• Nenhum resultado encontrado

Gaudentio di Lucca

(1737)

[The Memoirs of Sig. Gaudentio di Lucca]

Simon Berington

(1680-1755)

Na folha de rosto, a obra ostenta uma longuíssima inscrição que forma título e subtítulo e cujas primeiras linhas, por informativas, vale a pena transcrever: As Memórias do Signore Gaudentio di

Lucca. Extraídas da sua confissão e do seu exame perante os padres da Inquisição em Bolonha, na Itália. Fazendo a descoberta de um país desconhecido no meio dos vastos desertos de África, tão antigo, populoso e civilizado como a China. Com uma descrição da sua antiguidade, origem, religião, costumes, sistema de governo, etc., e da maneira pela qual atravessaram em tempos aqueles vastos desertos.

Oferecendo uma utopia formal, portanto, as memórias do cavalheiro italiano imaginado por Simon Berrington encontram-se preenchidas de referências à alimentação. O narrador-viajante maravilha-se perante a fertilidade da terra encontrada, que provê os nativos de tudo o que é ne- cessário, com fartura e facilidade, sendo aliás o sabor dos alimentos evocativo do conceito de uma comida edénica. O povo como que corresponde à prodigalidade da natureza – ou da Providência –, manifestando uma impecável consciência ambiental que o leva a tomar aquilo de que carece sem cometer excessos virtualmente prejudiciais ao equilíbrio do mundo natural. As únicas es- pécies que destroem com o maior zelo são as que se compõem de “animais daninhos”; é o caso dos crocodilos. Por outro lado, é de notar o modo como a empresa da pesca e da caça se integra numa rede de sociabilidades, que faz com que, por proveito e recreação, sejam muitos mais os que acorrem àquelas circunstâncias do que os diretamente envolvidos. É na caça, de resto, que os ho- mens daquele povo dão mostras da sua coragem, uma vez que entre eles não existe a guerra. Mau grado a abundância do que lhes fornece a natureza, não deixam os locais de praticar a agricultura.

Estas Memórias tiveram numerosas reedições ao longo do século XVIII, o que é invulgar no conspecto das obras aqui consideradas, com as notórias exceções dos textos de Defoe e Swift. O autor era sacerdote católico.

Dois termos do texto carecem de explicação. O “Pophar” é um governador; o título significa “pai do seu povo”. A palavra “Nome” significa “região”, nas terras do Médio Oriente, e especifica- mente do Egipto, que o protagonista calcorreia.

O país é, em geral, mais acidentado do que plano e, em alguns sítios, chega a ser montanho- so; existem, como eu disse, várias cordilheiras de montanhas que se desenrolam por várias centenas de quilómetros abaixo do Equador ou paralelas a este. São muito frias e contribuem largamente para tornar o clima mais temperado do que se poderia prever, tanto refrigerando o ar com brisas frescas que são levadas dali para o resto do país, como fornecendo às planícies inúmeros rios que correm tanto para norte como para sul, mas, sobretudo, para norte. Estas colinas e as grandes florestas com que, em geral, estão cobertas são a causa de o país ser su- jeito a chuvas; há vastas florestas que vão sendo abatidas e destruídas à medida que precisam de espaço, poupando os bosques mais pequenos pela sua beleza e variedade, assim como pelo seu uso e conveniência. As chuvas e o terreno irregular do país tornam as viagens um pouco incómodas, mas ao mesmo tempo dão origem a inúmeras fontes e ribeiras e vales tão deliciosos que, se acrescentarmos isto à honestidade e à inocência dos habitantes, podíamos pensar que se trata de um perpétuo paraíso. O solo é prodigiosamente fértil, não só no que toca aos dife- rentes tipos de cereais e arroz – possuindo uma espécie de trigo muito maior e mais rico em farinha do que qualquer trigo indiano que conheço –, mas também, particularmente, no que respeita à tão grande variedade de frutos, legumes e ervas comestíveis, com sumos nutritivos e gosto delicioso, o que faz com que o abastecimento de fruta àquele número de habitantes seja o menor dos seus cuidados. Podia pensar-se que a maldição de Adão não tinha tocado esta parte do mundo ou que a Providência tinha adequado a fertilidade do país à inocência dos habitantes. A indústria e o engenho do povo, combinados com a sua paz e tranquilidade perpétuas em relação a litígios externos e até internos, contribuem muito para a sua riqueza e fertilidade. Na sua maior parte, as aldeias são construídas perto dos riachos, a bem das ma- nufaturas e do comércio, e são em grande número. As colinas estão cheias de minas de metais de todo o tipo, com materiais suficientes para serem trabalhados; a prata é a mais escassa e o ouro praticamente o mais abundante: este solta-se por vezes em grandes pedaços das rochas minerais, como se arrancado pelas juntas e pelo calor natural da terra, ou por outras causas desconhecidas. Este ouro é mais dúctil, mais fácil de trabalhar e melhor para todos os usos do que aquele que é extraído do minério. As suas invenções em termos de arte, em todos os seus aspetos (não direi finalidades), inclusive a magnificência da vida, são surpreendentes. Quando falei dos frutos, devia ter mencionado uma espécie de pequena uva que cresce naturalmente e da qual fazem um vinho que no princípio é áspero, mas que dura muitos anos e vai amaciando e melhorando à medida que envelhece. Mas as uvas melhores, que se destinam principalmente a ser secas, essas são cultivadas, embora com algum trabalho. Os seus vinhos são mais cor- diais do que inebriantes; mas um vinho pouco forte, diluído em água, é a sua bebida habitual. Não me lembro de ter visto alguma vez no país animais de cornos, exceto umas cabras muito grandes que lhes fornecem leite, embora este seja um pouco pesado de mais. Os veados são inúmeros e de mais espécies diferentes do que as que temos na Europa. Há um animalzinho de uma espécie que aparentemente se situa entre um cabrito-montês e uma ovelha, cuja carne é do mais nutritivo e delicioso que provar se possa; de todos estes animais, estes são reservados para os melhores pratos. As aves, tanto as selvagens como as domésticas, constituem a maior parte

da alimentação no que toca a carnes, da qual não comem muito, pois consideram-na um ali- mento demasiado grosseiro. Rios e lagos estão plenos de grandes quantidades dos peixes mais delicados, particularmente uma truta dourada cujo ventre é de uma cor escarlate muito viva, deliciosa tanto para o palato como para os olhos. Eles pensam que o peixe é mais nutritivo e de mais fácil digestão do que a carne e, por essa razão, comem muito mais peixe do que carne; mas, como não têm rios que corram para o mar, há muita falta de peixe.

[...]

Estas visitas na companhia do Pophar proporcionaram-me oportunidade de ver todas as diferentes partes e as principais curiosidades de todo o império. As grandes cidades, especial- mente as capitais de cada Nome, tinham sido construídas, como mencionei, com base na mesma forma, sendo a principal diferença a sua situação. Destinam-se principalmente a residência de inverno, e para servirem de tribunais e colégios, mas particularmente para instruírem e edu- carem os jovens de ambos os sexos; e com tão admirável cuidado e economia, de forma a evitar devassidões e ociosidades, que, como antes observei, não se sabe que exista aqui aquele tipo de pessoas que não têm outras preocupações para além de visitas e roupas; e consideram nada menos do que brutos e bárbaros todos aqueles que não estão constantemente a tentar melhorar os seus talentos naturais em alguma arte ou ciência. As Vivendas ou Palácios de Lazer estão es- palhadas por todo o país numa grande e bela variedade; as suas aldeias e cidades de indústrias, comércios, agricultura, etc., são inumeráveis; os seus canais e grandes lagos, alguns deles seme- lhantes a pequenos mares, são muito frequentes, em conformidade com a natureza do país, que permite construir Casas de Lazer e Pavilhões a uma distância adequada em torno das margens, entremeados de ilhas e matas – algumas naturais, outras artificiais – em que podem ver-se, na devida época, milhares de barcos a vogar de um lado para o outro, tanto para lazer como para atividades de pesca, dado que os peixes são aqui um bem inesgotável. Existem também vastas florestas de variedades e delícias infinitas onde, aqui e ali, é possível encontrar-se anfiteatros para teatro ou relvados, quer naturais, quer aparados à mão, onde também se podem implantar tendas na estação quente, com cenários românticos de vales profundos, florestas, precipícios, quedas de água e cascatas ou, melhor dizendo, cataratas de água sobre os rochedos, que fazem das decorações artísticas meras cópias e sombras destas majestosas belezas da natureza. Para além das gloriosas perspetivas dos miradouros das montanhas por onde passámos nas nossas visitas que, por vezes, nos presenteavam com uma vista ilimitada das mais encantadoras pla- nícies do mundo; em outros lugares, terminando a paisagem a serpentear entre colinas, respi- rávamos os seus estonteantes perfumes provenientes de inúmeras espécies de fruta natural e de arbustos odoríferos. Assim viajando agradavelmente, avançando ou repousando como nos agradasse, foi com uma delícia infinita que admirei os efeitos da indústria e da liberdade num país em que natureza e arte pareciam rivalizar uma com a outra nas suas diferentes produções. Houve outra satisfação extraordinária que me foi concedida nestas visitas e que foi a oportu- nidade de partilhar os seus grandes desafios, ou melhor, empreendimentos, se posso usar esta

E Se...? Narrativas Especulativas Sobre Alimentação e Sociedade – Uma Antologia Série Alimentopia

expressão, das caçadas e das pescarias. Todos os jovens com os seus tutores ou todos aqueles que são capazes ou desejam participar, em determinadas épocas dispersam-se por todo o reino para tais caçadas. Dado que o país é tão prodigiosamente fértil que fornece quase tudo o que é uma necessidade ou até um deleite para a vida, as pessoas vivem de certo modo em harmonia sem qualquer outro interesse que não seja uma comunidade bem ordenada. Em certos períodos saem das cidades e vão viver em tendas para conveniência da caça e da pesca, dependendo das zonas e épocas adequadas para cada uma destas recreações. A parte plana do país (embora em geral mais acidentada do que na Campânia) possui quantidades prodigiosas de aves e outros animais como faisões, perdizes de diferentes tipos muito maiores do que as nossas galinhas sel- vagens, perus e pavões e outras espécies que não possuímos em Itália. As lebres são quase in- contáveis, mas nunca vi coelhos bravos; a não ser que chamemos coelhos bravos a uma espécie mais pequena de lebre que se alimenta e percorre os montes e as rochas mas que não faz tocas como os nossos. Também há uma espécie pequena de cabra silvestre, muito mais pequena do que as nossas, não muito rápida, que tem um sabor muito especial e é prodigiosamente gorda; caçam quantidades enormes de todas estas espécies, deixando, porém, sempre um provimento suficiente para a estação seguinte, a não ser quando se trata de animais daninhos, os quais são mortos sempre que possível. Mas as grandes caçadas passam-se nas montanhas e nas partes florestadas do país, cheias de uma quantidade infinita de bolotas e fruta e de outros alimentos e de todos os tipos de animais selvagens, mas particularmente alces de quatro ou cinco espé- cies diferentes; alguns que andam pelas zonas mais selvagens são quase do tamanho de cavalos e a sua carne é seca e, temperada com especiarias, é dos alimentos mais ricos que já provei. Os porcos selvagens são de dois tipos, alguns enormes, outros muito pequenos, ainda mais pequenos do que um cordeiro, mas terrivelmente ferozes. A sua carne é do mais delicado, já que se alimentam de bolotas e de frutos selvagens na parte mais espessa das florestas, multipli- cando-se excessivamente quando não são perturbados, podendo uma porca parir dezasseis ou dezoito leitões. Cheguei a ver milhares deles apanhados numa só caçada e enviados de presente para outras partes do reino onde tais animais não existem. É o costume deles em todos os seus lazeres, e têm pessoas contratadas para transportar as raridades para as outras partes do país, oferecendo-as aos governadores, familiares e amigos que não participaram na atividade.

[...]

Mas a pesca no grande lago Gil-gol, ou Lago dos Lagos, não tem qualquer perigo, pois não há jacarés naquelas águas; e faz-se apenas por recreação e pelo uso do peixe. O lago tem para cima de cem milhas italianas de circunferência. Na estação própria, todo o lago se cobre de barcos, muitos deles cheios de senhoras que vêm assistir aos divertimentos, além daqueles que se encontram nas ilhas e nas margens, com trombetas, oboés e outros instrumentos musicais, sempre a tocar. É impossível descrever as diferentes espécies de peixes em que abunda o lago, dos quais nada conhecemos na Europa; ainda que tenham alguns semelhantes aos nossos, mas muito maiores, como o lúcio, ou um peixe parecido, de duas ou três jardas de comprido; um

peixe como um sargo de jarda e meia de comprimento; carpas que pesam quarenta ou cin- quenta libras; deles apanham incríveis quantidades, alguns numa parte do lago, outros noutra. Assim pescam, e banqueteiam-se com o que apanham durante uma quinzena ou três semanas, se lhes corre bem a campanha, recolhendo-se à noite às suas tendas, nas ilhas ou nas margens, onde estão aqueles que se ocupam de secar e curar as partes do peixe que aproveitam, e de en- viar dele presentes para outras partes daquela terra, em troca de carne de veado, aves e coisas que tais. Ainda que haja nobres lagos e bacias, mesmo nas florestas, entre os montes e as matas, onde abunda excelente peixe, faltam aí as melhores espécies, isto é, o peixe do mar. Quando termina a época da pescaria, retiram-se para as cidades, por causa das estações das chuvas, que começam logo de seguida.

Segunda Relação dos Usos e Costumes da nova