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[Brave New World]

Aldous Huxley

(1894-1963)

Quando em 1931, Aldous Huxley se encontrava a escrever aquele que viria a ser um dos seus livros mais influentes — Brave New World [Admirável Mundo Novo] —, o mundo atravessava uma grave crise económica, no rescaldo do crash da bolsa de 1929 e da Depressão que se seguiu. Projetando no futuro preocupações do seu tempo, e refletindo sobre o caos então vivido, Huxley cria um mundo ficcional distópico em que o excesso de ordem constitui, por oposição, um novo problema. Como explica o premiado escritor britânico num texto mais tardio, Brave New World Revisited [Admirável

Mundo Novo Revisitado] (1958), vivia-se na altura “um pesadelo de muita pouca ordem” com o libera- lismo; por isso, e por oposição, o pesadelo de Admirável Mundo Novo era o de uma sociedade dema- siado ordenada, na qual “a eficiência perfeita não deixava lugar para a liberdade ou para a iniciativa pessoal”. A solução, acreditava Huxley, estaria algures entre os dois extremos. Talvez por isso o autor tenha voltado a alguns destes temas em Island [A Ilha], um livro publicado em 1962, abordan- do-os, desta feita, a partir de uma perspetiva mais utópica, como que projetando uma alternativa ao universo distópico e autoritário imaginado em Admirável Mundo Novo.

De entre a variada e extensa obra de Huxley, Admirável Mundo Novo será talvez um dos seus livros mais proféticos. A ação tem lugar num futuro indefinido, no ano 632 d.F. (depois de Ford), seguindo os preceitos de Henry Ford, o engenheiro norte-americano que revolucionou a in- dústria automóvel com a criação das linhas de montagem móveis e de técnicas de produção em massa. Na esteira de Macaulay e de Zamiatine, o Estado Mundial [“World State”] inventado pelo autor britânico é uma sociedade totalitária e eficiente, organizada de acordo com um sistema científico de castas baseado na inteligência artificialmente desenvolvida. Classificando os seres humanos desde o “alfa-mais-mais” ao “épsilon-menos”, nela prevalece, mais uma vez, o princí- pio da eugenia. Os habitantes do Estado Mundial são concebidos artificialmente no Centro de Incubação e Condicionamento de Londres-Central, uma fábrica especializada nas técnicas de clonagem in vitro a que Huxley chamou processo Bokanovsky, explicando que um ovo bokano- vkskizado permitiria desenvolver 96 seres humanos idênticos em vez de um humano de cada vez. Trata-se de “aplicar o princípio da produção em série à biologia” humana, como se pode ler no livro. Manipulados geneticamente e educados através de técnicas de engenharia social, estes gêmeos idênticos são programados como alfas, betas, gamas, deltas ou épsilões para a vida

E Se...? Narrativas Especulativas Sobre Alimentação e Sociedade – Uma Antologia Série Alimentopia

Capítulo 14

O Hospital para Moribundos de Park Lane era uma torre de sessenta andares de blocos cerâmi- cos em tons de primavera. Quando o Selvagem descia do seu taxicóptero, um comboio de carros fúnebres aéreos, de cores alegres, levantou voo, zumbindo, do terraço e deslizou sobre o parque, para oeste, rumo ao Crematório de Slough. À porta do elevador, o chefe dos porteiros deu-lhe as informações necessárias, e ele desceu à sala 81 (uma sala para senilidade galopante explicou o porteiro), no décimo sétimo andar.

Era um vasto aposento, que a luz do sol e a pintura amarela, tornavam claro, contendo vinte leitos, todos ocupados. Linda morria acompanhada — acompanhada e com todo o conforto mo- derno. O ar era constantemente vivificado por alegres melodias sintéticas. Junto de cada leito, diante do ocupante moribundo, havia uma caixa de televisão. Deixava-se funcionar a televisão, como se fosse uma torneira aberta, de manhã à noite. De quarto em quarto de hora, o perfume dominante na sala era automaticamente mudado.

— Tentamos — explicou a enfermeira que recebera o Selvagem à porta —, tentamos criar aqui uma atmosfera completamente agradável, qualquer coisa entre um hotel de primeira classe e um palácio de cinema sensorial, se compreende o que quero dizer.

— Onde está ela? — perguntou o Selvagem, sem dar a menor atenção às explicações de cortesia. A enfermeira sentiu-se chocada.

— Como você está apressado!

— Há alguma esperança? — perguntou ele.

— Você quer dizer: de ela não morrer? — Ele fez que sim com a cabeça. — Não, não há dúvida de que não resta nenhuma esperança. Quando mandam alguém para aqui, já não há… — Impres- sionadíssima com a expressão angustiada do rosto pálido de John, calou-se de repente. “Que terá ele?”, perguntou a si própria. Não estava habituada a manifestações deste género nos visitantes (e, além disso, nunca havia muitos visitantes; nem nenhuma razão para que houvesse muitos). — O senhor não se sente doente, pois não?

Ele abanou a cabeça.

— É a minha mãe — disse numa voz que mal se percebia.

A enfermeira lançou-lhe um olhar cheio de horror e, em seguida, virou-se bruscamente. Do pescoço à raiz dos cabelos, o seu rosto não era mais que um rubor ardente.

— Leve-me até ela — pediu o Selvagem, esforçando-se por falar num tom natural.

[...] Linda contemplava o espetáculo, sorrindo vagamente e sem compreender. No seu rosto pálido e inchado havia uma expressão de felicidade imbecil. A cada instante as suas pálpebras fe- chavam-se e durante alguns segundos ela parecia dormitar. Depois, com um pequeno sobressalto, acordava, acordava para os jogos de aquário dos campeonatos de ténis, para a audição supervoz wurlitzeriana de “Esfrega-te a mim queridinho”, para a rajada tépida soprada pela ventilação aci- ma da sua cabeça, despertava para todas estas coisas, ou antes, para um sonho onde estas coisas, transformadas e embelezadas pelo soma que tinha no sangue, eram os elementos maravilhosos, e sorria novamente, com um sorriso desfeito, descorado, de contentamento infantil.

coletiva, de acordo com as tarefas que virão a desempenhar. Assim, o livre arbítrio é abolido através do condicionamento dos comportamentos, como explicará Huxley ainda em Brave New

World Revisited, e a servidão é tornada aceitável através de doses regulares de felicidade induzida quimicamente, já que nesta sociedade hedonista, a ingestão de soma mantém a população num estado alterado de euforia e, portanto, perfeitamente controlada em termos políticos e sociais. A comida existe em abundância e é produzida sinteticamente, como acontece com a “pseudofarinha de amido sintético e detritos de algodão”, ou os “biscoitos panglandulares e de pseudoboi vitami- nado”. As castas superiores têm acesso a produtos de melhor qualidade, como paté de vitamina D ou sanduíches de carotina, e bebem café com soma. Em geral, as vitaminas, juntamente com o

soma e a cafeína, são usadas como drogas de socialização e contenção social.

A Reserva é o único espaço em que a vida decorre ainda de forma natural. Com uma alimen- tação à base de milho, os habitantes da Reserva nascem por gestação natural (em vez de serem criados geneticamente) e são educados por famílias. Palavras como “pai” e “mãe” ou as emoções a elas ligadas são vistas como indesejáveis para a sociedade esterilizada do Estado Mundial, já que poderão levar à instabilidade social. São, por isso, considerados “pouco civilizados” e apelidados de “índios” ou “selvagens” todos os que provêm da Reserva. Admirável Mundo Novo é, assim, a história do encontro e do confronto entre estes dois mundos: o da Reserva, no vale de Malpaís [“Malpais”], no Novo México, e o do Outro Lado, na cidade de Londres, no centro da civilização.

No excerto selecionado, encontramos dois habitantes da Reserva, John Selvagem [“John Sava- ge”] e a sua mãe, Linda, no Hospital para Moribundos de Park Lane, em Londres. John chega para visitar Linda, que, em fase terminal, permanece num estado letárgico provocado pela ingestão contínua de soma. Ao mesmo tempo, um grupo de gêmeos Bokanovsky de oito anos está a ser condicionado para a morte no mesmo edifício, aprendendo a brincar por entre os moribundos, com desapego. O facto de John mostrar dor e angústia junto do leito da mãe assusta as crian- ças, interferindo com o seu treino neopavloviano de condicionamento. Assim, quando John se desespera com a morte da mãe, a enfermeira toma medidas drásticas: oferece uma recompensa alimentar às crianças para que estas aprendam a assistir a uma morte humana sem emoção.

Linda parecia ser, por contraste, um monstro de senilidade flácida e desengonçada.

— Não é verdade que ela é horrível? — Tais foram os comentários sussurrados. — Olhem para os dentes dela!

De repente, de sob a cama, um gémeo de rosto achatado apareceu entre a cadeira de John e a parede, e pôs-se a contemplar o rosto adormecido de Linda.

— Na minha opinião… — começou ele; mas a frase terminou prematuramente num guincho. O Selvagem tinha-o agarrado pela gola do casaco, e com uma bofetada sonora, afugentara-o aos urros.

Os gritos chamaram a atenção da enfermeira-chefe, que se precipitou em seu socorro. — Que foi que você lhe fez? — perguntou enfurecida. — Não admito que bata nas crianças. — Muito bem! Mas então afaste-as desta cama. — A voz do Selvagem tremia de indignação. — E além disso, que fazem eles aqui, estes fedelhos repugnantes? É vergonhoso!

— Vergonhoso? Mas o que quer você dizer? Condicionamo-los para a morte. E deixe-me di- zer-lhe — continuou num tom de advertência feroz — que se o apanho outra vez a perturbar o seu condicionamento, chamo os carregadores e mando que o ponham na rua.

O Selvagem pôs-se de pé e deu dois passos para ela. Os seus movimentos e a expressão do seu rosto eram tão ameaçadores que a enfermeira recuou, aterrorizada. Com um esforço violento, ele conteve-se e, sem uma palavra, virou-se e sentou-se ao lado da cama.

Tranquilizada, mas com uma dignidade que era bastante vazia e incerta, a enfermeira insisti: — Já o avisei. Agora já sabe.

Apesar de tudo afastou os gémeos demasiado curiosos, e obrigou-os a entrar na partida de caça-ao-fecho que uma das suas colegas organizara na outra extremidade da sala.

— Pode ir agora tomar a sua chávena de solução de cafeína, minha cara — disse para outra enfermeira. O exercício de autoridade restabeleceu-lhe a confiança em si própria e fez-lhe bem. — Vamos meninos — chamou.

[...] O Selvagem estava de pé, debruçado sobre ela. — O que é, Linda? O que é?

A sua voz implorava; dir-se-ia que lhe suplicava que o sossegasse.

O olhar que ele lhe dirigiu estava carregado de um terror indizível, de terror e, pareceu-lhe, de censura. Ela tentou erguer-se na cama, mas tombou sobre os travesseiros. Tinha o rosto horro- rosamente contorcido, os lábios azuis.

O Selvagem virou-se e correu para a outra extremidade da sala. — Depressa! — gritou. — Depressa!

De pé no meio de uma dança de roda de gémeos brincando à caça-ao-fecho, a enfermeira-chefe voltou-se. O primeiro instante de surpresa deu, quase instantaneamente, lugar a desaprovação.

— Não grite! Pense nas crianças — disse ela, franzindo o sobrolho. — Você arrisca-se a descon- dicioná-los… Mas que está a fazer? — Ele rompera a roda. — Tenha cuidado!

Uma das crianças berrava.

— Depressa, depressa! — Agarrou a enfermeira pela manga e arrastou-a atrás dele. — Depres- sa! Aconteceu qualquer coisa! Matei-a!

— Bem, vou ter de o deixar — disse a enfermeira. — Tenho uma fornada de crianças a chegar. E há também o n.º 3. — Estendeu o dedo para o outro lado da sala. — Ela pode ir-se a qualquer momento agora. Mas instale-se à sua vontade. — E afastou-se a passos largos.

O Selvagem sentou-se ao lado do leito. — Linda — murmurou, tomando-lhe a mão.

Ouvindo o seu nome, ela voltou-se. Os seus olhos vagos tiveram um lampejo de consciência. Ela apertou-lhe a mão, sorriu-lhe, moveu os lábios; mas logo e subitamente a cabeça tombou para trás. Tinha adormecido. Ele ficou ali a contemplá-la, procurando, entre a carne fatigada, procurando e reencontrando aquele rosto jovem e vivaz que se inclinara sobre a sua infância em Malpaís; a evocar (e fechou os olhos) a sua voz, os seus gestos, todos os acontecimentos da vida que partilharam. “No meu estreptococo alado, Voai para Bandbury T…” Como eram belas as suas canções! E estes versos infantis, como eram magicamente estranhos e misteriosos!

A, B, C, vitamina D:

O óleo está no fígado, o bacalhau nadou.

Sentiu as lágrimas que o queimavam romperem através das pálpebras, enquanto se lembrava das palavras e da voz de Linda repetindo-as. E depois as lições de leitura: o gato está no tapete, o bebé está no pote; e as Instruções Práticas para os Trabalhadores Beta-Menos do Depósito de Embriões. E os longos serões ao canto da lareira, ou, no Verão, no terraço da casinha, enquanto ela lhe contava aquelas histórias de Outro Lugar, algures fora da Reserva: o Outro Lugar maravi- lhoso, maravilhoso, de que se lembrava ainda como de um paraíso de bondade e de beleza, total e intacto, não poluído pelo contacto com a realidade desta Londres real, destes homens e destas mulheres efetivamente civilizados.

Um ruído súbito de vozes agudas forçou-o a abrir os olhos e, depois de ter apressadamente en- xugado as lágrimas, a voltar-se. O que parecia ser um fluxo contínuo de gémeos machos idênticos de oito anos engolfava-se no aposento. Gémeo após gémeo, gémeo após gémeo, entravam, autên- tico pesadelo. O rosto, este rosto que se repetia, porque só havia um rosto para todos, arregalava- -se, nariz chato, só narinas e olhos pálidos e redondos como vidros de óculos. O uniforme era de caqui. Tinham todos a boca aberta e o lábio caído. Entraram chilreando e palrando. Ao cabo de um momento, parecia que a sala fervia. Amontoavam-se em cachos entre os leitos, subiam para cima deles, rastejavam por baixo, olhavam para as caixas de televisão, faziam caretas aos doentes. Ao verem Linda, surpreenderam-se e mostraram certa inquietação. Um grupo ficou junto do leito, encarando-a com uma curiosidade medrosa e estúpida dos animais que defrontam inesperadamente o desconhecido.

— Oh, olhem, olhem! — Falavam em voz baixa e espantada. — Mas que é que ela tem? Porque será ela assim tão gorda?

Nunca tinham visto um rosto parecido com o de Linda; nunca tinham visto um rosto que não fosse jovem, que não tivesse pele lisa, nem corpo que não fosse fino e aprumado. Todas aquelas sexagenárias moribundas tinham o ar de raparigas acriançadas. Com quarenta e quatro anos,

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Mil Novecentos e

Oitenta e Quatro (1949)

[Nineteen Eight-Four] George Orwell (1903-1950)

Poucos livros tiveram tanto impacto na cultura popular como Nineteen Eighty-Four [Mil Novecen-

tos e Oitenta Quatro], do escritor britânico George Orwell (pseudónimo de Eric Blair). Publicado em 1949, no rescaldo da Segunda Guerra Mundial, o livro está hoje traduzido para mais de ses- senta línguas e foi já adaptado ao cinema e à televisão. Mais relevante, porém, é o facto de muitas das expressões criadas pelo seu autor serem ainda hoje usadas para descrever um mundo sem liberdade, sujeito à vigilância constante de um poder totalitário: “Big Brotheriswatchingyou”

[o grande irmão estáa Ver-te”] é o seu mais conhecido slogan, mas poder-se-ia ainda referir a

Polícia do Pensamento [“Thought Police”], que vigia constantemente a nossa mente, classificando de pensarcrime [“thoughtcrime”] qualquer pensamento que transgrida a visão de mundo imposta oficialmente; a novilíngua [“Newspeak”], a língua de propaganda do Estado, que, reduzindo o vocabulário e, por conseguinte, a liberdade de expressão, torna-se instrumental para a produção de mentira; ou ainda o duplopensar [“double speak”] usado para controlar a realidade, ao ignorar sistematicamente as contradições inerentes ao discurso, como aquelas presentes nas três pala- vras de ordem inscritas na fachada do Ministério da Verdade deste estado totalitário criado por Orwell: guerraé Paz, LiBerdadeé escraVidão, ignorânciaé Força.

Admirador confesso de Zamiatine, pupilo de Huxley e jornalista como Macaulay, Orwell constrói um mundo distópico e opressivo, refletindo sobre as consequências do uso abusivo do poder, tal como de certa forma o fizera antes na fábula política Animal Farm [O Triunfo dos Porcos], de 1945. Em Animal Farm, os animais revoltam-se contra os humanos e assumem o comando da quinta onde vivem, mas depressa se deixam cair no mesmo sistema opressivo, a partir do mo- mento em que os porcos tomam conta do poder. Napolean, o líder tirano dos porcos, domina a quinta através do controlo do aprovisionamento e da distribuição dos alimentos: confisca o leite e as maçãs (agora ingeridos apenas pelos porcos), exige a entrega de uma altíssima percentagem dos alimentos produzidos na quinta para trocas comerciais, e raciona sucessivamente a comida dos outros animais, que sobrevivem com muitas dificuldades. Enquanto isso, os porcos fazem as suas refeições na sala-de-jantar dos humanos, usando a sua baixela de porcelana, e alimen- tando-se sem restrições. Também em Mil Novecentos e Oitenta e Quatro a comida é usada como ferramenta de controlo social, sinalizando as desigualdades políticas, sociais e económicas entre Quando chegaram à extremidade da sala, Linda estava morta.

O Selvagem ficou um momento de pé, imobilizado no silêncio, depois caiu de joelhos ao lado da cama e, cobrindo o rosto com as mãos, soluçou desvairadamente.

A enfermeira estava sem saber o que fazer, olhando ora a figura ajoelhada junto da cama (que escandalosa exibição!), ora (pobres crianças!) os gémeos que tinham interrompido a sua partida de caça-ao-fecho e olhavam, estarrecidos, para a outra extremidade da sala, os olhos e as narinas arregalados, a cena escandalosa que se desenrolava junto do leito n.º 20. Deveria falar-lhe? Tentar trazê-lo de volta a um estado de decência? Que prejuízo fatal podia causar àqueles pobres inocen- tes! Destruir assim todo o seu bom condicionamento para a morte com esta repugnante explosão de gritos, como se a morte fosse qualquer coisa de terrível, como se alguma pessoa fosse assim tão importante! Isto podia dar-lhes as ideias mais desastrosas acerca do assunto, perturbá-los e fazê-los reagir de uma maneira totalmente errada, totalmente antissocial.

Ela dirigiu-se a ele e tocou-lhe no ombro.

— Você não será capaz de se conduzir convenientemente? — disse em voz baixa, zangada. Mas, virando a cabeça, viu que uma meia dúzia de gémeos estava de pé e atravessava a sala. A roda desagregava-se. Mais um instante e… Não, o risco era demasiado grande; o grupo inteiro arriscava-se a fica retardado seis ou sete meses no seu condicionamento. Avançou a correr para aqueles cuja guarda lhe fora confiada e que estavam ameaçados.

— Vamos, quem quer um éclair de chocolate? — perguntou com voz forte e alegre. — Eu — berrou em coro todo o Grupo Bokanovsky.

A cama n.º 20 ficara completamente esquecida.

“Oh, Deus, Deus, Deus!...”, continuava a repetir para si próprio o Selvagem. Entre o caos de dor e de remorso que lhe enchia o espírito, era a única palavra que articulava. “Deus!”, murmurou mais alto. “Deus…”

— O que é que ele está a dizer? — perguntou uma voz muito próxima, nítida e penetrante; através do chilrear do Super-Wurlitzer.

O Selvagem sobressaltou-se violentamente e, destapando a cara, olhou em volta. Cinco gé- meos vestidos de caqui, cada um com o coto de um grande éclair na mão direita, o rosto idêntico diversamente lambuzado de chocolate líquido, mantinham-se em linha, arregalando para ele os olhos redondos e vidrados.

Eles cruzaram os olhares e começaram a rir simultaneamente. Um deles apontou com o bolo. — Ela está morta? — perguntou.

O Selvagem encarou-os por um momento em silêncio. Depois, ainda em silêncio, levantou-se, e em silêncio dirigiu-se lentamente para a porta.

— Ela está morta? — repetiu o gémeo curioso que caminhava ao seu lado.

O Selvagem baixou o olhar sobre ele e, sempre sem dizer uma palavra, repeliu-o. O gémeo tombou por terra e começou imediatamente a berrar. O Selvagem nem sequer se virou.