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Nova Holanda (1841)

Vasco José de Aguiar

(?-1855)

As peripécias que compõem esta viagem à Austrália profunda são relatadas por um português que, na companhia do capitão (inglês) do navio em que embarca, empreende a exploração daquela grande ilha, deparando-se com um conjunto de povos imaginários, e sobretudo com uma civi- lização admirável que habita o Vale da Razão, protegido por uma altíssima cordilheira, barreira que os exploradores transpõem por meio de um balão aerostático. Ao longo da obra, a opulência do Vale da Razão contrasta com os outros lugares descobertos, que são ermos; num dos casos, trata-se, mesmo, de um território sujeito à devastação causada por uma serpente gigantesca, que os viajantes europeus se encarregam de aniquilar. É este apenas um dos portentos que o autor semeou ao longo da narrativa, onde encontramos ainda um terrível terramoto e uma tremenda erupção vulcânica.

Viagem ao Interior da Nova Holanda é um romance de aventuras várias, pois, mas, longe de ser obra de puro entretenimento, tem um forte conteúdo moral, que assume a forma de protesto contra os vícios quotidianos e as injustiças da sociedade de partida, a portuguesa, como é carac- terístico das utopias. As opções alternativas encarnam na constituição política do Vale da Razão (uma monarquia constitucional), que é descrita, no funcionamento do sistema judiciário, ao qual é dado assistir aos viajantes, nos entretenimentos públicos, que se conformam à ética e ao bom gosto, etc. Sendo certo, porém, que nem tudo, naqueles lugares do Sul, é digno de encómio. Os povos da Nova Holanda tendem a estremar-se: ora são dignos e virtuosos, uns, ora pérfidos e bestiais, outros. Em diversos momentos, os viajantes europeus figuram como fautores de justiça, graças à retidão indeclinável do seu comandante e ao poder das suas armas de fogo. Todas essas facetas da intriga e do imaginário entram na composição de uma narrativa que bem merece o qualificativo de romance filosófico.

Convivendo com as mais insignes personalidades do Vale da Razão, os visitantes têm a fortu- na de se poderem familiarizar com os costumes e as crenças, os gostos, as maneiras de estar e as instituições dos habitantes; de comparar o avanço dos seus conhecimentos em certas disciplinas científicas e técnicas; de percorrer a capital e as províncias; de assistir às cerimónias políticas e religiosas daquela nação. Verificam que o clima é ameno, a terra fértil, e o povo cortês, ordeiro e piedoso. Pelo contrário, no Vale da Correção, adjacente ao Vale da Razão e reservado aos pros- vizinhos tem outras grandes vantagens, principalmente a da confraternização das massas, e a de

simplificar muito, em prol das mulheres, o trabalho doméstico.

“E como a República só está preocupada com a felicidade dos seus filhos, também não te sur- preenderá que ela leve a ternura e a complacência até ao ponto de lhes dar a possibilidade de fazer, ao domingo, todas as refeições com a família e em casa, de aí jantar com os seus amigos pessoais, e até de ir passar o dia no campo; e, para isso, manda preparar, em todos os restaurantes, pratos frios que são levados às famílias, e coloca à sua disposição outros meios de transporte quando estas querem desfrutar do campo. [...]

“Quererás provavelmente saber como é realizada e executada a DISTRIBUIÇÃO dos alimen- tos: nada é mais simples, mas ouve e surpreende-te!

DISTRIBUIÇÃO DOS ALIMENTOS.

“A República faz aqui o que vemos frequentemente em Paris e Londres, o que os nossos governos fazem por vezes e o que a maioria dos comerciantes faz agora.

“Deves primeiro saber que é a República que manda cultivar ou produzir todos os alimentos, que os recebe e reúne todos, depositando-os nas suas inúmeras e imensas lojas.

“Podes facilmente imaginar caves comuns como as de Paris e de Londres, grandes lojas de fari- nha, pão, carne, peixe, legumes, frutas, etc.

“Cada loja republicana tem, como um dos nossos padeiros ou talhantes, o quadro dos restau- rantes, oficinas, escolas, hospícios e famílias que tem que abastecer, bem como a quantidade que deve enviar a cada um.

“Há também todos os funcionários, todos os utensílios, todos os meios de transporte necessá- rios, e todos esses instrumentos são tão engenhosos uns quanto os outros.

“Estando tudo preparado com antecedência na loja, as grandes provisões para o ano, o mês ou a sema- na, bem como as provisões diárias, são enviadas para todos os lugares, ao domicílio, no quarteirão da loja.

“A distribuição destas provisões tem algo de encantador. Não te falarei da perfeita limpeza que reina em tudo, como uma primeira necessidade; mas o que não deixarei de te dizer é que a loja possui, para cada família, uma cesta, um recipiente, uma medida qualquer com o número da casa da família e contendo a sua provisão de pão, leite, etc.; e até tem todas essas medidas em duplicado, de modo a levar uma cheia e trazer de volta a outra vazia; é que cada casa tem, à entrada, um nicho, colocado previamente para esse efeito, no qual o distribuidor encontra a medida vazia e a substitui pela medida cheia, para que a distribuição, sempre feita à mesma hora, e aliás anunciada por um som específico, ocorra sem perturbar a família e sem desperdiçar o mínimo tempo do distribuidor. “Compreendes agora, meu querido amigo, a economia de tempo e todas as vantagens deste sistema de distribuição em massa.

“Aliás, tudo é perfeito neste país feliz, habitado por homens que merecem finalmente o título de homens, pois, mesmo nas pequenas coisas, fazem sempre um uso útil dessa razão sublime que a Providência lhes deu para a sua felicidade. [...]

CAPÍTULO II

[…] Os povos daquela parte das costas, muito mais espirituosos e afáveis que os outros indígenas daquela vasta região, e até de uma raça diferente que se assemelha à dos peruvianos, são incom- paravelmente mais polidos e atilados. Eles se alimentam em parte de caças secas e frutas, que aquele país produz em abundância. Porém, o que constitui a sua principal comida é uma prodi- giosa quantidade de raízes farinhosas, que depois de secas são reduzidas a farinha, da qual fazem grandes bolos, que, assados no brasido, fornecem àquelas gentes um alimento abundante e sadio.

[...] Meu amo, tendo brindado os seus hóspedes com parte da nossa comida e alguns copos de vinho, de que não desgostaram, os assegurou novamente da nossa amizade […].

CAPÍTULO XV

[...] Uma mesa ricamente guarnecida apresentava tal diversidade de iguarias que dificilmente poderiam contar-se, não sendo possível descrever os desusados feitios dos pratos, terrinas, e de todas as partes que compunham o trem daquela mesa tão aparatosa; ele era quase todo de metais mui polidos e lavrados no gosto mais esquisito. Aquele príncipe, com os dois intérpretes, nos en- sinaram os nomes de muitas peças que ornavam a mesa e os aparadores, estendendo-se tanto esta lição que foi preciso aquecer novamente a maior parte das iguarias. Sua Magnanimidade nos fez sentar à sua direita na cabeceira da mesa, ficando as duas princesas suas irmãs à esquerda. Con- vém prevenir os leitores que, entre aquelas gentes, o lugar da esquerda é o mais distinto, por ser o lado em que reside a entranha mais nobre e mais necessária à vida, o coração, a que eles chamam

a corte do corpo humano. Os dois intérpretes ocupavam o lugar junto a nós, e mais de quatrocentas pessoas, entre homens e senhoras, se acomodaram muito à larga a par daquela espaçosa mesa, que se estendia a quase todo o comprimento da sala. Mais de um cento de serventes vestidos de opas de brocado branco com grandes toalhas aos ombros, além de quarenta trinchantes, que, em lugar de toalhas, traziam sobre o peito grandes chapas do mais fino esmalte de um lindíssimo azul ce- leste, apresentando em aspa uma faca e um garfo em relevo de ouro, se dispuseram em distâncias iguais, cabendo a cada três serventes um trinchante e seguindo nesta ordem os contornos daquela tão dilatada mesa.

Estava quase extinto o crepúsculo da tarde, e tanto eu como meu amo nos admirávamos de não ver disposição para acender algumas luzes de tantas serpentinas que ornavam a soberba mesa e das inumeráveis e riquíssimas placas que saíam daquelas paredes tão luzentes. Eis que o chefe dos trinchantes, que, colocado por detrás do príncipe em uma espécie de púlpito amovível, regia todos, e os serventes, levantou ao ar uma varinha comprida; e, a este sinal, mais de três mil luzes, que se acenderam em um tempo, alumiaram com rapidez elétrica aquele tão magnífico aposento, renovando toda a luz do mais claro dia que findava e apresentando todo o esplendor daquele tão grandioso quadro. Ele fez outro sinal, e logo os seus subalternos começaram a servir a todos os que estavam à mesa de uma espécie de sopa composta, que, talvez pela sua complicação, não achei critos, tudo é triste, bravio e seco, mal garantindo as condições mínimas de subsistência (veja-se

o excerto do capítulo XXVI abaixo).

Funcionário ao serviço do Conselho de Saúde Pública e adepto da causa de D. Pedro IV no contexto das Lutas Liberais, Vasco José de Aguiar foi autor de outra obra de ficção especulativa,

Verdades Sonhadas, publicada em 1844. Composta de várias histórias, e nomeadamente de visões, a obra inclui uma viagem aos corpos celestes no decurso da qual, em Júpiter, o protagonista conhece uma raça de gigantes que encaram com horror a ideia de matar animais para fins ali- mentares, sendo palpáveis as reminiscências de dois textos setecentistas, As Viagens de Gulliver de Swift e Micromégas de Voltaire.

E Se...? Narrativas Especulativas Sobre Alimentação e Sociedade – Uma Antologia Série Alimentopia

[...] Esta terra mui pedregosa e areenta, cuja produção jamais poderia exceder a seis sementes de uma espécie de centeio de que aquelas desgraçadas gentes fazem o seu pão, é cultivada por con- ta da república; todos os habitantes da capital e das aldeias próximas são obrigados alternadamen- te aos trabalhos da cultura e da colheita, todo o produto se deposita e, quando se tem consumido todo o grão existente nos depósitos particulares (o que nos anos mais férteis acontece dentro de sete ou oito meses depois da colheita), se distribui por todos os habitantes daquele triste vale, em relação com o tempo que tarda a colheita futura e com a população do país. Algumas aves bravias e mui poucos animais, cujas carnes secas ao sol são os únicos condutos daquele escasso e desagradável pão, constituem um alimento mui indigesto, pois que a extrema falta de lenha não permite usar destas carnes tão duras e insípidas senão cruas, causando por tal motivo securas que se tornam insuportáveis pela incrível falta de água que se encontra em tão árido país. Os ossos daqueles animais são aproveitados com o maior cuidado a fim de suprirem de algum modo a extrema falta de lenha e poderem fazer-se alguns caldos para os doentes. [...]

Havia dois dias que não comíamos senão bolacha, e, querendo aquecer alguma água para des- fazer a massa de que falámos, nos servimos para este fim de palha de centeio, que aquelas desgra- çadas gentes aproveitam com indizível cuidado para cozerem o seu triste pão, o qual (como fácil é de presumir) sempre sai muito malcozido, com um sabor de fumo que se não pode tolerar, o que, junto à má qualidade do centeio de que é feito, o torna insuportável. […]