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Introdução Jorge Bastos da Silva

5. Robinson Crusoe (1719)

O romance de Defoe merece o estatuto de epítome do nosso corpus. As memórias de Crusoe dão- -nos o arco completo da alimentação – desde o desamparo (e do medo do herói de ser ele próprio comido) à agricultura e à pastorícia eficientes, e destas ao gozo de um belo repasto em companhia seleta: o seu cão, o seu papagaio e os seus dois gatos (a refeição constitui um triunfo pessoal de Crusoe e, ao mesmo tempo, uma auto-paródia subliminar do self-made man). Crusoe aprende – essencialmente ensina-se a si mesmo – a realizar semeaduras e colheitas de acordo com o ciclo das estações, a transformar o cereal em farinha e fazer pão. Vem a dominar as artes de cultivar, cozinhar e preservar alimentos, a par de um grande número de técnicas ancilares envolvendo o fabrico de ferramentas, recipientes, fornos, vedações e abrigos. Na sua carreira, passa de caçador-

-recoletor a lavrador e pastor, de pobre a proprietário, de homem dos sete ofícios a senhor – e mesmo, de certo modo, a monarca. Nesta história de sucesso contra todas as probabilidades, a sua soberania reflete-se no abandono da dieta canibal por parte de Sexta-Feira. No entanto, a relutância de Sexta-Feira em europeizar-se inteiramente, ou talvez a incapacidade de o fazer, é sintomática de ambivalências que constituem uma pedra angular do corpus que recenseámos. O Outro carece de ser assimilado, no duplo sentido de ser compreendido e apropriado (se não dige- rido); ao mesmo tempo, porém, se vier a ser totalmente absorvido, deixará de operar como uma força motriz para o devaneio, o desafio crítico e a mudança.

Notas

1. Ressalve-se um caso como o de William Hodgson em A República da Razão (The Commonwealth of

Reason, 1795). Adotando uma espécie de fisiocratismo modulado, a obra descreve uma sociedade que prescreve o aproveitamento das terras incultas e calcula os salários e os impostos em função do preço da comida. Tomar a comida como valor de referência de rendimentos e tributos (um certo número de alqueires de cereais ou o seu equivalente em moeda) garante ao trabalhador a subsistência, nem que seja à custa de um alimento específico, que não de um cabaz, como decerto seria económica e dieteti- camente mais avisado.

2. Exemplos são Uma Descrição de Millenium Hall (A Description of Millenium Hall), de 1762, obra atribuída a Sarah Scott, Viagens d’Altina, de Luís Altina de Campos, de 1790-93, e Memórias de Planetes, ou Um

Esboço das Leis e dos Costumes de Macar. Por Phileleutherus Devoniensis (Memoirs of Planetes, Or A Sketch of

the Laws and Manners of Makar. By Phileleutherus Devoniensis), de 1795, atribuída a Thomas Northmore. No decurso destas narrativas há várias referências a refeições, mas a alimentação em si mesma é um tema marginal. O narrador de Viagens d’Altina informa que a povoação da ilha dos Naufrágios “vive regularmente ocupada a criar gados vacuns e porcos, a fabricar manteigas e queijos, a salgar e ensacar carnes, artigos de que fazem um grande comércio com o continente” (Campos 2012: 115). Em Memórias

de Planetes é referido num à-parte: “Os Macários são quase totalmente estranhos ao luxo; são simples na sua dieta, vivendo principalmente dos vários frutos da terra, e comendo muito pouca comida ani- mal, e mesmo esta pouca é na sua maior parte consumida em sopas” (Devoniensis 1795: 129). O nome “Macários”, que vem da Utopia de Thomas More, significa “felizes”.

3. Usamos a base de dados de Lyman Tower Sargent (Lyman Tower Sargent Bibliography) como referência para a atribuição das obras britânicas mencionadas que são de autoria não declarada ou pseudonímica; suplementarmente, consideramos os preciosos trabalhos de Gregory Claeys (1994; 1997). No presente ensaio introdutório, citamos a lição do texto do corpo da antologia, cujas traduções foram revistas por nós, e acrescentamos versões da nossa responsabilidade onde necessário. Dispensamo-nos de indicar números de páginas quando citamos texto incluso infra na antologia.

4. Estas ideias reverberam em As Modernas Viagens de Gulliver (Modern Gulliver’s Travels, 1796), obra pu- blicada anonimamente e por vezes atribuída a H. Whitmore. Ao narrador-protagonista – filho de Lemuel e de uma freira blefuscudiana – é servido um jantar sumptuoso, “composto de doze peixes de

sabor delicado, um pouco mais pequenos que vairões, dois belos borregos assados, numa travessa de porcelana, e seis perus crescidos guisados numa elegante salvinha de prata; legumes de toda a espécie, em pequenos pires esmaltados”, entre outras delícias (Modern Gulliver’s Travels 1796: 18).

5. Afinam pelo mesmo diapasão as reflexões de uma personagem de Viagens d’Altina (cf. Campos 2012: 445).

A Ilha da Satisfação: ou,

Um Novo Paraíso Descoberto

(1709)

[The Island of Content: or, A New Paradise Discovered]

Autor desconhecido

Estamos perante uma carta escrita por um médico da Ilha da Satisfação – ou do Contenta- mento – onde o físico expõe a forma de governo, os usos e costumes, e de uma maneira geral o quadro de valores do seu povo. Temos, portanto, a utopia como remédio, num registo com frequência bem-humorado.

Na paradisíaca ilha, a terra fornece alimentos fácil e espontaneamente, e a sua piedosa popula- ção pratica uma dieta frugívora. É considerado imoral matar animais para o sustento próprio. A dieta visa a saciedade sem excessos, e nomeadamente sem embriaguez. Os locais fazem comércio apenas com os holandeses, cuja rudeza, mais que austeridade, os deixa a salvo de serem contami- nados de peralvilhices. O vestuário é modesto, portanto. Entre as ciências e as artes, são sobre- tudo cultivadas a medicina e a música. No plano político e institucional, existe uma monarquia hereditária, uma igreja e uma religião apenas, e somente um juiz, que tem poder absoluto. Em tudo dão precedência às mulheres, exceto na relação dentro do casamento; e os divórcios não são difíceis de obter. Dentro do regime retórico da sátira, talvez nem todas as ideias declaradas sejam totalmente congruentes.

Na procura da identidade do autor, o estudioso Gregory Claeys faz desfilar diversos nomes, concedendo algum crédito à atribuição da obra a Edward Ward (1667-1731), prolífico autor inglês, e mormente conhecido satirista e periodista, do Período Augustano (cf. Claeys 1994: xxxviii-xxxix).

E Se...? Narrativas Especulativas Sobre Alimentação e Sociedade – Uma Antologia Série Alimentopia

Capítulo II

Da comida e acepipes

Quanto aos nossos comestíveis, a natureza é aqui tão generosa na sua fartança que abundamos em variedades de manjares sem esforço humano; nem temos nós ocasião para melhorar a nossa comida pela arte da culinária, pois nada pode ser adicionado que torne as nossas suculentas frutas mais saudáveis ou mais saborosas.

Quanto ao nosso pão, o principal sustento da vida, o nosso solo fértil está tão pejado de batatas deliciosas que facilmente as desenterramos onde quer que nos apraze, sem a assistência de qual- quer outra pá para além dos nossos dedos indicadores; daí que o único trabalho que temos seja tirá-las do solo, espalhá-las pela superfície e deixá-las estar apenas meia hora ao sol, e elas pare- cerão tão bem assadas como pãezinhos de meio-tostão, como se tivessem estado fechadas num forno bem aquecido; por conseguinte, os nossos pobres não têm necessidade de recorrer à Igreja por causa da esmola para a carcaça, nem de dela dissidir na esperança de melhor sustento, pois nós não temos padeiros que os atormentem com grandes contas, ou casas de correção opressivas que os mantenham com refeições miseráveis, nem temos tão-pouco trabalhos forçados para que uma parcela de patifes ricos fuja com o lucro dos seus proventos, que os santos com autoridade sobre eles possam proferir longas orações em fartas refeições e agradecer a Deus pelo que o Dia- bo lhes deu. Ervas e raízes agradáveis são a nossa alimentação habitual, do fidalgo ao pedinte; por causa do nosso modo de vida frugal, mantemos os nossos desejos em tão absoluta submissão que não existe um único magistrado insigne entre nós que sustente uma meretriz nas barbas da mulher, nem um louvaminheiro de belas faces em todo o nosso território que algum dia se tenha tornado homem insigne por ter cometido adultério; nem nunca comemos carne por conside- rarmos pecaminosa a destruição de uma das criaturas de Deus para preservação de outra; nem temos nenhuma necessidade que nos induza a isso, na verdade não mais do que a nossa própria volúpia. Quanto a outros tipos de hortaliça, todos os homens as têm nas traseiras da casa, tão certo quanto nelas haver uma latrina; nem pode qualquer habitante passear-se pelo seu jardim sem grande cautela, pois cachos de pêssegos formidáveis e nectaríferos enormes balançam-se na extremidade de galhos dispersos, pedindo para serem engolidos, como se estivessem zangados com o seu dono por não os ter comido antes. Abreviando, temos tanta abundância de uma tal variedade de produtos deliciosos, que os nossos macacos e esquilos se alimentam de amêndoas doces e os nossos javalis de melões e ananases.

Se vós Bestas, que na ilha habitais, De ricos frutos vos alimentais, Que bênção mais pode o homem achar Neste bem-aventurado lugar?

Capítulo III

Dos nossos vinhos e outras bebidas

Aqui o exterior de cada casa é uma vinha abundante, pois as vinhas brotam tão espontaneamente sob as janelas de toda a gente como cogumelos dos tocos podres de um cavalo negro e trepam pelas nossas paredes por cima das nossas mansões tão naturalmente como cresce a hera à volta de um carvalho ou o saião no cimo de uma casa num pântano, de tal modo que todo o habitan- te, sempre que queira beber, poderá espremer as uvas com os seus próprios dentes em vez de as passar pela prensa; no entanto, para o bem comum, porque não podemos ser tão livres nas nossas próprias casas, permitimos a existência de algumas tabernas, mas para evitar a adulteração corta- mos todas as macieiras mal despontam, não vá a pureza das nossas vinhas ser aviltada pela sidra; com estes métodos, mantemos os nossos comerciantes de vinhos honestos, as nossas bebidas salutares e as pessoas saudáveis; no entanto, embora as nossas bebidas sejam em abundância e da maior perfeição, somos uma nação sóbria, pois não temos altos impostos que façam com que seja do interesse do nosso governo ser conivente com a embriaguez: para que de facto o baixo preço dos nossos vinhos e a devida execução das nossas leis contra o vício, sem a mínima ajuda de uma Associação de Reforma, façam da embriaguez um escândalo. Apesar da nossa grande tendência para o comedimento e castidade, mesmo o arco-íris mais luminoso não pode ter qualquer nuance na sua variegada coloração senão aquilo que podemos combinar com alguma bebida alcoólica excelente de igual cor, embora não haja cervejeiros entre nós; pela mesma razão, as nossas cida- des nunca são governadas por presidentes de municípios ou corregedores. Mas acima de todas as outras bebidas, possuo um certo tónico, mistura de bebida muito minha, destilada de raios de sol, orvalho de maio, luz do luar e gotas de mel, que propositadamente preparo para a rápida eliminação de quaisquer vapores de melancolia: uma excelente bebida, devo confessar sem lison- ja, que ultrapassa qualquer néctar dos céus, todos os vinhos à face da terra e todos os elementos exaltados que se misturam entre eles para extinguir a abrasadora sede do sedento Febo.

Por isso, desde que me informastes na vossa última carta da estupidez pestífera que infeliz- mente invadiu essa parte presunçosa do mundo onde agora residis, pensei que uma autêntica receita de um Nostrum tão enriquecido como este poderia ser muito bem-vinda para um médico- -irmão com as vossas particulares pretensões; mas devo recomendar-vos a seguir estritamente o que vos digo, por todos os laços de amizade que nos unem, a encerrá-la depressa no seio do vosso coração, como um segredo valioso. Se acaso tiverdes dificuldade em encontrar os ingredientes nesse vosso clima mais frio, ou se forem de preço demasiado elevado para as vossas posses, então, em vez de orvalho de maio podereis usar água do cano; para os raios de sol, folhas de ouro; prata fundida em vez de luz de luar; e o que se pede em gotas de mel, podereis usar açúcar vulgar; em- bora, façais o que fizerdes, deveis sempre verificar as quantidades certas conforme a minha re- ceita; porque deve ser uma máxima em física, a saber, nulla veritas nulla virtus.* Quando a tiverdes então preparado secundum Artem, conforme as instruções, e devido à sua eficácia para todos os

males de melancolia, aconselhar-vos-ia a chamar-lhe “Alegrete!”, um nome tão bem aplicado para uma bebida tão perfeita, que em toda a Nomen Clatura não ireis por certo encontrar outro melhor, pois um dedal cheio, administrado na altura própria, isto é, um pouco antes do paroxismo, irá por certo sarar qualquer fanático entorpecido pelo espírito de contradição, ou mal bocejante, e torná-lo em companhia tão alegre durante toda uma tarde à volta de uma garrafa, como um jovem jogador ou um palhaço divertido. O alegre Andrew* também cura infalivelmente todos

os tristes pecadores do mau-humor, hipocondria ou pesadelo. Meninas de suspiros de amor, ra- meiras de consciências atormentadas e esposas com vapores; e é de tal modo apreciado entre os felizes habitantes da nossa pacífica ilha que aqui é vendido publicamente, em vez de Brandy, para fazer as pessoas rir.

Uma pinguita com moderação Faz sempre bem, alegra o coração; Em boa medida, põe-nos contentes, Em exagero, deixa-nos doentes.

Tradução por estudantes do Curso de Mestrado em Estudos Anglo-Americanos – Variante de Tradução Literária, da Faculdade de Letras da Universi- dade do Porto: Brigith Guimarães, Carla Morais Pires, Gisela Leal, Jorge Miguel Osório, Julita Figueiredo e Vera Carvalho. Coordenação de Fátima Vieira.

* Um médico sábio mas também divertido da corte de Henrique VIII. (Nota do autor.)

As Aventuras e os Surpreendentes