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Nascimentos

A maior realização da mulher é ter filhos, coisa em que tomam precedência sobre todos os atletas da terra; a não ser que, porventura, parecesse de maior importância matar um ser humano do que dar à luz um filho. É certamente pouco menos do que um milagre uma mulher sofrer tantas dores e uma criança sobreviver a tão grandes perigos. Quando uma criança nasce, os amigos oferecem em celebração a esperança do reino dos céus e compadecem-se com as tristezas que vão ocorrer até lá. Mas há um facto que ultrapassa todos os outros em importância, o facto de re- nascermos para a vida pelo nascimento de Cristo, nós que estamos condenados a morrer. Lá não fazem banquetes de aniversário porque, como já mencionei, eles podem dispensar o vinho nas suas cerimónias sagradas e solenes, coisa que outros não desejam fazer. As parteiras são tidas em alta consideração, mas só as mais competentes. Quanto mais religiosa é a mulher mais se adequa a este ofício. Desde que, obviamente, não lhe faltem os conhecimentos científicos. A menos que o caso assim o exija, eles não toleram amas, porque querem que as crianças bebam o leite das mães. Aquelas que têm a cargo o parto e os bebés são, na grande maioria, viúvas, cujo principal traba- lho é precisamente este. Também há mulheres jovens que tomam conta de crianças. O batismo é ministrado na presença da congregação, a menos que o bebé esteja gravemente doente. Se for privado do rito, sabem que a semente dos fiéis foi lavada pelo sangue de Cristo, e por isso esperam o melhor. O período de abstinência é de quarenta e dois dias, e quando estes expiram são pres- tadas graças solenes a Deus. Durante esses dias, são trazidos do comissariado público alimentos mais leves, como convém. As competências clínicas, desde logo das mulheres, não deixam de ter resultados. Entretanto, se os maridos desejarem viver separados, podem fazê-lo; mas caso con- trário, ninguém os põe fora de casa.

[Abstinência]

Este povo tem o maior desejo de castidade conjugal e até instituem prémios para tal, pois não querem magoar-se ou enfraquecer com relações muito frequentes. Gerar filhos é uma coisa acer- tada; mas paixão ou luxúria é uma desgraça. Alguns vivem juntos como animais; mas mesmo o gado tem caraterísticas que envergonham essas pessoas a quem mais valia com amor mútuo e ajuda mútua preocuparem-se primeiro com o céu e só depois com as coisas terrenas. Por isso os cidadãos de Cristianópolis acreditam que pode haver até certo ponto fornicação e poluição, mesmo no casamento. Oh, aqueles cuja mente só pensa na carne e não têm vergonha de pecar com práticas, legais e ilegais! Mas que podemos nós fazer se, por todo o lado, existem lugares para festas e provocações, quando até as palavras abstinência, temperança, vigilância e trabalho são vistas com desconfiança ou são desconhecidos? E assim acontece que, quando sonhamos que todas as coisas nos são permitidas, não sentimos qualquer alegria naquilo que é realmente bom e saudável, puro e imaculado. […]

Capítulo XCI

[Viuvez]

Como nenhum laço sobrevive à morte, mesmo os casamentos mais firmes são dissolvidos. Se o marido morrer, a viúva deixa a casa e retira-se para o lar das viúvas, onde serve o estado conforme puder, casando novamente, se o desejar, mas não antes de ter expirado um ano, por respeito pelo seu primeiro amor. Se a mulher morre primeiro, o viúvo passa a comer com um vizinho ou de companhia com outros na casa pública, e, passado um ano pode voltar a casar. Não existe qualquer perigo para os órfãos, já que todas as crianças são educadas com idênticos cuidados no colégio. […]

Capítulo XCIV

Jardins

À volta do colégio, há uma dupla fila de jardins: uma geral e a outra dividida em canteiros cor- respondentes às casas dos cidadãos; ambos os terrenos estão plantados com mais de mil tipos de vegetais, de tal forma que representam um herbário vivo. Não permitem que se confunda a ordem ou a distribuição das plantas que, graças à habilidade do jardineiro, estão dispostas de modo a con- formar-se às várias formas do céu, numa maravilhosa e inteligente combinação de cores, como se se tratasse de uma tela pintada. Aqui têm também um certo número de pássaros em gaiolas, e abelhas nas suas colmeias, sempre muito atentamente cuidados. As plantas que são para fins medicinais, culinários ou decorativos estão todas em canteiros separados. Elas têm vários usos e proporcionam diferentes prazeres – fragrância, purificação do ar, mel, medicamentos, harmonio- sos cantos de pássaros e informação. Há muita água que é transportada em canos artisticamente

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dispostos, e a música também se conjuga harmoniosamente com a água. Mas os habitantes sempre evitam despesas demasiado grandes. Fora de muros, têm os seus campos mais extensos que culti- vam para alimentação, pois os que antes referi são plantados sobretudo pela sua elegância. Além disso, aprendem com eles a julgar o valor da beleza humana, que é a colheita das flores de um úni- co ano. Nós nascemos, crescemos, atingimos a nossa plenitude, vamo-nos curvando e definha- mos. Das nossas mortes decorre novamente o ressurgir e o desenvolvimento de outras vidas. […]

Capítulo XCVII

Estrangeiros e pobres

Para com estrangeiros e forasteiros, os habitantes mostram a maior gentileza e generosidade, que eu próprio, que então passei pelos piores momentos, por mim testemunhei. No entanto, têm o maior cuidado para evitar que os cidadãos não contraiam doenças contagiosas como resultado de uma excessiva liberdade por parte dos hóspedes. Nunca os habitantes ouviram falar de maus comportamentos em tabernas, tão vulgares em outras paragens, e que aqui são desconhecidos; e se os conhecessem, haviam de os censurar veementemente. Acham natural manter um hóspede frugalmente durante um ou dois dias; um exilado é acolhido por mais tempo; e uma pessoa doen- te é sempre tratada com extrema bondade. Ajudam os pobres com quanto lhes baste, e não os dei- xam partir sem auxílio material. Todavia, fazem a todos exames rigorosos no que toca a palavras e comportamento, e só depois desse exame lhes fazem caridade. Os pedintes, porém, não são ali conhecidos nem tolerados; porque pensam que se alguém tem realmente problemas, a república não deve nem precisa de ser alertada para os seus deveres; nada disso deve acontecer, o que está certo. Se uma pessoa estiver fisicamente apta, nunca deve negar à república o seu esforço, e isso sucedendo é quanto basta para compensar a comunidade pelos alimentos que recebe. […]

Tradução de Luísa Feijó. Revisão da tradução de Maria Luísa Malato.

Nova Atlântida

(1627)

[New Atlantis]

Francis Bacon

(1561-1626)

A utopia de Francis Bacon, Nova Atlântida (New Atlantis), foi publicada postumamente em 1627, um ano após a morte do autor (1561-1626). Representa a projeção do projeto científico de Bacon numa ficção, não deixando, contudo, de revelar algum desalento com a realidade científica do seu tempo. A obra foi escrita na parte final da vida de Bacon − quando o filósofo parecia já ter compreendido que o seu sonho – a fundação de uma Academia e a criação de um laboratório experimental – nunca veria a luz por falta de apoios institucionais.

A utopia de Bacon oferece ao leitor a descrição de uma nova civilização, erigida depois de a antiga cidade da Atlântida ter sido submersa pelo Dilúvio. A catástrofe, afinal, não teria sido tão avassalado- ra como em outras partes do planeta, pois as terras da ilha eram bastante elevadas e os homens que ali viviam terão podido salvar-se e fundar uma cidade reestruturada – a Nova Atlântida. Na ilha, os mais sábios construíram a Casa de Salomão, um espaço laboratorial regido por um novo paradigma de investigação científica, baseado na observação sistemática da realidade e na experiência como método. O objetivo desses sábios era o conhecimento das causas e dos movimentos secretos das coi- sas, bem como a realização de tudo o que esse conhecimento tornava possível. Pressupunha-se tam- bém a total bondade do conhecimento científico, inclusivamente no que à alimentação dizia respeito. Quando os viajantes europeus chegam à Nova Atlântida, logo são convidados para uma refei- ção, depois por eles classificada como a melhor de todas até então provadas. Os hóspedes podem escolher entre três bebidas diferentes, mas igualmente deliciosas: um vinho de excelentes pro- priedades, uma cerveja, mais clara do que as europeias, e uma refrescante sidra, feita a partir de um fruto que só cresce naquela ilha. Estas bebidas são apreciadas pelo prazer que proporcionam. Apesar disso, na Nova Atlântida, de uma maneira geral, predomina uma visão mais utilitária da alimentação. Os sábios da Nova Atlântida retiram dos diversificados pomares grande parte dos elementos que curam os atlantes − por exemplo, uma laranja escarlate elimina o enjoo marítimo; uma pílula vegetal, quando tomada todas as noites, impede inúmeras doenças. Não só as plantas, mas também os animais são transformados e criados para benefício dos atlantes. A flora e a fauna obedecem aos desejos dos sábios da ilha e a utilidade medicinal das mais variadas transformações é minuciosamente indicada pelo narrador.

atlantes exibem é de ordem científica e justificável por um raciocínio unicamente racional. A dimensão moral ou humanista desta utopia parece, pois, secundária. Porém, não deve o leitor iludir-se com esta ciência inócua. Ao aperfeiçoarem a medicina, as criaturas de Deus exaltam também as características humanas que lhes foram dadas pelo Criador. Ao controlar a Natureza para dela receberem mais, os atlantes não só suavizam a dureza da sua existência física, como se permitem a perceção da felicidade para eles projetada.

Hélder Mendes Baião

[Inundação e alimentação]

[…] [— A] vingança divina não demorou a manifestar-se depois destes orgulhosos empreendi- mentos. Porque, em menos de cem anos, a grande Atlântida foi destruída: não por um grande terramoto, como diz o vosso homem (até porque toda aquela zona do mundo é pouco sujeita a terramotos), mas por um dilúvio ou, mais exatamente, uma inundação. Aquelas terras tinham, à época, rios muito grandes e montanhas muito altas, de onde escorria mais água do que em qual- quer outra parte do mundo antigo. Deve também dizer-se que a dita inundação não foi grande, pois não ultrapassou, na maioria dos lugares, os doze metros a contar do chão. Por isso, embora ela tivesse provocado a morte a homens e animais em geral, alguns habitantes selvagens da flo- resta escaparam, os pássaros também escaparam, voando para as árvores altas e para os bosques. Mas, quanto aos seres humanos, embora houvesse edifícios acima do nível das águas, aquela inundação provocou muito mais vítimas, porque, apesar de pouca profunda, se manteve por mui- to tempo e, por essa razão, os habitantes do vale que não morreram afogados, pereceram devido à falta de alimentos e outros bens necessários. […]

[Uma refeição]

[…] Pouco depois foi servido o nosso jantar, o qual foi composto de boas iguarias, tanto em pão como no resto, melhores do que em qualquer dieta de colegiada que eu tenha conhecido na Euro- pa. Também tivemos bebidas de três tipos, todas saudáveis e saborosas: um vinho de uvas; uma bebida de cereais, parecida com a que, na nossa terra, chamamos cerveja, mas mais clara; e uma espécie de sidra feita de um fruto que só se encontra naquele país, uma bebida maravilhosamente agradável e refrescante. Além disso, também nos trouxeram uma grande quantidade daquelas la- ranjas escarlates, para os nossos doentes; as quais (disseram eles) era remédio garantido contra as maleitas apanhadas no mar. Também nos deram uma caixa com umas pílulas pequenas cinzentas ou esbranquiçadas, e queriam que os nossos doentes tomassem uma todas as noites, antes de irem dormir, pois, diziam eles, acelerariam a sua recuperação. […]

[Agricultura]

[…] [—] Também temos grandes e variados jardins e pomares, nos quais não só tivemos em con- ta a beleza como também as qualidades do terreno e a adequação dos solos às diversas árvores plantadas e ervas semeadas. Há áreas muito vastas onde são cultivadas árvores e bagas das quais fazemos vários tipos de bebidas, isto para além das vinhas. Nestas, praticamos também toda a espécie de enxertos, e aplicamos igualmente esta técnica em árvores silvestres, transformando-as em fruteiras. E fazemos (através da arte) o mesmo nos pomares e jardins, para que desabrochem mais cedo e produzam mais cedo (ou mais tarde) em relação às suas estações, acelerando ou retar-

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dando o seu curso natural. Também, através das mesmas artes, os frutos resultantes são maiores e mais doces, e o seu gosto, cheiro, cor e aspeto distintos da sua natureza. E muitos são tratados de modo a que se tornem medicamentos.

“Temos também maneira de fazer crescer várias plantas sem sementes, através de misturas de terras, e conseguimos, do mesmo modo, criar plantas novas, diferentes do vulgar, e fazer com que uma árvore ou planta se transforme noutra.

“Temos igualmente parques e cercados com todo o género de animais terrestes e pássaros, e os utilizamos, não só para exibir pela sua beleza e raridade, mas também para dissecção e expe- riências laboratoriais, porque deles podemos tirar muitas ilações sobre o que pode ser feito no corpo dos seres humanos. Neles encontramos e provocamos muitos efeitos estranhos, conse- guindo mantê-los vivos, apesar de várias partes que consideramos vitais terem neles perecido e terem sido retiradas; ressuscitamos alguns que, na aparência, diríamos mortos; e muitas outras coisas deste género. Também neles fazemos experiências com venenos e outros medicamentos, ou praticamos cirurgias, ou estudamos os processos biológicos. Também, por arte, os tornamos mais encorpados ou mais altos do que no seu tamanho natural; ou, pelo contrário, os fazemos mais pequenos e interrompemos o seu crescimento. Igualmente os tornamos mais férteis do que é natural na espécie, ou então, pelo contrário, os tornamos estéreis e incapazes de se multiplicar. Também modificamos a sua cor, forma ou atividade de muitas maneiras. Encontramos formas de os miscigenar e fazer copular com diferentes técnicas, o que deu origem a espécies novas, e não estéreis, como é voz corrente. Produzimos um certo número de serpentes, vermes, moscas, peixes, a partir da sua putrefação, e alguns chegam a ser em tudo criaturas perfeitas, tanto nos animais terrestes como nos pássaros; e têm sexos e reproduzem-se. Nada disto fazemos ao acaso, mas sabendo de antemão de que matéria ou tipo de miscigenação essas criaturas surgirão.

“Também temos lagos especiais onde fazemos experiências com peixes, tal como descrevemos anteriormente a respeito dos animais terrestes e dos pássaros.

“Também temos locais para criar e produzir aqueles tipos de vermes e de moscas que são de utilização específica, tal como são para vós os bichos da seda e as abelhas.

“Não vou demorar-vos falando uma vez mais nas nossas cervejeiras, padarias e cozinhas, onde preparamos bebidas, pães e carnes, variados, raros e com efeitos especiais. Fabricamos vinho a partir das uvas e bebidas de outras espécies de fruta, cereais e raízes; e ainda bebidas misturadas com mel, açúcar, maná e frutos secos e cozidos; ou feitas a partir dos cortes em árvores, e ainda com a polpa de canas. E estas bebidas têm diferentes idades, algumas bebem-se frescas, outras com quarenta anos. Temos também bebidas produzidas com várias ervas, raízes e especiarias. E o mesmo fazemos com diferentes carnes e com carnes brancas; e, portanto, algumas das bebidas são, deste modo e ao mesmo tempo, carne e bebida: e muitos, sobretudo os mais velhos, preferem viver delas, usando na sua alimentação muito pouca carne ou pão, ou mesmo prescindindo des- tes. Acima de tudo, tentamos ter bebidas com pedaços sólidos muito pequenos para que eles sejam assimilados pelo corpo sem ter tanto que morder, mastigar ou nos enervar. De tal maneira que al- guns, colocados nas costas da mão, passado um bocadinho passam para a palma e, mesmo assim, deixam na boca um gosto suave. Também temos águas que maturamos deste modo para que se

tornem nutritivas e assim se tornam de facto bebidas excelentes: e muitos não usam outra coisa. Pães, temo-los de várias espécies: de cereais, raízes, sementes; sim. E temos carne e peixe secos, com vários tipos de molhos e condimentos: alguns despertam logo o apetite; outros são muito nutritivos, e há quem viva só deles, sem qualquer outra carne, e vivem muito tempo. Quanto às carnes, temos algumas tão batidas, tenras e mortificadas, e isto sem qualquer tipo de corrupção, que basta um suave calor do estômago para a transformar num bom quilo. Tal como seria neces- sário com um calor forte para carne preparada de outro modo. Também temos algumas carnes e pães e bebidas que, depois de ingeridas pelos homens, lhes permitem jejuar muito tempo. E outras costumam tornar as carnes do corpo dos seres humanos sensivelmente mais rijas, e a força deles se torna muito maior do que seria sem estes alimentos.

“Temos dispensários ou lojas de medicamentos. E deste modo se pode facilmente pensar que, tendo nós tanta variedade de plantas e de criaturas vivas, ainda mais do que as que tendes na Europa (e nós sabemos o que lá tendes), os simples, as drogas e os ingredientes dos medicamentos são naturalmente em grande número e variedade. Temo-los igualmente de diferentes idades e longas fermentações. Quanto à sua preparação, usamos não só todas as formas de destilação e decantação delicadas, (especialmente obtidas por calor suave e percolação, com diferentes filtros e substâncias), mas também técnicas exatas de composição, por meio das quais quase tudo se incorpora, como se fossem simples naturais. […]