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[L’Autre Monde]

Cyrano de Bergerac

(1619-1655)

O Outro Mundo, de Cyrano de Bergerac (1619-1655), reúne duas obras: Os Estados e Impérios da Lua, romance escrito o mais tardar em 1649 e publicado pela primeira vez de forma incompleta em 1657 com o título História Cómica, e Os Estados e Impérios do Sol, continuação inacabada da primeira obra, pu- blicada pela primeira vez em 1662 (ainda que a atribuição ao autor desta segunda obra seja contestada). Nesses romances, uma personagem, Dyrcona – um anagrama imperfeito de Cyrano – vai à Lua e de- pois ao Sol. Essas viagens a mundos diferentes, e parcialmente invertidos, são utilizadas pelo autor para criticar amplamente a sociedade e ridicularizar as formas de pensar escolásticas. Mas os mundos des- cobertos estão longe de ser sempre ideais ou até de estarem isentos dos defeitos evidenciados na Terra.

A alimentação aparece muitas vezes nestes romances. O episódio mais marcante é, sem dúvida, uma refeição feita na Lua, onde o herói é seduzido por aromas saborosos, mas que não são seguidos pela apre- sentação das travessas que os aromas anunciavam. Com efeito, as personagens da Lua alimentam-se de fumos, o que evita dois problemas da alimentação: o trabalho da digestão e os excrementos que dela são resultantes. Noutras passagens, a alimentação será uma oportunidade para estabelecer uma continui- dade entre os seres: tornamo-nos um pouco do que comemos e transformamo-nos no que nos come. Não estando Dyrcona habituado a abandonar a sua natureza animal e a não trincar nada, terá direito a uma verdadeira refeição no dia seguinte (não vá ele ter uma indigestão, uma vez que já tinha cheirado uma refeição). Mas conhecerá outros hábitos bizarros. Numa cena de caça, organizada para sua fruição, serão alvejadas cotovias, mas elas cairão aos seus pés já assadas, pois o tempero está nas balas, e também as há capazes de depenar e cozinhar a caça em tempo recorde. Essas refeições são pagas em sonetos, para que aqueles que são espirituosos não fiquem de estômago vazio. A alusão ao contexto literário de Bergerac é clara. Mas a alimentação também é motivo para reflexões fantasiosas ou filosóficas. A Bíblia e a mitologia são reinterpretadas, especialmente com base na Árvore do Conhecimento, cujo fruto dá o conhecimento de todas as coisas, mas cuja casca causa esquecimento. Há ainda nesta ficção uma perso- nagem que não aceita alimentar-se de animais ou de plantas que tenha de matar, pois afirma que ambos os seres, animais ou vegetais, têm sensibilidade e até consciência. Essa personagem evoca a capacidade de filosofar das couves e, duvidando da excelência dos seres humanos, crê até que Deus, tido por criador de todas as coisas, as fez à sua imagem, pois são os seres humanos muito mais imperfeitos.

E Se...? Narrativas Especulativas Sobre Alimentação e Sociedade – Uma Antologia Série Alimentopia

[Um outro Paraíso]

[…] Eu queria continuar com aquelas brincadeiras, mas Elias impediu-me: — Lembre-se — disse ele, — de que este lugar é sagrado.

Calou-se de seguida durante algum tempo, como para se lembrar do que ia a dizer e, depois, pronunciou as seguintes palavras: — Não toco no fruto da vida senão de cem anos em cem anos. O gosto do seu sumo tem alguma relação com o espírito do vinho. Foi, creio eu, essa maçã, a que Adão comeu, a causa de os nossos primeiros pais terem vivido tanto tempo, por se ter derrama- do na sua semente algo da sua energia até ela se vir a apagar nas águas do dilúvio. A Árvore da Ciência está plantada aqui à nossa frente. O seu fruto está coberto por uma casca que produz a ignorância em quem a provar e que, sob a espessura dessa casca, preserva as virtudes espirituais desse douto alimento. Outrora, Deus, depois de expulsar Adão desta terra bem-aventurada, te- mendo que ele encontrasse o caminho, esfregou-lhe as gengivas com aquela casca. Desde então, ele andou mais de quinze anos a tartamudear, tendo esquecido de tal modo todas as coisas que tanto ele como até os seus descendentes até Moisés nem sequer da Criação se lembravam. Mas os restos da virtude dessa casca pesada acabaram por se dissipar devido ao calor e à clareza do génio deste grande profeta. Eu, felizmente, dirigi-me a uma daquelas maçãs que a maturidade tinha despojado da sua pele, e mal a minha saliva a molhou, a filosofia universal apossou-se de mim. Pareceu-me então que um número infinito de olhos pequeninos tinha mergulhado na minha cabeça e eu tinha passado a saber o modo de falar com o Senhor. Quando depois fiz uma reflexão sobre esta remoção milagrosa, calculei que não poderia ter vencido por meio das virtudes ocultas de um corpo natural simples a vigilância do serafim que Deus ordenou para guardar este paraíso. Mas porque lhe agrada servir-se de causas secundárias, pensei que ele me tinha inspirado aquela forma de lá entrar, tal como tinha querido usar as costelas de Adão para lhe fazer uma mulher, embora a pudesse ter feito de barro como fez com ele. Fiquei assim muito tempo neste jardim a passear sem companhia. […]

[O fumo]

[…] Ele ainda me teria contado mais coisas se não nos tivessem vindo chamar para a mesa; o meu guia levou-me a um quarto magnificamente mobilado, mas onde não vi nada preparado para comer. Uma tal desolação, quando eu estava a morrer de fome, fez-me perguntar onde tinham posto a mesa. Não consegui ouvir o que ele me disse, pois três ou quatro rapazinhos, filhos do anfitrião, se aproximaram de mim naquele momento, e, com grande civilidade, me despiram até à camisa. Esta nova forma de cerimónia surpreendeu-me tanto que nem ousei perguntar a razão do gesto aos meus belos e graves criados, e, não sei eu como, consegui responder ao meu guia, que perguntou por onde eu queria começar, só estas duas palavras: “Uma sopa”. Imediatamente senti o cheiro do mais suculento refogado que alguma vez atingiu o nariz de um sôfrego. Quis levan- tar-me do meu lugar para procurar a fonte daquele fumo agradável, mas o meu guia deteve-me:

de comer. Termine a sua sopa, e depois mandamos vir outra coisa.

— E onde diabo está tal sopa? — gritei-lhe eu muito zangado. — O senhor apostou hoje em gozar comigo?

Respondeu-me ele: — Pensava que tivesse visto na cidade de onde viemos, o seu senhor ou al- gum outro tomarem refeições; só por isso não lhe falei da maneira como as pessoas se alimentam neste país. Então, já que ainda o ignora, fique a saber que vivemos aqui apenas de fumo. A arte da cozinha é encerrar em grandes vasos – feitos propositadamente para tal fim – as exalações que saem das carnes e, tendo coligido vários tipos e gostos diferentes, conforme o apetite daqueles que servimos, abrimos o vaso onde esses odores estão guardados, e depois vamos destapando outro, e outro ainda, e assim por diante, até que todos fiquem saciados. Na verdade, a não ser que já tenha vivido deste modo, nunca poderia imaginar que por si só o nariz, sem os dentes e sem a goela, pudesse executar, para alimentar o homem, as funções da sua boca, mas vou mostrar-lho através da experiência.

E mal ele tinha acabado de falar senti entrar sucessivamente na sala tantos vapores agradáveis e tão alimentícios que em menos de um quarto de hora me senti completamente saciado. E, quan- do nos levantámos, disse-me:

— Não se trata certamente de uma coisa que lhe possa causar assim tanta admiração, porque não pode ter vivido tanto tempo sem observar que, lá no seu mundo, os cozinheiros e os pastelei- ros comem menos do que as pessoas de outras profissões e são, apesar disso, bem mais gordos. De onde lhes vem aquela barriguinha a não ser do fumo das carnes que os rodeia constantemente, que lhes penetra no corpo e os alimenta? É por isso que as pessoas deste mundo daqui gozam de uma saúde bem menos interrompida e bem mais vigorosa, já que os alimentos quase não geram excrementos, que estão na origem de quase todas as doenças. Possivelmente ficou surpreendido quando, antes da refeição, o despiram, porque este costume não é habitual no seu país. Mas é a moda aqui e usamo-lo para que o animal fique mais transpirável, aberto ao fumo.

— Caro Senhor — repliquei-lhe eu, – há uma grande verdade em tudo o que me diz e eu próprio acabei de fazer a experiência; mas confesso que, não conseguindo desbrutalizar-me tão prontamente, gostaria de sentir um pedaço bem palpável entre os meus dentes.

Ele assim me prometeu, todavia só para o dia seguinte porque, dizia ele, comer tão rapidamen- te logo a seguir à refeição ainda me causaria alguma indigestão. Continuámos a conversar ainda durante algum tempo e depois subimos ao quarto para nos deitarmos. […]

[A caça já assada]

[…] No dia seguinte, já o sol raiava, entrou no quarto o meu demónio e disse-me: — Vou cumprir a minha palavra. Vai almoçar mais solidamente do que ontem jantou.

Ao ouvir estas palavras, alcei-me logo, e ele guiou-me pela mão para detrás do jardim da casa, onde um dos filhos do anfitrião nos esperava com uma arma na mão, semelhante às nossas espin- gardas. O rapaz perguntou ao meu guia se eu queria uma dúzia de cotovias, porque os macacos

(era como ele me considerava) se alimentavam dessa carne. Mal eu respondi afirmativamente, o caçador disparou um tiro, e vinte ou trinta cotovias caíram todas preparadinhas aos nossos pés. Aqui, imaginei imediatamente o provérbio do nosso mundo em que se fala de um país onde as cotovias caem já todas assadas! Sem dúvida alguém tinha vindo já aqui e depois regressado.

— Basta-lhe comer, — disse o meu demónio. — Há aqui o engenho de misturar as técnicas que matam, depenam e cozinham a caça, já com os ingredientes necessários para a temperar.

Eu apanhei algumas das aves, que comi em confiança, e na verdade nunca na minha vida pro- vei nada tão delicioso. […]

[A alma da couve]

[…] Estendemo-nos, então, nuns colchões muito macios, cobertos com grandes tapetes onde o fumo nos veio encontrar tal como acontecera já na albergaria. Um servo jovem levou o mais velho dos nossos dois filósofos para uma salinha separada e gritou então o meu tutor:

— Venha ter connosco aqui, logo que acabe de comer.

E prometeu que voltava. Esta fantasia de comer à parte suscitou-me a curiosidade de saber a sua razão:

— Ele não gosta do cheiro da carne, ou mesmo das ervas, se não morreram por si mesmas, esclareceram-me eles, porque pensa que são capazes de sentir dor…

— Não me surpreende assim tanto que se abstenha de carne e de todas as coisas que tiveram vida sensível, respondi eu, pois em nosso mundo os pitagóricos e até mesmo alguns santos-a- nacoretas criam nesse sistema; mas não ousar, por exemplo, cortar uma couve por medo de a magoar, parece-me risível.

— Pois eu — contestou o demónio, — encontro muita verdade na crença dele, porque, ora diga-me lá, essa couve de que fala não é tanto criatura de Deus como o senhor? Não têm ambos como pai e mãe, Deus e a privação? Deus não teve, desde toda a eternidade, o intelecto ocupado com o nasci- mento dela tanto quanto teve com o seu? Embora me pareça que ele se ocupou mais do vegetantes do que dos raciocinantes, já que entregou a geração de um homem aos caprichos do seu pai, o qual podia a seu bel-prazer engendrá-lo ou não o engendrar: rigor que, no entanto, não quis usar com a couve; porque, em vez de confiar ao critério do pai germinar ou não o filho, como se apreendesse que a raça da couve perecesse mais do que a raça dos homens, forçou-as, quer elas quisessem quer não, a dar o ser umas às outras, e ao contrário dos homens, que no máximo só podem gerar na sua vida cerca de vinte outras vidas, a couve produz, no que lhe diz respeito, quatrocentas mil por ca- beça. Todavia, dizer que Deus amou mais o homem do que a couve é fazer cócegas a nós próprios para nos fazer rir. Sendo incapaz de paixão, ele não conseguiria odiar nem amar ninguém; e se ele fosse capaz de amar, havia de preferir ter afeição por esta couve que nunca o ofenderia, do que por aquele homem cujos insultos que lhe fará já Deus tem diante de seus olhos. Acrescente-se a isto que ele não poderia nascer sem crime, sendo (como é) uma parte do primeiro homem que o fez culpado. Mas sabemos muito bem que a primeira couve nunca ofendeu o seu Criador no paraíso terreal. De-

vemos dizer então que somos feitos à imagem do Ser Soberano e as couves não? Mesmo sendo isso verdade, contaminando a nossa alma que nos fazia parecidos com Ele, nós apagamos a semelhança, pois não há nada mais contrário a Deus do que o pecado. Portanto, se a alma não é já o seu retrato, também não é pelas mãos, pelos pés, pela boca, a testa ou as orelhas, que nos parecemos com ele mais do que a couve com as suas folhas, as suas flores, o seu caule, o seu coração e a sua cabeça. O senhor não acredita que, se esta pobre planta pudesse falar quando é cortada, não dissesse: “Homem, meu querido irmão, o que fiz eu para merecer a morte? Cresço apenas nas tuas hortas e nunca me encontram num lugar selvagem onde viveria em segurança; recuso ser o trabalho de outras mãos que não as tuas, mas mal saio delas é para lá voltar. Ergo-me da terra, desabrocho, estendo-te os bra- ços, ofereço-te os meus filhos ainda em semente e, como recompensa da minha cortesia, cortas-me a cabeça!” Eis o discurso que a couve faria se pudesse exprimir-se. Mas então, como ela não pode queixar-se, quererá isso dizer que podemos precisamente fazer-lhe todo o mal que ela não pode impedir? Se eu encontrar um miserável amarrado, posso, sem crime, matá-lo, porque ele não pode defender-se? Pelo contrário, a fraqueza dele agravaria a minha crueldade porque, por muito que essa infeliz criatura fosse pobre e desprovida de todos os nossos benefícios, não mereceria a morte só por isso. O quê! De todas as benesses do ser, a couve só tem a de vegetar, e nós arrancámos-lha? O pecado de massacrar um homem não é tão grande – porque um dia ele voltará a viver – quanto é o de cortar uma couve e tirar-lhe a vida, a ela que não tem outra à sua espera. Aniquila-se a alma da couve quando se lhe dá a morte; mas, quando se mata um homem não se faz senão mudá-la de domicílio. E digo mesmo mais: visto que Deus, o Pai comum de todas as coisas, ama igualmente as suas obras, não é razoável pensar que ele repartiu as suas benfeitorias irmãmente entre nós e as plantas? É verdade que fomos os primeiros a nascer, mas, na família de Deus, não há direitos de primogenitura: assim, se as couves não participam connosco do dom da imortalidade, certamente terão qualquer outra vantagem que, pela sua grandeza, compensará a sua brevidade: talvez seja um intelecto universal, um conhecimento perfeito de todas as coisas e das suas causas e talvez fosse também por isso que aquele sábio motor não lhes tenha dado órgãos semelhantes aos nossos, que não servem para mais do que um simples raciocínio fraco e muitas vezes enganador, tendo dado às couves outros mais engenhosamente trabalhados, mais fortes e mais numerosos, que lhes servem para a operação dos seus colóquios especulativos. […]

[A comichão]

[…] — Resta-me provar que existem mundos infinitos num mundo infinito. Imaginem, pois, o uni- verso como um grande animal, as estrelas que são mundos com outros animais lá dentro que servem reciprocamente de mundo a outros povos, tal como nós, os cavalos ou os elefantes. E que nós, por nossa vez, também somos mundos de certa gente ainda mais pequena, como os chatos, os piolhos, os vermes, os ácaros; estes são a terra de outros impercetíveis; e tal como nós parecemos um grande mundo a esse povo pequenino, talvez a nossa carne, o nosso sangue e os nossos espíritos não sejam outra coisa senão uma tessitura de animaizinhos que interagem, nos fazem mover através dos seus movimentos

E Se...? Narrativas Especulativas Sobre Alimentação e Sociedade – Uma Antologia Série Alimentopia

e, deixando-se cegamente conduzir à nossa vontade que lhes serve de cocheiro, conduzem-nos a nós e produzem em conjunto esta ação a que chamamos vida. Porque, tenha a bondade agora de me dizer: será errado pensar que um piolho tome o nosso corpo por um mundo e que, quando algum deles viajou de uma das nossas orelhas até à outra, os seus companheiros possam dizer dele que viajou até ao fim do mundo ou que correu de um polo ao outro? Sim, sem dúvida, este povo pequenino toma o nosso pelo pelas florestas do seu país, os poros cheios de pituíta, as borbulhas e as espinhas por lagos e charcos, os abcessos por oceanos, os fluidos por dilúvios; e quando nos penteamos para trás e para a frente, tomam esta agitação pelo fluxo e refluxo do oceano. A comichão que sentimos não prova aquilo que digo? Esse ácaro que a produz será uma coisa diferente de algum desses animaizinhos que se libertou da socieda- de civil para se tornar um tirano no seu país? Se me perguntarem por que razão são maiores do que esses outros pequenos impercetíveis, pergunto eu por que razão são os elefantes maiores do que nós e os irlandeses maiores do que os espanhóis? Quanto a essa bolha e essa crosta, cuja causa ignoramos, elas têm que ser formadas pela corrupção dos cadáveres dos seus inimigos que esses pequenos gigantes massacraram ou então produzidas pela necessidade de alimentos de que os sediciosos se empanturra- ram, deixando apodrecer pelos campos montanhas de cadáveres; ou talvez esse tirano, depois de ter à sua volta expulsado os seus companheiros que, com os seus corpos, tapavam os poros do nosso, tenha deixado passagem à pituíta que, tendo extravasado para fora da esfera da circulação do nosso sangue, se corrompeu. Talvez me perguntem por que razão um ácaro produz cem outros. Não é coisa complicada de perceber. Porque, tal como uma revolta engendra outra, também estes pequenos povos, empurrados pelo mau exemplo dos seus companheiros sediciosos, aspiram cada um em particular ao comando, e então por todo o lado atiçam a guerra, o massacre, a fome. Mas, dir-me-ão: certas pessoas são muito menos sujeitas a comichões do que outras. Contudo, todos estão igualmente cheios destes animaizinhos porque são eles, segundo dizem, que fazem a vida. É verdade. Assim podemos notar que os fleumáticos estão menos sujeitos à coceira do que os biliosos, porque o povo simpatizante do clima que os habita é mais lento num corpo frio do que noutro aquecido pela temperatura da sua região, que saltita, que se mexe e remexe, que não é capaz de ficar quieto. Assim, o bilioso é mais delicado que o fleumático, porque estando animado em muitas mais partes, e sendo a alma apenas a ação destes animaizinhos, é capaz de sentir em todos os lugares onde esse gado se agita e onde o fleumático não é suficientemente quente para o fazer agir senão em poucos lugares. E para provar mais ainda esta caridade universal, bastará pensar no modo como, quando nos ferimos, o sangue acorre à ferida. Os nossos médicos dizem que o sangue é guiado pela previdente natureza que quer socorrer as partes debilitadas; vejam que belas quimeras! Quer dizer que além da alma e do espírito ainda existiria em nós uma terceira substância in- telectual que teria a sua função e os seus órgãos à parte. É muito mais credível que esses animaizinhos, sentindo-se atacados, mandem os vizinhos pedir socorro e que, vindo estes de todos os lados e sendo o país incapaz de aguentar tanta gente, morram abafados ou à fome. Esta mortalidade ocorre quando a apostema fica madura; pois para testemunho de que então esses animais de vida se extinguiram é que a carne apodrecida se torna insensível; que, se muitas vezes a sangria receitada para desviar os fluxos re- sulta, é que muitos se perderam pela abertura que esses animaizinhos tentavam colmatar e eles se recu- sam a ajudar os seus aliados, não tendo senão um poder muito medíocre para se defender cada um por si.