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[“Nor Costum Stale”]

Joanna Russ

(1937-2011)

Escritora premiada, académica, ensaísta e crítica literária, Joanna Russ é uma das vozes que re- volucionou a ficção científica norte-americana nos anos 60 e 70, juntamente com autoras como Marge Piercy, Ursula Le Guin e Alice Sheldon (pseudónimo de James Tiptree, Jr.). Como escreve Russ num ensaio publicado em 1970 e intitulado “The Image of Women in Science Fiction” [A Imagem das Mulheres na Ficção Científica], “[a] Ficção Científica é literatura E Se e, portanto, é o modo literário perfeito para explorar (e fazer explodir) os nossos pressupostos sobre os valores ‘inatos’ e os modos de organização social ‘naturais’, em suma sobre a Natureza Humana, Que Nunca Muda”. Com uma perspetiva informada pela teoria feminista da Segunda Vaga, o estudo de Russ sobre a natureza humana desenvolveu-se em obras como Picnic on Paradise [Piquenique no Paraíso] (1968), protagonizada por Alyx, uma viajante no tempo que surge em várias histórias de Russ (mais tarde compiladas em The Adventures of Alyx [As Aventuras de Alix] [1983]), ou The

Female Man [O Homem Fêmea], o seu romance mais conhecido. Publicado em 1975 e escrito a partir do conto “When It Changed” [“Quando As Coisas Mudaram”], pelo qual a escritora norte-ame- ricana havia recebido o Prémio Nebula para Melhor Conto alguns anos antes, The Female Man apresenta o planeta Whileaway, habitado apenas por mulheres, como uma alternativa utópica aos problemas vividos na Terra.

As preocupações de Joanna Russ com questões ligadas à diferença sexual permeiam toda a sua obra, incluindo a sua atividade como ensaísta e crítica literária. Russ não só se debruçou sobre os obstáculos que muitas escritoras tinham de enfrentar num campo literário ainda muito do- minado por códigos masculinos — razão pela qual publicou o seu emblemático How to Suppress

Women’s Writing [Como Suprimir a Escrita das Mulheres] (1983) —, como procurou também dar visibilidade crítica à ficção científica escrita por mulheres, integrando-as na tradição. Os seus ensaios e recensões, que lhe valeram um Pilgrim Award em 1975, estão hoje compilados em di- versos volumes, como To Write Like a Woman [Escrever Como Uma Mulher] (1995) e The Country

You Have Never Seen [O País Que Nunca Viram] (2007).

A ficção curta de Joanna Russ — distinguida várias vezes pelos Prémios Hugo, Nebula e Locus, entre outros — está compilada em livros como The Zanzibar Cat [O Gato de Zanzibar] (1983),

E Se...? Narrativas Especulativas Sobre Alimentação e Sociedade – Uma Antologia Série Alimentopia

Tinham descoberto a imortalidade. Ah, não para todos, nada disso; as Casas é que eram imortais. A Casa de Harry e Freda estivera na família durante quinze gerações. Claro que, nessa altura, quinze gerações significavam muito mais do que quinze gerações há dez ou doze séculos, pois as Casas, com a sua atmosfera protetora e a sua monotonia reconfortante, prolongavam a vida das pessoas por muitos e bons anos. Orgulhavam-se da sua Casa, pois, como a Companhia costu- mava dizer (depois de provar a Harry e a Freda que a Casa estava em perfeito estado), “as nossas Casas duram, não uma vida inteira, mas para sempre”.

A Casa era bonita e semiesférica e ficava situada numa pequena colina a uns cinco ou seis quilómetros da estrada. Nos dias bons, Freda passeava pela colina e via os carros a passarem velozmente, mas, de modo geral, preferia olhar para a imagem artificial (da mesma coisa), já que a Casa a mostrava na janela artificial. [...] A Casa era perfeita. Dava-lhes Ar (pois todas as janelas estavam vedadas), dava-lhes Energia, e permitia-lhes escolher qualquer prato delicioso que quisessem e, depois, mandava a sua voz elétrica telefonar e telefonar à cidade mais próxima para que o trouxessem até eles. Ou se preferissem Comida para cozinhar ela também fazia isso, a partir da pedra debaixo do seu próprio alicerce. Pois ali, a quilómetros de profundidade, residia a fonte de energia da Casa, um núcleo violento, incandescente e perigoso de que ninguém poderia jamais aproximar-se. Esse núcleo sustentava tudo e mastigava pedra para fazer Ar e Comida, e fornecia energia ao Carro de Harry, que estava agregado à Casa no subsolo, num pequeno anexo construído a partir da parede lateral da Casa. [...]

Foi na noite a seguir à festa de aposentação de Harry que algo começou a correr mal. [...] — Harold — disse ela, — há algo errado com a Casa. [...] — Foram para a sala de estar e, ali, como Freda tinha dito, ali, no Painel instalado na parede, ali, no Painel que controlava tudo na Casa, havia uma luz vermelha a brilhar continuamente, como um olho de rubi.

— Passa-se mesmo qualquer coisa — insistiu Freda. Harry foi buscar o Manual da Casa e apro- ximou-o do olho, mas o olho não desapareceu. Abriu o manual e folheou-o.

— Transporte III — disse ele — Nada de grave. (Freda fez “Ah!”, com alívio). Nada de grave. Qualquer luz vermelha no vosso Painel indica que há uma pequena fuga na linha de Combustí- vel. Não ligue ou utilize o seu carro. Isto é muito importante. Uma fuga pequena pode aumentar com o uso dessa parte da Casa até se tornar uma fuga grande, indicada por uma luz verde. Fugas grandes podem ser extremamente graves. [...]

— Querida — tranquilizou-a Harry — não é grave. — Mas Harry…

— Imagina que são umas férias, querida. Não é de todo grave desde que não utilizemos o Carro. Estas coisas levam o seu tempo e agora que estou aposentado podemos encarar a situação como fazendo parte das nossas férias. De qualquer forma (e Harry parecia todo cheio de si), qua- se que me sinto contente por isto ter acontecido. Adoraria mostrar ao velho Wilberforce quão jovem podes ficar quando não perdes a cabeça e andas a mudar tudo de lugar! Tratemos cada dia como se fosse um dia normal e vais ver como o tempo voa!

Assim, Harry e Freda fizeram férias. Viam televisão, a Casa fazia-lhes chegar todas as novas publicações através dos seus tubos de correio e, pela primeira vez, Freda fez a Casa dar-lhe Ali- Escondido da Lua] (1987). É nesta última coletânea que se encontra a história aqui antologiada:

“Nor Costum Stale” foi o primeiro conto que a autora publicou, quando era ainda estudante na Yale School of Drama, em 1959, tendo sido dado à estampa no número de setembro da popular

Magazine of Fantasy and Science Fiction. O título é retirado de um conhecido passo da peça de William Shakespeare Anthony and Cleopatra [António e Cleópatra], descrevendo os encantos da rainha egípcia: “Age cannot wither her, nor custom stale / Her infinite variety” [Não a consome o tempo, nem o uso perturba / a sua infinita variedade] (Shakespeare 2.2: 242-3). Na história de Russ, esta descrição refere-se a uma casa “inteligente” que providencia tudo aos seus habitantes. Não há nada — nem o tempo nem o uso — que possa diminuir a sua infinita capacidade de tomar conta daqueles que a habitam: é uma casa imortal, que está há mais de quinze gerações na família de Harry e Freda, o casal de protagonistas.

A casa consiste num ambiente artificial totalmente controlado e isolado do exterior, como é típico das fantasias utópicas tecnológicas. Providencia o ar, a energia e a comida, através de um sistema central de informação — um painel — que coordena a segurança, a manutenção, o dis- pêndio de energia, e outras funcionalidades domésticas. Um dia uma luz vermelha aparece no painel, seguida de uma outra luz vermelha, e de outra, e de outra, o que faz com que Harry e Fre- da tenham progressivamente de abdicar da maioria das comodidades tecnológicas oferecidas pela casa: perdem o carro, as revistas e os jornais deixam de ser entregues, o calendário eletrónico fica parado no dia 17 de março,as imagens deixam de ser transmitidas, o telefone deixa de funcionar e ambos ficam cada vez mais isolados do mundo exterior. As refeições prontas a servir não po- dem ser mais encomendadas, por isso Harry e Freda têm de comer comida cozinhada em casa: a casa providencia todos os alimentos, Freda cozinha e a casa arruma tudo depois das refeições. Com o passar do tempo, Harry e Freda ficam cada vez mais desligados do mundo, vivendo numa monotonia circular, marcada pelas refeições: pequeno-almoço, almoço, jantar, pequeno-almoço, almoço, jantar… Quando a catástrofe surge, nenhum dos dois está preparado para a enfrentar.

Antecipando o que hoje chamaríamos as casas inteligentes com a Internet das Coisas, as repre- sentações da comida feitas por Russ em “Nem o uso perturba” alicerçam uma crítica incisiva ao mundo da automatização e à dependência dos humanos relativamente à tecnologia, empurrando- -os para o isolamento, o tédio e a destruição.

Freda apenas teve tempo para dizer: “Oh, Harry!”, e ele: “Freda, o que…” quando a Casa deu um pequeno e tímido abanão, seguindo-se-lhe outro, estilhaçando-se a seguir numa centena — não, num milhão — de muitos, muitos mais átomos, átomos que arremessavam para o ar a neve etérea criando uma enorme onda insuflada. A cozinha fresca do meio-dia, a sala de estar aconchegante, a conduta de Comida Verdadeira, o tapete auto-renovável, as janelas vedadas — tudo aquilo num tremendo turbilhão pelo ar. [...]

A Casa quase durara para sempre… as coisas são como são.

Tradução de Carla Morais Pires. Revisão de Marinela Freitas.

mentos Verdadeiros. Alimentos que ela própria podia cozinhar, em vez de encomendar refeições de um local distante. A Casa confecionou ela própria Comida Verdadeira, desfazendo as pedras em que assentava e transformando-as no que quer que lhe fosse pedido. Foi um dia muito feliz. Freda telefonou a alguns amigos e disse-lhes que ela e Harry estavam de férias e que não os visi- tassem nesse inverno, porque… bem… era uma espécie de experiência.

Na manhã seguinte, um outro olho vermelho surgira no Painel. [...]

Foi apenas umas semanas mais tarde (ou terão sido meses?) que um quarto olho se juntou ao terceiro — os jornais e as revistas deixaram de aparecer e não podiam ver filmes. Mas como Har- ry salientou, a Casa parecia estar a gerir sabiamente as suas capacidades de recuperação (porque as Casas de facto reparam-se a si próprias, até certo ponto), mantendo a sua função principal em forma. Freda não podia pedir refeições prontas a servir, mas será que o desejava? Não, não, não, diria ele (abanando a cabeça), podiam ver filmes gravados em vez de transmitidos, podiam comer Comida Verdadeira durante algum tempo; não lhes faria mal.

De manhã, Freda levantava-se exatamente às 08h30 segundo o relógio elétrico e preparava um pequeno-almoço que consistia em ovos mexidos e bacon verdadeiro. Às 09h30 acordava Harry e tomavam o pequeno-almoço juntos. Enquanto a Casa lavava a louça e fazia as camas, faziam (separadamente) as palavras cruzadas da manhã e, a seguir, liam um livro até à hora de almoço. Ao almoço tinham sempre a mesma ementa e ao jantar também (depois de terminarem os seus livros). E depois do jantar assistiam a um programa de filmes gravados. Mais tarde, à meia-noite em ponto, iam deitar-se. Na manhã seguinte, Freda levantava-se exatamente às 08h30, e na ma- nhã do dia a seguir levantava-se exatamente às 08h30, e depois na manhã seguinte…

[...]

— Oh!, francamente, encravou! — queixou-se Freda, pois a imagem parara subitamente, está- tica como uma fotografia. Valha-me Deus!, valha-me Deus!, pensou, assustada, afinal de contas tratava-se de uma imagem artificial. [...] Freda ligou o interruptor que aclarava a janela, fazendo com que ficasse transparente. Ao fazê-lo, as folhas nas árvores, as árvores, os Carros, a estrada, tudo estremeceu, esbateu-se, começou a derreter e a escorrer como água. [...] A janela aclarou. Freda começou a tremer.

Deu por si a olhar para uma parede de neve. Perpendicular, reta como aço, erguia-se acima da casa e, muito mais acima ainda, para além do topo da janela, havia estrelas num céu noturno. O céu estava tão escuro e as estrelas tão brilhantes que perpassaram os olhos de Freda e a fizeram desviar o olhar novamente para a parede de neve. [...]

Harry saiu do quarto a bocejar como era seu costume sempre que saía do quarto de manhã e, quando olhou em frente e viu, Freda voltou-se. O painel próximo da janela fulgia com os seus cinco olhos de rubi. Cinco? Não, seis. Doze. Vinte. Depois mais e mais até o painel inteiro se tingir de vermelho como um cacho de cerejas. [...]

— Oh, Harry! O que havemos de fazer? — perguntou, mas não havia uma necessidade especial de responder; as cerejas perderam o brilho, escureceram e a seguir ficaram verdes, verdes como folhas de faia, verdes como a nova folhagem nas sebes.

E Se...? Narrativas Especulativas Sobre Alimentação e Sociedade – Uma Antologia

“O Alimento dos Deuses” (1964)

[“The Food of the Gods”]

Arthur C. Clarke

(1917-2008)

Sir Arthur C. Clarke é um dos nomes de referência no campo da ficção científica, sendo frequen- temente referido como o “Profeta da Era Espacial” ou, nas palavras do explorador francês Jean- -Michel Costeau, “o Jules Verne do espaço”. A sua obra mais conhecida é o argumento que escre- veu com Stanley Kubrick para 2001: A Space Odyssey [2001: Uma Odisseia no Espaço] (1968) — depois transformado em romance, com o mesmo nome — e pelo qual ambos foram nomeados para um Oscar para Melhor Argumento. O filme é baseado no conto “The Sentinel”, publicado por Clarke em 1951, no qual se explora o salto tecnológico e intelectual tornado possível pela descoberta de um artefacto alienígena. Nos anos seguintes, Clarke continuará a série Space Odyssey, publi- cando as sequelas 2010: Odyssey Two (publicada em 1982 e adaptada ao cinema por Peter Hyams dois anos mais tarde), 2061: Odyssey Three (1987) e 3001: The Final Odyssey (1997). A carreira deste prolífico escritor britânico começara, porém, alguns anos antes. Os primeiros contos publicados por Clarke datam dos anos 40, numa altura em que era ainda estudante de Física e Matemática no King’s College, em Londres. Com livros como Childhood’s End (1953) e contos como “The Star” (1956), que lhe valeu o seu primeiro Hugo, Clarke depressa atinge a notoriedade, publicando nos anos seguintes vários outros romances, coletâneas de contos e novelas. A partir da década de cinquenta, Arthur C. Clarke passa a ser considerado um dos “Três Grandes” (“the Big Three”) autores de ficção científica do seu tempo, juntamente com os escritores norte-americanos Robert A. Heinlein e Isaac Asimov, como este último recorda em I, Asimov: A Memoir (1994).

Para além do seu trabalho literário, Clarke distinguiu-se também como divulgador de ciência, através não só da sua escrita não-ficcional (em livros como The Exploration of Space, de 1951, ou

The Coast of Coral, de 1955), mas também dos seus programas transmitidos na televisão britânica nos anos 80: Arthur C. Clarke’s Mysterious World e Arthur C. Clarke’s World of Strange Powers, na ITV, e Arthur C. Clarke’s Mysterious Universe, no Discovery Channel. Da extensíssima lista de prémios que o autor recebeu como escritor — para além daqueles atribuídos hoje com o seu nome — destaque-se, ainda, em 1961, o Prémio Kalinga, conferido pela UNESCO em reconhecimento do seu contributo para a popularização da Ciência; em 1994, a sua nomeação para o Prémio Nobel da Paz; e, em 1998, e sua condecoração de Cavaleiro do Império Britânico pela Rainha pelo seu contributo para as Letras inglesas. Para além disso, Arthur C. Clarke tem o seu nome associado

É justo avisá-lo, Sr. Presidente, que grande parte do meu depoimento será muitíssimo nauseante; envolve aspetos da natureza humana que, raras vezes, são discutidos em público e muito menos diante de um comité do Congresso. Mas receio bem que tenham de ser enfrentados; há alturas na vida em que o véu da hipocrisia tem de ser arrancado e esta é uma delas.

Senhores, descendemos de uma longa linhagem de carnívoros. Pelas vossas expressões vejo que a maior parte de vós não reconhece o termo. Bem, não é de espantar, pois vem de uma lin- guagem que está obsoleta há dois mil anos. Talvez seja melhor evitar eufemismos e ser brutal- mente franco, ainda que tenha de usar palavras nunca ouvidas na sociedade instruída. Peço desde já desculpa a quem possa ter ofendido.

Até há alguns séculos, o alimento favorito de quase todos os homens era carne — a carne de animais que um dia tiveram vida. Não estou a tentar revolver-vos o estômago; é a mera enuncia- ção de um facto que podem facilmente verificar em qualquer livro de História…

Mas, sem dúvida, Sr. Presidente, estou preparado para esperar que o Senador Irving se sinta melhor. Nós, profissionais, por vezes esquecemos a forma como os leigos podem reagir a decla- rações como a que acabo de fazer. Ao mesmo tempo, devo avisar o comité de que o pior está para vir. Senhores, se algum dos presentes for até certo ponto suscetível, sugiro que sigam o Senador antes que seja demasiadamente tarde.

Bem, se puder então continuar… [...] Felizmente para todos nós, os bioquímicos resolveram o problema; como devem saber, a resposta foi um dos inúmeros subprodutos da investigação espa- cial. Todos os alimentos — de origem animal ou vegetal — são constituídos a partir de muito pou- cos elementos comuns. Carbono, hidrogénio, oxigénio, nitrogénio, vestígios de enxofre e fósforo. Esta meia dúzia de elementos, e alguns outros, combinam-se numa variedade de formas, quase infinita, de criar todos os alimentos que o homem algum dia comeu ou comerá. Confrontados com o problema de colonizar a Lua e os planetas, os bioquímicos do século XXI descobriram como sintetizar qualquer comida desejável a partir de matérias-primas básicas como água, ar e rocha. Essa foi a maior, e talvez a mais importante, conquista na história da Ciência. Mas não devemos sentir demasiado orgulho disso. O reino vegetal fê-lo primeiro do que nós, há milhões e milhões de anos.

Os químicos sabiam agora sintetizar qualquer comida imaginável, quer tivesse contrapartidas na natureza ou não. Escusado será dizer que houve erros — desastres até. Impérios industriais cresceram e colapsaram; a mudança da agricultura e da criação de animais para as gigantescas fábricas e omniverters de processamento automático revelou-se, não raras vezes, dolorosa. O pe- rigo da fome foi banido para sempre e temos hoje uma riqueza e variedade de alimentos que era alguma conheceu. [...]

E, todavia, é impossível cortar por completo com o passado. Como já observei, somos carní- voros; herdámos gostos e apetites que foram sendo adquiridos ao longo de mais de um milhão de anos. Gostemos ou não, há uns anos os nossos bisavós deleitavam-se com a carne de vacas e de ovelhas e de porcos, pelo menos sempre que a conseguiam arranjar. E ainda hoje nos deleitamos…

[...] Sim, Sr. Presidente, eu estou a chegar ao cerne da questão; tudo isto é altamente relevante, ainda que seja desagradável. Não estou a tentar estragar-lhe o apetite; estou apenas a preparar o a uma espécie de dinossauro Ceratopsiano, a um asteroide e a uma cratera em Caronte, uma das

cinco luas de Plutão (juntamente com Kubrick, Octavia Butler, e outros).

Nos anos 50, Arthur C. Clarke muda-se para o Sri Lanka (na altura, Ceilão), onde ficará até ao final da sua vida. É aí que escreve o conto aqui selecionado, publicado, pela primeira vez, em 1964, na edição de maio da revista Playboy, e mais tarde incluído na coletânea The Wind from

the Sun (1972). O título “The Food of the Gods” [“O Alimento dos Deuses”] é não só uma home- nagem a Wells (Clarke foi vice-presidente da H.G. Wells Society), mas também uma referência ao alimento mais famoso da mitologia grega — a ambrósia. Em “O Alimento dos Deuses” este é, precisamente, o pomo da discórdia: a produção de um novo alimento chamado “Ambrosia Plus” [Ambrósia Mais]. O conto começa com o narrador, diretor de uma empresa de bens alimentares, a dirigir-se ao Congresso exigindo a imposição de sanções a este novo produto comercializado pela “Triplanetary Foods” [Sociedade Alimentar Triplanetária]. Neste futuro distante, o setor primário da agricultura, da pecuária e da pesca já não existem, pois toda a comida é sintetizada, por empresas, a partir do ar, da água e da rocha. Os alimentos conservam os mesmos sabores — todos eles guardados enciclopedicamente por estas empresas produtoras de bens alimentícios artificiais —, mas os humanos sentem já uma certa repulsa moral em usar a palavra “carne” por aludir a práticas carnívoras há muito ultrapassadas e consideradas pouco éticas. O problema sur- ge quando a empresa Triplanetary Foods desenvolve uma carne inovadora, de sabor incompará- vel — a “Ambrosia Plus” — e que domina completamente o mercado. Incapazes de duplicar esta carne, os bioquímicos da empresa gerida pelo narrador conseguem, no entanto, descobrir a sua composição, desvendando o segredo. Perante o comité do congresso, o narrador invoca questões morais e filosóficas para retirar este alimento do mercado, revelando, para o efeito, o animal cuja carne é simulada pelo “Ambrosia Plus”…

E Se...? Narrativas Especulativas Sobre Alimentação e Sociedade – Uma Antologia Série Alimentopia

Os Despojados (1974)

[The Dispossessed] Ursula K. Le Guin (1929-2018)

A escritora norte-americana Ursula K. Le Guin é autora de uma vasta obra literária que, pela sua diversidade e originalidade, desafia categorização. Criadora de mundos, seres, linguagens e sentidos outros, Le Guin deixou um legado de histórias que se distinguem pela imaginação, pela