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Isabel Cristina Pires

(1953-)

Isabel Cristina Pires é uma psiquiatra, poeta e ficcionista portuguesa. Estudou Medicina na Universidade de Coimbra e especializou-se em Psiquiatria, tendo sido durante vários anos Diretora Clínica do Hospital Psiquiátrico do Lorvão. A partir dos anos 80 começou a publicar regularmente prosa e poesia, estreando-se com Universal, Limitada (1987), livro pelo qual rece- beu o Prémio Caminho de Literatura Científica e o Prémio Revelação da revista Mulheres. O livro é composto por vinte e nove contos, entre os quais, o texto aqui antologiado, “Um homem em Shasta”, e está também traduzido para catalão. Nos anos seguintes, a escritora publicou ainda, na ficção, títulos como A Árvore das Marionetas (1989; romance), A Casa em Espiral (1991; contos) e O Nome do Poeta (2001; romance), e, na poesia, obras como A Roda do Olhar (1993), À

Porta de Nárnia (1995), Cobra de Papel (1997), Todas as Cores do Azul (2001), Deserto Pintado (2007),

O País das Ondas à Janela (2013), Cidade das Imagens (2015) e Rasura no Ar (2016). A autora está ainda representada em diversas antologias de poesia e conto, quer em Portugal quer em países como Espanha, França, Alemanha, Itália e Canadá.

O excerto selecionado retirado da pequena história de ficção científica “Um homem em Shas- ta” dá conta da hubris humana, da desmesura da sua arrogância enquanto espécie predatória e colonizadora. “Selvagem, selvagem, selvagem, aquela terra de Shasta!” — assim começa o conto sobre um viajante espacial que chega a um planeta situado numa região muito pouco conhecida e sobre a qual pouco se sabe. Embora pressinta o perigo (“havia como que uma premonição no ar”), este explorador desvaloriza-a já que, no horizonte, apenas vê coelhos brancos, planícies verdes e uns “estranhos montículos rochosos de cor negro-acastanhada”. Apesar do clima ameno e das enormes planícies, não parece haver herbívoros de grande porte, nem carnívoros predadores, nem aves, nem insetos. Apenas coelhos brancos, muitos. O que lhe causa estranheza. Ainda as- sim, volta a desvalorizar as peculiaridades deste estranho ecossistema e, cansado da insípida ra- ção espacial — que consiste em comida reidratada —, decide apanhar dois coelhos e comê-los. Mal esventra os animais, para os analisar antes de os ingerir, percebe que está condenado à morte. O verdadeiro predador escondido em Shasta entra em cena e de predador, o homem passa a presa.

Este é um conto premonitório sobre as consequências letais da interferência abusiva nos ecos- sistemas. A violência predatória da refeição (“Abateu os coelhos com um gesto firme e fez uma devido às crises políticas, o problema foi como reduzir drasticamente a nossa produção agrícola.

Ao mesmo tempo, queríamos acabar com as práticas extrativas e poluentes na agricultura. Feliz- mente, as novas políticas de emprego, que reduziram a semana normal de trabalho para cerca de vinte horas, ajudou muito. Fomos também capazes de absorver um certo excedente da mão-de- -obra agrícola, aplicando-a na construção dos nossos sistemas de reciclagem. Juntamente com a simplificação no processamento de alimentos, poupámos também muito ao nível da distribuição. Como bem sabem os nossos merceeiros, uma loja que comercialize mil artigos é muito menos difícil e dispendiosa de operar do que uma com cinco mil ou mais, como as vossas. Mas, pro- vavelmente, as nossas maiores economias foram alcançadas ao acabarmos simplesmente com a produção de muitos alimentos processados e embalados. Estes foram banidos por razões de saúde ou postos na lista das Más Práticas.

Isto soava a um buraco capaz de albergar uma ratazana grande e bastante totalitária. — Que listas são essas e de que forma são impostas? — perguntei.

—Na verdade, não são de todo impostas. Digamos que são antes um mecanismo de persua- são moral. Mas são meramente informais. São emitidas por grupos de estudo de consumidores. Geralmente, quando um produto entra numa lista dessas, a procura por esse mesmo produto cai a pique. A empresa que o produz normalmente tem de parar a produção ou arranjar meio de o vender em lojas especializadas.

— Mas decerto esses comités não tomam decisões por si mesmos, sem suporte científico ou autorização do governo…

O ministro adjunto esboçou um sorriso triste.

— Na Ecotopia — disse — vai encontrar muitas, muitas coisas que acontecem sem autorização do governo. Mas os comités de estudo atuam segundo pareceres científicos o mais sofisticados e independentes possível. Os cientistas na Ecotopia estão proibidos de aceitar pagamentos ou favo- res de outro estado ou de empresas privadas para todo e qualquer parecer ou aconselhamento que prestem. Portanto, a nível de probidade, estão em pé de igualdade com qualquer outro cidadão. Como tal, evitamos a lamentável situação de termos os especialistas em petróleo a soldo das pe- trolíferas, os especialistas em agricultura a soldo das agroindústrias, e por aí adiante. [...]

O ministro adjunto pôs-se de pé, dirigiu-se às prateleiras e tirou meia dúzia de panfletos. — Vai encontrar informação importante aqui compilada — disse. — Deixe-me recomendar-lhe que depois de a ter digerido siga o modo de vida ecotopiano, sem o desperdiçar.

E Se...? Narrativas Especulativas Sobre Alimentação e Sociedade – Uma Antologia Série Alimentopia

Selvagem, selvagem, selvagem aquela terra de Shasta!

O homem encontrava-se no alto de um monte, e olhava a vastidão imensa diante de si. O olhar perdia-se no horizonte ondulado pela relva. Aqui e além erguiam-se enormes penedos arredondados, como que brotando da planície, que davam uma nota de estranheza àquilo tudo. Atraíam-lhe o olhar, mas assustavam-no ao mesmo tempo.

[...] Havia como que uma premonição no ar, um aviso intangível de perigo. Virou a cabeça ao ouvir um ruído. Nada. Apenas um rato almiscarado que se esgueirava para a sua toca.

Já vira coelhos selvagens, às centenas. A planície relvada estava juncada de luras, e tinha sur- preendido os seus olhinhos rosados e brilhantes olhando-o sem surpresa.

Quase nada se sabia sobre aquela região, ainda pouco explorada. Os relatórios preliminares da sonda apenas revelavam abundância de vida animal e vegetal, muita água, um clima suave e hú- mido, ausência de jazidas minerais e uma particularidade curiosa: a existência de uma quantidade de crípton na atmosfera, quase atingindo os 15% na amostra analisada.

O sol de Shasta incidia sobre a sua nave, fazendo-a resplandecer. Mas isso não lhe deu prazer, antes o fez sentir-se inquieto e frágil. Outra vez aquela sensação de uma ameaça secreta.

[...] Encolheu os ombros e dirigiu-se à nave para comer a ração daquele dia. Não sabia até que ponto havia compatibilidade metabólica entre o seu organismo e as substâncias alimentares de Sashta.

Sentou-se cá fora para comer ao ar livre; e espreguiçou-se de puro prazer. O vento soprava em lufadas brandas como se o acariciasse. Sentia-se agora descontraído e lúcido, olhando os coelhos que saltitavam por ali sem mostrar receio.

A comida reidratada era terrivelmente insípida, como sempre. E se apanhasse um daqueles coelhos que pululavam na planície? Apetecia-lhe um guisado quente, rescendente, saboroso, com muito molho… sentia crescer água na boca só de pensar nisso.

[...]

Voltou para trás, pensando nos animais que avistara. Onde estariam os herbívoros de grande porte? E os carnívoros predadores? Onde estavam as aves e os insectos? Aquelas relvas imensas exigiam grandes manadas de búfalos, bandos de patos, libélulas irisadas. É verdade que conhecia apenas uma pequena parte daquela terra, mas ainda assim era de estranhar. E a cor branca de todos os animais, porque seria? Não mimetizavam a neve, que não existia naquele clima brando. Forma- vam até um alvo bem visível, mas a verdade é que não existiam predadores; pelo menos por ali.

Estas reflexões acompanharam-no até à nave. Entretanto, capturara dois coelhos praticamente à mão. Pegou-lhes pelas orelhas e não lhe morderam, limitando-se a fixá-lo com os seus olhos claros. Pareciam cegos.

Isso não o preocupava muito, tanto mais que se dispunha a analisá-los histoquimicamente antes de os meter numa panela. E sorriu, levemente divertido: as estranhezas, os mistérios, o insólito, multiplicavam-se por esse universo quase infinito, mas em toda a parte se repetiam os mesmos gestos: comer e saborear, dormir e sonhar, andar e olhar…

Abateu os coelhos com um gesto firme, e fez uma incisão no abdómen de um deles para lhe retirar as vísceras; para sua grande surpresa, não saiu sangue, mas sim uma quantidade de líquido seroso e incolor, com um cheiro adocicado. Linfa? Espichou os lábios e pôs um pedaço de carne incisão no abdómen de um deles para lhe retirar as vísceras”) será respondida com o mesmo

nível de violência em Shasta, desestabilizando a ontologia alimentar que informa as ações deste explorador humano, nomeadamente a dinâmica de presa e predador. Para este homem, pensar no Outro como um objeto de consumo, que possa saciar a sua fome, é entendido como natural. E é esta atitude especista — a arrogância de uma espécie que se atribui o direito de explorar, escra- vizar e matar as outras espécies, por si consideradas inferiores — que continua a estar na base de uma crise ecológica que ameaça hoje a própria existência da espécie humana enquanto tal.