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Prolegómenos Acerca da Santidade Menor Amorosa — da Santidade Passional como Maior e Menor

2.º CAPÍTULO

Considerações sobre a santidade maior ou cabala gastrosófica

Sendo o prazer mais generalizado o da gulodice ou mesmo o da alimentação tomada como uma necessidade, e sendo este prazer a primeira e a última alegria do homem, aquela que lhe assiste desde o nascimento até à sua última hora, não é surpreendente que todos os séculos tenham feito pouco da gulodice e que os povos infelizes só a tenham considerado uma distração para o mal- -estar e não uma via para a sabedoria.

Para desculpar tanto quanto é possível este erro comum, distingamos a gulodice em material e política: a material não passa do exercício bruto do 4.º sentido, chamado de gosto; não se verifica que os antigos se tenham elevado mais acima nem que tenham tido alguma ideia da gulodice ou gastrosofia política dividida em três ramos, a saber:

Os fragmentos de textos aqui apresentados de Le Nouveau Monde Amoureux, obra de Fourier que ficou inédita até ser publicada em 1968, dão conta do lugar que a gastrosofia (literalmente a “sabedoria do estômago”) ocuparia nesse novo mundo constituinte do estádio da Harmonia. Tal como a gratificação livre e comunitariamente regulamentada do apetite sexual surge utopica- mente representada por Fourier como uma condição necessária à realização da felicidade, assim a satisfação preceituada do apetite alimentar foi por ele concebido apologeticamente como um re- quisito imprescindível à realização da bem-aventurança individual e da concomitante harmonia social. Esta seria alcançada com o adjuvante culto do apetite alimentar e mediante a pedagógica orientação do prazer da gula. No seu estilo prescritivo e normativo, Fourier preconizava que a satisfação associada à ingestão de alimentos fosse administrada em função das características dos oitocentos e dez temperamentos por si estatuídos e inventariados. Sob a designação de gastrosofia, a gula, nos seus diferentes âmbitos e segundo as especiosas categorizações propostas por Fourier, adquiriria assim, tal como se pode inferir da leitura dos fragmentos selecionados, um papel ins- trumental, mas paradoxal para o senso comum, no refinamento escalonado dos sentidos físicos e na santificação da humanidade.

E Se...? Narrativas Especulativas Sobre Alimentação e Sociedade – Uma Antologia Série Alimentopia

Tal é em harmonia a primeira base da sabedoria gastrosófica. Será de regra que um verdadeiro sábio deve ter sempre apetite e no entanto um verdadeiro sábio terá de se sentar à mesa nove vezes por dia para as cinco refeições e quatro intermédias. [...] [U]m intermédio composto por refrescos e tónicos pode não durar mais do que cinco minutos, mas deve ocorrer, e um gastrósofo ortodoxo deve chegar com apetite às cinco refeições e às quatro intermédias.

Todavia, a alimentação e as bebidas, tudo será refinado, variado, abundante. [...] O apetite mantido será portanto uma condição essencial de felicidade entre os harmonianos, para quem o talher será posto nove vezes por dia, embora sem toalha, nas quatro intermédias, que são refei- ções de transição.

O regime das variantes

Como se deve fazer para que numa grande refeição os convidados, já bem refeitos no decorrer de três pratos, acepipes, 1.º e 2.º, ainda tenham apetite para a sobremesa e comam com prazer os doces, os frutos, queijos, etc. É a sobremesa compor-se de iguarias que, como as precedentes, estimulem o palato e auxiliem as funções do estômago. Se à sobremesa fosse servido um cozido acompanhado de batatas a fumegar, ninguém o quereria saborear, e o apetite que a sobremesa traz depois de uma grande refeição prova que as variantes no sistema alimentar atingem a finali- dade, que é a de acelerar a digestão, manter o apetite, fazê-lo renascer sem cessar. [...]

As distrações convenientes à refeição e aos intermédios

[...] Dever-se-á proporcionar aos convidados durante todo o dia e toda a estada os prazeres que lhes poderão conservar o apetite, mesmo os da concupiscência, pois segundo Sanctorius um coito

moderado dilata a alma e ajuda a digestão. Será preciso ao convidar santos para uma refeição de tese proporcionar-lhes belas bailadeiras, que se faltassem fariam que um santo que viesse a comer sem apetite pudesse [...] dizer que se tivesse tido antes de jantar uma mulher a seu gosto, este exercício feito moderadamente o teria disposto melhor para a digestão. [...]

Os gastrósofos

[...] [N]a harmonia, sendo toda a função gerada por cabala progressiva, é necessário ou que não exista gastrosofia ou que ela se exerça concedendo como direito as mais altas honras aos seus che- fes, que não podem deixar de ser anciãos, pois se é possível ser-se gastrónomo aos 40 ou 50 anos, uma função de divertimento que apenas exige um gosto mais apurado, o uso da gastrosofia, em que é necessário reunir os três ramos do conhecimento indicados e a prática em todas as partes da agronomia, da medicina e da cozinha, este emprego não pode exercer-se antes dos 80 anos, 1) gastrosofia prática: a preparação ou culinária como gama de temperamento

2) gastrosofia teórica: a digestão acelerada e copiosa ou higiene positiva

3) gastrosofia mista: a direção sobre as duas primeiras e consequentemente o conhecimento dos 810 temperamentos e das proporções de cada produto cozinhado. [...]

A higiene positiva

[...] Era necessário este preâmbulo para distinguir os santos maiores, ou gastrósofos, da classe pa- rasita dos gastrónomos civilizados, que nem mesmo preenchem uma das três condições impostas para atingir a santidade maior.

A cozinha em harmonia

Acerca da primeira das condições (a culinária ou preparação) poder-se-á objetar que os santos da harmonia serão, portanto, cozinheiros e cozinheiras, visto que a cozinha é, de entre todas as artes, a mais reverenciada na harmonia; é o eixo de todo o trabalho agrícola e o salão principal da educação. Cada harmoniano é a bem dizer um cozinheiro. Cada um deles tem a pretensão de se exceder na confeção de qualquer variedade de uma iguaria e intervém no trabalho das cozinhas no dia em que esta iguaria se torna tema de tese e de festa; [...] Assim, a cozinha nesta nova ordem é a ciência de toda a gente; [...].

Refeição de tese em harmonia

[...] [M]uitos civilizados, sobretudo em Paris, preparam o ventre para 24 horas, fazendo uma úni- ca refeição, na qual comem para vários dias, esgotando o estômago e sendo obrigados a aguen- tar-se à força de café, chá, licores, etc. Isto seria totalmente ridículo em harmonia, onde os ver- dadeiros sábios são aqueles que ao comerem bem distribuem a alimentação diária de tal maneira que voltam a ter apetite pouco tempo depois e chegam às suas cinco refeições com boa disposição à custa dos refrescos ou tónicos tomados nos quatro intervalos. […]

Da política aplicada ao apetite

[…] É a quantidade ou a qualidade o que constitui a boa alimentação? Não há dúvida de que é a qualidade. [...] A excelência das iguarias e dos vinhos deve ter como finalidade apressar a digestão e acelerar o desejo da refeição seguinte, mais do que o atrasar […].

Isto para as iguarias de uso generalizado, como os ovos, que podem aplicar-se a todos os tempe- ramentos. Não se encontrará indivíduo que de boa saúde não possa comer ovos, salvo a espécie de preparação: os Parisienses admitem 42; os harmonianos poderão levar a variedade a 104 e fazer do ovo uma iguaria de 4.ª potência, que se poderá adaptar a cada um dos 810 temperamentos ao fazer sobre os 404 métodos a diferença do maior para o menor, para 415 como maior e 395 como menor.

Seguem-se os alimentos especiais, que apenas são propostos para uma determinada série de temperamentos, como os cogumelos, uma substância muito prejudicial para bastante gente; só convém, portanto, a alguns. Caberá ao corpo gastronómico determinar quais dos 810 tempera- mentos podem alimentar-se com êxito de cogumelos e fixar numa doutrina satisfatória os vários condimentos que tornarão o cogumelo comestível para cada uma das pessoas a quem possa con- vir no sistema geral. […]

Não existirá, pois, nada de arbitrário nas cozinhas da harmonia, e não obstante a imensa va- riedade de iguarias e preparações, tudo ali estará submetido a autoridades cujo apoio constituirá a ortodoxia de uma iguaria, nos seus vários cambiantes e preparativos com que será assistida. [...] Depois destas noções é possível classificar os titulares de ortodoxia gastrosófica em três ramos [...]. 1.º Os santos oráculos ou teóricos, peritos em apreciar variedades de iguarias que devem ser consumidas por cada temperamento em qualquer fase ou conjuntura;

2.º Os santos doceiros ou cozinheiros práticos, hábeis em confecionar as iguarias em estrita conformidade com os cânones dos concílios;

3.º Os santos eruditos ou críticos mistos, peritos consultores para ambas as funções. […] que não é velhice mas o início do Outono numa ordem social onde todo o homem bem consti-

tuído pode aspirar a atingir os 144 anos mais os quatro de iniciativa ou de infância, que não são contados em harmonia. [...] Não existe na ordem atual inquietação mais generalizada [...] do que a de prover à subsistência do povo, que mesmo nos anos mais férteis é ainda presa da mendicidade. Em harmonia ter-se-á uma inquietação contrária, a de escapar ao flagelo periódico do supérfluo […]. Não haverá discussões sobre as cartas, os orçamentos, as conquistas, os monopólios; apenas sobre dois pontos principais: a indústria e os prazeres. E como é evidente que a indústria deve ter prioridade sobre os prazeres, tanto mais que todo o trabalho se tornará prazer, [...] atingir-se-á esta finalidade por meio de um apuramento higiénico próprio para dar aos estômagos a atividade que se vê em certos comilões civilizados cuja notável voracidade como fenómeno será um habi- tual apetite entre os harmonianos. […]

Quanto mais esta ciência é inútil e desconhecida nas nossas sociedades indigentes, mais se deverá sentir que ela terá o primeiro lugar numa ordem social onde não haverá outras calami- dades a temer a não ser o supérfluo de subsistência que proporcionará a perfeição industrial das séries. É necessário partir deste dado para conceber a necessidade que se terá dos gastrósofos ou

higienistas positivos, trabalhando para organizarem a voracidade geral, e gente tão necessária em harmonia como hoje o seriam os higienistas negativos [...] que são os únicos úteis na nossa civiliza- ção perfectível, na qual o povo se vê muitas vezes reduzido a viver de urtigas e de água [...] como sinal do progresso da perfetibilidade.

Da ortodoxia gastrosófica

[...] O diploma de santidade maior é concedido àqueles que dão prova de ortodoxia num ou em vários dos três ramos de ciência [...]. Ei-los:

1.ª TEORIA – a higiene positiva ou arte das digestões copiosas e rápidas segundo as decisões especiais dos concílios.

2.ª PRÁTICA – a preparação culinária adaptada a cada tecla dos 810 temperamentos do teclado geral.

3.ª MISTA – a crítica ou função consultiva semipartida nas duas precedentes.

1.ª TEORIA. Como em harmonia é necessário trabalhar com 810 temperamentos, [...] [os san- tos mais experientes] estão encarregados de determinar o condimento potencial de cada iguaria segundo os graus.

Por exemplo, se uma iguaria é apenas suscetível de poucas variedades, determinar-se-ão os temperos em 1.ª potência para doze variedades e um foco, adaptados aos doze temperamentos de 1.ª potência.

Quando a iguaria pode comportar mais variedades, determina-se o condimento adaptado à 2.ª potência, que distingue 32 temperamentos e os focos.

E Se...? Narrativas Especulativas Sobre Alimentação e Sociedade – Uma Antologia

O Último Homem(1826)

[The Last Man]

Mary Shelley

(1797-1851)

Reconhecida mundialmente como a autora do consagrado romance gótico – e obra basilar da ficção científica – Frankenstein: ou O Moderno Prometeu (1818), Mary Shelley escreveu também diversos con- tos, ensaios, artigos biográficos, romances históricos e obras identificadas com a literatura de via- gens. Por mérito próprio, ganhou reputação no mundo das Letras, tanto como escritora como editora, para além de ser recordada como mulher do famoso poeta romântico Percy Bysshe Shelley e filha de William Godwin, o destacado escritor e filósofo radical, e da pioneira escritora feminista Mary Wollstonecraft. O romance apocalíptico O Último Homem transmite a descrença no paradigma ilu- minista de progresso, apresentando uma conceção pessimista quanto ao contributo individual numa sociedade atingida por uma calamidade natural, simbólica de outras calamidades de origem humana. É uma obra precursora sobre o extermínio da Humanidade, que não só apresenta um apocalipse de origem secular, mas também questiona a crença romântica na mudança por via da revolução política.

Trata-se de uma narrativa escrita na primeira pessoa e cujo enredo evoca acontecimentos que se de- senrolam entre 2073 e 2100. Na introdução, a autora começa por conferir um cunho verosímil à sua obra, afirmando ter descoberto, em 1818, na caverna de Sibila, perto de Nápoles, uns textos que registavam profecias antigas. Como tal, desenvolve uma estratégia frequentemente utilizada na ficção especulativa, ao utilizar um narrador do tempo coevo – a própria escritora – que estabelece contacto com o futuro por via do relato apresentado por um outro narrador autodiegético, que toma conta da narrativa. A ação centra-se no percurso de um grupo de amigos, evocando na mente dos leitores as tragédias reais que ro- dearam o círculo de amizades da autora, visto que Lionel Verney, o único sobrevivente humano, tem sido considerado um retrato autobiográfico de Mary Shelley, ao passo que Lord Raymond e Adrian, conde de Windsor, terão sido inspirados em Lord Byron e em Percy Shelley, respetivamente. A peste constitui, deste modo, uma metáfora da perda, tanto de seres queridos como de ideais políticos revolucionários.

Se, em Frankenstein, a Criatura adota uma alimentação vegetariana como forma de purificação e redenção, em O Último Homem Mary Shelley põe em causa a própria subsistência da espécie humana. No contexto da ficção especulativa e distópica em torno de um futuro no qual o mundo é assolado pela peste, a dramática busca de alimentos, pautada pela fome e pela sede, conforme ilustrado nos excertos selecionados, ganha destaque no cenário de morte e de solidão que rodeia o último homem.

CAPÍTULO XXX

[...] Comi como um animal selvagem que só se apodera de comida quando assaltado por uma fome intolerável. Não mudei de roupa nem procurei o abrigo de um teto durante todos aqueles dias. [...] A lua minguante, que acabava de nascer, mostrou-me uma casinha, cuja entrada e jardim muito bem arranjados me recordaram a minha Inglaterra natal. Levantei a aldraba da porta e entrei. A primeira coisa a apresentar-se foi uma cozinha, onde, guiado pelos raios do luar, con- segui encontrar materiais para acender uma luz. Lá dentro havia um quarto: a cama estava feita com lençóis de uma brancura de neve; a lenha estava disposta no fogão e uns atavios, como para uma refeição, quase me iludiram na doce crença de ter encontrado aqui o que há tanto tempo procurava – algum sobrevivente, um companheiro para a minha solidão, uma consolação para o meu desespero. [...] Escuros e silenciosos eram como sepulcros; por isso regressei ao primei- ro aposento perguntando a mim mesmo que hospedeiro invisível tinha preparado os materiais necessários ao meu repasto e ao meu repouso. Puxei uma cadeira para junto da mesa e examinei quais as viandas que me eram dadas a partilhar. A realidade mostrou-me um festim de morte. O pão tinha bolor e mofo; o queijo era um monte de pó. Não me atrevi a examinar os outros pratos; um exército de formigas atravessava em dupla fila a toalha de mesa; cada utensílio estava coberto de pó, de teias de aranha e de miríades de moscas mortas: cada um destes objetos e todos eles atestavam quão falaciosas eram as minhas expetativas. Os meus olhos encheram-se de lágrimas; esta era certamente a flagrante ostentação do poder do destruidor. […]

Tradução de Luísa Feijó. Revisão da tradução de Iolanda Ramos.

CAPÍTULO XIX

[…] A peste veio e morreram os habitantes da sua aldeia. [...] Ela vagueava de noite à procura de comida e voltava para casa, contente por não ter encontrado ninguém, porque não corria o risco de apanhar a peste. À medida que a terra ia ficando mais desolada, a dificuldade em conseguir sustento aumentava; no princípio, o filho, que morava perto, para lhe agradar deixava peças de comida no caminho que ela fazia; mas acabou por morrer. Contudo, mesmo ameaçada pela fome, o medo que ela sentia da peste a tudo se sobrepunha; e o seu maior cuidado era evitar as criaturas suas semelhantes. Dia a dia, ia ficando mais fraca e, dia a dia, tinha de ir mais longe. Na noite anterior tinha chegado a Datchet; e, procurando por aqui e por ali, tinha encontrado uma padaria aberta e abandonada. Carregada com o seu saque, apressou-se a regressar a casa, mas perdeu-se no caminho. A noite estava serena, sem vento, quente e enevoada; a carga começou a ser-lhe de- masiado pesada e uma a uma foi deitando fora as broas de pão, ainda a tentar continuar caminho, mas, de coxear, passou a arrastar-se e, finalmente, nem mover-se conseguia. […]

CAPÍTULO XXIX

[...] Contudo, mesmo agora, ainda não tinha bebido o amargo veneno até ao fim; não estava ainda convencido da minha perda; ainda não sentia em cada pulsação, em cada nervo, em cada pensamento, que eu era o único que restava da minha raça, que eu era o ÚLTIMO HOMEM. […] Na minha busca, tinha vagueado, afastando-me do sítio onde tinha sido deixado e cheguei a uma daquelas torres de vigia que, de tantos em tantos metros de distância, se alinham na costa italiana, [...] pelo que entrei e subi a escada de caracol até à casa do guarda. Tão longe andava a bondade do destino que não restava um triste vestígio dos seus anteriores habitantes; algumas pranchas pousadas em cima de dois cavaletes de ferro e cobertas de folhas secas de milho eram a cama que se me apresentava; e um baú aberto que continha uns biscoitos meio bolorentos desper- tou o meu apetite que, se calhar, já existia antes, mas do qual, até agora, não me tinha apercebido. Também a sede, violenta e ardente, resultado da água do mar que tinha bebido e da exaustão do meu corpo, me atormentava. A natureza bondosa tinha conferido àqueles bens necessários sensações tão agradáveis que eu – até mesmo eu! – me senti refrescado e calmo ao comer aqueles tristes alimentos e ao beber o vinho azedo contido numa meia garrafa para ali esquecida, naquela morada abandonada. […]

E Se...? Narrativas Especulativas Sobre Alimentação e Sociedade – Uma Antologia