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Unidos das Américas em 1999 (1899)

[Looking Forward: A Dream of the United States of the Americas in 1999]

Arthur Bird

(1853-1935)

Nascido no Haiti, onde os pais, ingleses, eram missionários, Arthur Bird frequentou a universi- dade de Cornell após a Guerra Civil e prestou serviço diplomático no consulado americano em Port-au-Prince, tendo regressado aos Estados Unidos da América na década de 80. Inspirado pela especulação retrospetiva/prospetiva de Bellamy, idealizou as futuras transformações sociais, po- líticas e tecnológicas na sua única obra literária, publicada no rescaldo da guerra Hispano-Ame- ricana de 1898 e das suas implicações geoestratégicas.

Após um prefácio no qual Bird sustenta, respeitosamente, estar convicto de que os Estados Unidos da América iriam dominar o hemisfério ocidental no futuro, cumprindo a doutrina Monroe, e sendo propósito da obra incentivar o patriotismo americano, o autor inicia a expo- sição do seu sonho para a mais poderosa nação do mundo, no final do século XX. Nessa época, existem duas outras potências, a Inglaterra, que controla a África, a Índia e a Europa, ao passo que a Rússia domina a Ásia. Os novos Estados Unidos das Américas estendem a paz e a democracia desde o Alasca à Patagónia. Em 1999, um século volvido da data da escrita do texto, a eletrici- dade aplica-se a toda a maquinaria e torna inútil a contratação de trabalhadores, incentivando um agrarianismo tecnológico. Todos os lares americanos possuem um robot e foi estabelecida a comunicação com Marte. A alimentação é diversificada, existem várias referências à importância do vegetarianismo, mas esta visão do futuro caracteriza-se pela constatação de que no futuro iria haver pouco tempo para as pessoas se alimentarem, e daí a necessidade de jantares prontos a digerir e de comprimidos para substituir os alimentos, a par de escolas estatais de culinária. O texto dá igualmente conta de um registo cómico, nomeadamente, ao incluir uma mensagem de Marte e um anúncio a ostras de borracha, publicitadas como comida indestrutível. Para além da subversão das convenções sociais, promovidas pelo convívio potenciado pelas refeições partilha- das com outras pessoas – um elemento recorrente em outras narrativas especulativas – e pelos modos de produção e consumo de alimentos, o autor prevê que no futuro serão disponibilizados novos regimes dietéticos, recorrendo a carne de cavalo e a peixe cru.

gelado – de todos os sabores – eram muito populares, assim como os comprimidos de frutas. As dactilógrafas loiras e morenas de 1999 preferiam estes aos comprimidos de canja ou de consommé.

CAPÍTULO XXV

Melhoria das Condições Sociais

[...] Ele tinha uma cama quente, três refeições normais quentes por dia, com o privilégio de jogar às cartas, fumar e ler como bem lhe apetecesse. [...]

O homem pode ser classificado como um animal carnívoro. Os vegetarianos defendem uma teoria diferente. Banem da sua mesa a carne de bestas ou de aves que foram mortas, excluindo assim as carnes de qualquer tipo. É privilégio do vegetariano viver segundo os padrões dietéticos que adotou. Dois terços da família humana discordam dos vegetarianos neste capítulo. A vasta maioria é a favor de carnes de todo o género como um produto alimentar. No século XIX, bem como em todos os séculos anteriores, os pitéus da mesa tidos em mais alta estima eram aqueles em que as viandas de todas as variedades eram incluídas.

Uma mesa modelo do século XIX deliciava-se em pratos do tipo de turbot à la cardinal, costele- tas de borrego, entrecosto de porco, franguinhos novos, selle-de-mouton, presunto, língua, perdiz assada, pato assado com tempero de sálvia, peru e molho de arando, cordeiro braseado, carangue- jo picante, fritos de carne, salsichas, fiambre frio. Estes pratos salgados de carne desempenhavam invariavelmente papéis preponderantes nas mesas de ricos e de pobres. Legumes e sobremesas eram considerados complementos da festa.

Os vegetarianos consideravam estas comidas como alheias ao sistema humano e desnecessá- rias ao seu sustento. A acrescentar a isto, os vegetarianos nutrem uma visão sentimental sobre a comida cárnea em causa. Alegam que os homens não têm o direito de matar besta, peixe, ave selvagem ou doméstica com vista a garantir o fornecimento de alimentos, e que todo o alimento cárneo deve ser eliminado do sistema humano. Uma mesa de vegetarianos era guarnecida com pratos deliciosos, tal como laranja às fatias, torradas com manteiga, marmelos assados, pudim de gelatina, biscoitos de cereais ralados, tâmaras com flocos de aveia, milho doce, ameixas estufadas, macarrão e queijo, compota de figo com natas batidas, batatas fritas, cogumelos e queques de arroz. Estes pratos eram saudáveis e alimentícios mas, de certos pontos de vista, decididamente sensaborões.

Em 1999, os vegetarianos eram mais enfáticos nas suas ideias do que os seus irmãos de 1899. Continuavam a gostar de sanduiches de pasta de amendoim, de bifes fritos de beringela, de bo- lachas de água e sal, biscoitos de noz, feijão picante e outros petiscos caros aos corações daqueles que tinham rejeitado comer a carne de “coisas que sofrem e que sentem”. Em 1999, os vegeta- rianos recusaram-se a usar sapatos de couro. No início foi difícil, mas os sapatos tiveram de ser sacrificados aos princípios. Recusavam-se a comer carne porque exigia que se matasse a besta ou a ave. Seguindo esta ideia, também se recusaram a usar sapatos de couro porque o boi tinha de ser

CAPÍTULO XX

Jornais em 1999

[...] MENSAGEM DE MARTE [...]. A mensagem vem escrita em papel de amianto em tinta que não desbota e uma tradução pouco rigorosa transmite a informação de que o alto regulador dos continentes combinados de Marte morreu de pavor gastronómico, fez dois anos em novembro passado, ao ver uma celebração americana do Dia de Ação de Graças. Antes de morrer previu que se algum dia os americanos viessem a dominar este planeta, arruinariam a incomparável diges- tão de todos os residentes através da introdução de molho de arando, empada de carne picada e pudim de ameixa. [...] [N]a maioria das localidades, os efeitos das bebidas alcoólicas foram elimi- nados pela descoberta química que, quando aplicada, as tornava não inebriantes. [...]

Os seguintes anúncios, tirados do Sidney Record de 15 de outubro de 1999, interessarão aos nossos leitores:

ANÚNCIOS CLASSIFICADOS

ALIMENTOS INDESTRUTÍVEIS – As nossas ostras–borracha, isentas de odor, estão a fazer furor; baratas e duradouras; sempre utilizáveis; especialmente adaptadas para serem usadas em restaurantes ou festas religiosas: referência sob autorização da Sociedade de Assistência das Senhoras da Igreja da Irmandade Unida, que compraram cerca de sessenta litros das nossas ostras há cinco anos e ainda as estão a usar; podem ficar a guisar durante cinco horas sem se desfazer. Companhia Bivalve Perene, rua 149. [...]

CAPÍTULO XXI

Invenções do Século XX

[...] Tal era o afã dos assuntos humanos que as pessoas pouco tempo arranjavam para comer. A pressa febril e louca da época era intensa. Não se podia encontrar melhor prova disto do que o sucesso de uma determinada empresa que, em 1899, teria sido um rotundo falhanço. Nos bons velhos tempos de 1899, as pessoas pelo menos tomavam tempo para comer, mas, em 1999, foi criada uma grande empresa para produzir e vender Jantares Prontos a Digerir. De modo a pou- par tempo, muitas vezes as pessoas jantavam uma pílula. Um pequeno comprimido que continha alimentos altamente nutritivos. As pessoas não tinham grande vontade de esticar as pernas por baixo de uma mesa durante uma hora de cada vez para mastigar os oito pratos de um jantar.

Os homens de negócios em 1999 tomavam uma pílula de sopa ou uma pílula de concentrado de carne ao almoço do meio dia. Despachavam-se assim enquanto continuavam a trabalhar nos es- critórios. As suas loiras dactilógrafas almoçavam no escritório da mesma maneira. As pílulas de

E Se...? Narrativas Especulativas Sobre Alimentação e Sociedade – Uma Antologia Série Alimentopia

Séculos

XX e XXI

morto para se lhe tirar a pele. Pela mesma razão, em 1999, os vegetarianos recusaram-se a usar seda de qualquer tipo, porque a sua produção custa a vida dos queridos bichinhos. Também recu- savam, pelo mesmo motivo, trazer carteiras de pele de crocodilo. Era uma tal maldade matar os pobres crocodilos. Os vegetarianos alegam que a carne é dez a vinte vezes mais cara do que fruta ou cereais e que não é filosófico nem comercial pagar uma quantia mais elevada por um alimento inferior. Nem a justiça nem a benevolência podem sancionar as revoltantes crueldades que são perpetradas todos os dias para saciar apetites perversos e contranatura. Em 1999, os vegetaria- nos sentiam-se horrorizados com as práticas do século XIX, quando os talhantes agarravam nos inocentes cordeirinhos, as criaturas mais inocentes e amorosas, e lhes cortavam a garganta nos matadouros. Os mares de sangue que corriam pelos lugares de matança em Chicago não tinham atrativos para os vegetarianos.

Em 1999, o mundo não estava de modo nenhum convertido a uma única teoria ou ideia sobre a questão dos alimentos. Nesse ano, uma deliciosa sanduiche de fiambre ou uma fatia de peru com trufas ainda deliciava os palatos de milhões. A ave quente e salgada, empurrada com uma bebida fresca, ainda mantinha cativos muitos epicúrios nos dias finais do século XX. As aves do ar e as bestas do campo continuavam a contribuir para os prazeres gastronómicos. Em 1999, o vegetariano continuava fiel às suas crenças. Pudim de ameixa, pêssegos em vinho, feijão verde e outros petiscos tinham o lugar de honra nas suas mesas.

Mas, em 1999, o mundo tornou-se mais liberal na sua visão da questão cárnea. No século XIX, nenhum argumento conseguia abalar o preconceito que existia contra o consumo de carne de ca- valo. [...] Antes de 1950, todas as cidades em vários estados por toda a América se gabavam das suas Escolas Estatais de Culinária. Essas escolas tornaram-se muito populares nos estados da América Central, México, Salvador, Costa Rica, Guatemala, assim como nos estados mais a Sul, Brasil, Ar- gentina, Bolívia, Equador e outros desse grupo da União Americana. Em resultado desta política sensata, a fama e os louros da culinária francesa foram transferidos para os nossos artistas culinários americanos. Nem sequer os afamados cozinheiros da China conseguiam igualar as competências dos cozinheiros americanos instruídos e formados. Em 1999, nenhum servo conseguia um lugar de cozinheiro se não pudesse apresentar um diploma de uma Escola Estatal de Culinária. Pediam salários mais elevados e era-lhes permitido trabalhar apenas oito horas por dia. Como resultado de ter pessoal competente, as pessoas viviam melhor e mais felizes nas suas casas. [...]

Introdução1

Marinela Freitas

Nos séculos XX e XXI, as narrativas especulativas que abordam a alimentação e a sociedade no futuro retomam muitos dos temas centrais dos períodos anteriores, mas com algumas diferenças. A luta pelo controlo das reservas alimentares é uma questão antiga, tal como o são os tópicos da abundância e da escassez; mas, a partir do século XX, há um aumento exponencial na escala, na complexidade e na sincronicidade das mudanças ocorridas, não só pelo desenvolvimento de novas tecnologias e de grandes avanços nas áreas das ciências, mas também pela eclosão de duas guerras mundiais. Períodos de esperança e de descrença vão-se sucedendo, embora o tom distó- pico domine parte da ficção moderna e contemporânea.

Há questões recorrentes para as quais não existe ainda uma solução – a sobrepopulação, as guerras, a fome, as catástrofes naturais, os efeitos da industrialização, o esgotamento dos recur- sos naturais, entre outros problemas –, mas novos temas parecem dominar as narrativas especu- lativas e utópicas a partir de 1900: o totalitarismo, a vigilância, as guerras nucleares e químicas, as mudanças climáticas, a extinção de espécies, a globalização, o capitalismo, o consumismo e a cultura de desperdício, as biotecnologias, a robótica, a computação, os alimentos artificiais ou geneticamente modificados, a clonagem, entre muitos outros tópicos que são, na verdade, uma extensão dos mesmos problemas, com novas variantes. Velhos contos, novos contos. Ou, para usar uma metáfora musical, notas iguais, músicas diferentes.

Os textos aqui antologiados foram escritos em diferentes contextos sociais, históricos e lite- rários, embora estejam maioritariamente inseridos na tradição ocidental. “Selecionar é escolher / escolher é perder”, como diria o poeta português José de Almada Negreiros, e uma antologia é sempre o resultado de um processo de inclusões e exclusões, algumas das quais alheias à nossa vontade. Em todo o caso, o objetivo primeiro deste recorte foi o de sublinhar algumas das no- tas dominantes dos últimos 119 anos sobre alimentação e futuro, de modo a gizar o percurso evolutivo das representações culturais da comida na ficção utópica e especulativa. De entre os temas mais recorrentes, há alguns que se destacam, embora coexistam em diversos textos, tem- pos e tradições, e nem sempre de forma linear. Para efeitos de análise, serão apresentados como quatro tendências gerais: 1. Da “cozinha-laboratório” ao “laboratório-como-cozinha” (tendência

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“revolução” promovida aparentemente com o intuito de libertar as mulheres das enfadonhas ta- refas domésticas (Belasco 2007: 109) não as salva da cozinha, já que as esferas ocupadas separada- mente pelos dois sexos continuam sem alteração, como é habitual nos períodos pós-guerra, mar- cados pela tentativa de recondução das mulheres ao lar. Note-se como, durante esse período, se promove a ideia da cozinha como laboratório elétrico e, juntamente com elas, a ideia das donas de casa – e a expressão é de Thomas Edison – como futuras “engenheiras domésticas” (Edison 2008: 259). Um bom exemplo é o conto “Satisfaction Guaranteed” [“Satisfação Guarantida”] (1951), do escritor norte-americano (nascido na Rússia) Isaac Asimov, sobre um marido que traz para casa um robô para ajudar nas tarefas domésticas, acabando a sua mulher por se apaixonar por ele, ao encontrar no robô o companheiro ideal neste “lar de sonho”.

Se, no quadrante mais sociológico, questões desta natureza serão tratadas em livros como

The Feminine Mystique (1963), de Betty Friedan, no campo literário há alguns contos distópicos ou satíricos que cedo se debruçam sobre a excessiva dependência da tecnologia nos lares e os seus perigos, quer para homens, quer para mulheres. Um deles é “Nor Custom Stale” [“Nem o uso perturba”] (1959), conto aqui antologiado da escritora norte-americana Joanna Russ, que, de forma visionária, antecipa os desafios colocados pelo que chamaríamos hoje – no dealbar da 4.ª revolução industrial – as “casas inteligentes”, tornadas possíveis com a Internet das Coisas. O título “Nem o uso perturba” refere-se à capacidade infinita que uma casa “inteligente” e “imortal” tem de fornecer tudo aquilo de que os seus ocupantes necessitam – Ar, Energia e Alimentos –, criando condições para que quem a habita se isole progressivamente do exterior. Como qualquer edifício inteligente, esta casa possui um sistema central de informações que coordena minucio- samente o quotidiano de Harry e Freda, os seus donos. Desde o uso de energia ao fornecimento alimentar, passando ainda pela limpeza das divisões, pelo abastecimento do carro e pela manu- tenção do acesso a atividades recreativas, tudo é controlado minuciosamente para providenciar o maior conforto possível. Quando um dia uma luz vermelha aparece no painel central, seguida por outra luz vermelha e outra e outra ... o casal vai-se isolando progressivamente do mundo, alienado numa monotonia perfeitamente cronometrada, preso num “loop” interminável consis- tindo na sucessão das refeições: pequeno-almoço, almoço e jantar, pequeno-almoço, almoço e jantar, pequeno-almoço, almoço e jantar. Anos mais tarde, quando Isaac Asimov visita o General

Electric Pavilion na Feira Mundial de Nova York de 1964, escreve uma peça intitulada “Visita à Feira Mundial de 2014” para o The New York Times , em que repete algumas das preocupações de Russ, ao comentar que a única desvantagem das cozinhas automatizadas e das suas “auto-refei- ções” parece ser o tédio, prevendo o surgimento da “psiquiatria como a especialidade médica mais importante em 2014” (Asimov 1964: 20).6

Ao mesmo tempo, e continuando um dos temas do século XIX, a confeção de refeições é progressivamente deslocada da “cozinha-laboratório” para o “laboratório-como-cozinha” em muitos outros textos. Tal como acontecia com a comida quimicamente produzida em Mizora (1881), de Mary E. Bradley Lane, é no laboratório que são desenvolvidos artificialmente todo o tipo de alimentos nutritivos e económicos: é o caso do superalimento “Herakleophorbia”, desenvolvido pelos cientistas Redwood e Bensington em The Food of the Gods [O Alimento dos no (tendência ambiental); 4. Do “Nós vs. Eles” ao “Nós-estamos-nisto-juntos-mas-não-comemos-o

mesmo” (tendência identitária).2

1. Da “cozinha-laboratório” ao “laboratório-como-cozinha”

(tendência tecnológica)

Uma das tendências mais importantes dos séculosXX e XXI é a ideia de progresso científi-