em meados do século XX, nas décadas de 1950 e 1960, facilmente compreendia pelo consagrado referencial. Conforme as palavras do já citado Boris Fausto, em manual de história do Brasil:

Ao iniciar-se o governo Jango, era claro o avanço dos movimentos sociais e o surgimento de novos atores. Os setores esquecidos do campo – verdadeiros órfãos da política populista – começam a se mobilizar. O pano de fundo dessas mobiliza- ções encontra-se nas grandes mudanças estruturais ocorridas no Brasil entre 1950 e 1964, caracterizadas pelo crescimento urbano e uma rápida industrialização. (Fausto, 2001, p.244)

A historiografi a que toma esse fosso separador dos direitos dos tra- balhadores urbanos daqueles alcançados pelos rurais como um dado da realidade, pronto e acabado, sobre o qual não se aplica nenhum tipo de relativização, utiliza-o como um elemento ratifi cador de esquemas expli- cativos tradicionais – como a noção de populismo – sobre o Estado Novo e o período da Experiência Democrática (1945-1964). Em comum entre os dois períodos históricos estaria a manutenção da dominação tradicional no campo, que se apresenta como uma condição necessária à industrialização e ao projeto de modernização conduzida pelo Estado, como evidenciado pela legislação social no meio urbano. Essa historiografi a assume tal afasta- mento como uma base segura mediante a qual se explicam as ações políticas dos camponeses, tanto de mobilização e lutas quanto de sua ausência em momentos que seriam de passividade. Daí por que as lutas camponesas teriam signifi cado, prioritariamente, uma tomada de posição coletiva para minorar esse distanciamento e alcançar os direitos trabalhistas urbanos.

O que se pretende demonstrar neste trabalho é que o aumento das mo- bilizações no campo nas décadas de 1950 e 1960 não pode ser atribuído somente ao “pano de fundo” das “grandes transformações estruturais”, alçadas à categoria de chave explicativa para os variados movimentos ru- rais observados, como se fossem conseqüências inescapáveis e até mesmo inevitáveis das estruturas. As transformações de ordem socioeconômica não dão conta, isoladamente, das formas de luta e de resistência empreendidas pelos setores camponeses. Tampouco a exclusão dos benefícios explica o porquê dos atores no campo terem-se colocado em movimento. No limi- te, existe a opção (muito comum – não só para os camponeses, mas para qualquer outro grupo social), de não lutar ou não resistir.

De qualquer ponto de vista, os anos da chamada Era Vargas foram de inúmeros impactos políticos, econômicos, jurídicos e culturais no mundo

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rural brasileiro. Esses impactos já começaram a ser mapeados por uma produção historiográfi ca mais recente, que até mesmo interpreta de novas formas o que antes eram consideradas evidências empíricas incontestes.

Sem pretender negar de forma defi nitiva as contribuições historiográfi cas tradicionais, este trabalho, ancorado na produção recente, procura relativi- zar os limites de tais enviezamentos, ao confrontá-los a três conjuntos de evidências: os depoimentos orais de camponeses que viveram esse período; a produção legislativa e os processos judiciais embasados na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) que, em tese, alcançaria apenas os trabalhadores urbanos; e as cartas e os processos administrativos gerados pela correspon- dência de trabalhadores rurais remetida à Presidência da República durante o Estado Novo.

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