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AFONSO ARINOS: O “POLIEDRO HUMANO”

3 AFONSO ARINOS: HISTÓRIA DE VIDA VERSUS HISTÓRIA DO BRASIL

3.1 AFONSO ARINOS: O “POLIEDRO HUMANO”

A expressão poliedro humano foi usada por Nava3 para apresentar Afonso Arinos na obra O Intelectual e o Político: Encontros com Afonso Arinos. Como escrever sobre esse homem dotado de múltiplas facetas? De quem falar? Eis algumas das perguntas que ocorreram a Nava. Suas dúvidas advinham da atuação expressiva de Afonso Arinos, que reuniu o escritor, o professor, o parlamentar, o diplomata, o historiador, o cientista político, o crítico, o cronista, o ensaísta, o memorialista, o poeta e o ministro, dentre tantos outros papéis.

As mesmas questões seriam mais uma vez reforçadas por Nava4, ao escrever uma das notas da obra A Alma do Tempo (1979), que reuniu quatro volumes das memórias produzidas por Afonso Arinos: A Alma do Tempo (1959-1960), que dava nome geral a coletânea, A Escalada

(1961-1964), Planalto (1965-1967) e Alto-mar/Maralto (1968-1976). Nessa nota, o escritor

parecia mais tranquilo diante da tarefa de comentar sobre alguém com uma personalidade tão múltipla. O “espelho poliédrico”, apesar das muitas faces, seria apresentado por ele, que o conhecia desde a infância, quando foram colegas de escola. Concluía que, dessa vez, a apresentação seria fácil, pois “[...] nenhuma face supera porque umas explicam e são função das outras”5. Além disso,

1 NAVA, Pedro. Nota. In: FRANCO, Afonso Arinos de Melo. A alma do tempo: memórias de Afonso Arinos de

Melo Franco. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1979. (Coleção Alma do Tempo). p. XXVIII.

2 CARVALHO, Antônio Gontijo de. Nota. In: FRANCO, Afonso Arinos de Melo. A alma do tempo: memórias

de Afonso Arinos de Melo Franco. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1979. (Coleção Alma do Tempo). p. XXI.

3 NAVA, Pedro. Afonso. In: CAMARGO, Aspásia; MARIANI, Maria Clara; TEIXEIRA, Maria Tereza. O

intelectual e o político: encontros com Afonso Arinos. Brasília: Senado Federal; Dom Quixote; Rio de Janeiro:

CEPDOC/Fundação Getúlio Vargas, 1983. (Série Brasil, Memória Política, v. 2). p. 27-47. p. 27.

4 NAVA, 1979, op. cit.

5 NAVA, Pedro. Nota. In: FRANCO, Afonso Arinos de Melo. A alma do tempo: memórias de Afonso Arinos de

Melo Franco. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1979. (Coleção alma do Tempo). p. XXVIII.

Afonso Arinos saía-se “[...] sempre exemplarmente de cada atribuição que a vida de nosso país coloca nos seus ombros”6.

As observações de Nava são fundamentais para compreendermos o processo de construção de uma imagem de Afonso Arinos cunhada por ele próprio e repetida, ratificada e legitimada pela maioria dos que escreveram sobre ele. Nava apresenta três aspectos que sobressaem, quando analisamos os escritos biográficos e autobiográficos do nosso autor. O primeiro, diz respeito à multiplicidade de funções e papéis exercidos ao longo da sua trajetória; o segundo, a uma harmonização desses papéis; e o terceiro corresponde à confluência desses com a história do país.

Há, na construção da história de vida de Afonso Arinos, uma correlação de situações pessoais desde a sua infância, com episódios que marcaram a história do Brasil, produzindo um amálgama entre sua história pessoal e a do país, numa construção em que o indivíduo não perde sua personalidade, mas sobressai sua face de homem público cujas memórias, como interpretou um dos seus comentadores, eram “[...] revestidas ao mesmo tempo de interesse político e interesse literário, de interesse histórico e interesse humano”7.

Schmidt8, ao analisar algumas das características do trabalho biográfico, destacou, dentre elas, a tendência para a idealização dos protagonistas, em que eventos históricos são explicados com base em seus desejos e qualidades pessoais. Nas observações desse autor, essa característica aplica-se bem aos romances biográficos e às cinebiografias. Um olhar cuidadoso sobre os relatos biográficos e autobiográficos de Afonso Arinos revela que essa é uma característica sempre presente. Neles, todos os aspectos relativos à sua vida pessoal são associados à história do país, de forma que suas memórias são vistas como a própria história do Brasil. Vejamos o que dizem os comentadores da obra A Alma do Tempo:

Seu livro de memórias é, ao mesmo tempo, um retrato interior e de corpo inteiro de uma autêntica flor de civilização e cultura, como a imagem de uma época e de uma galeria de figuras, que sua pena aguda soube gravar em traços indeléveis9.

6 NAVA, Pedro. Nota. In: FRANCO, Afonso Arinos de Melo. A alma do tempo: memórias de Afonso Arinos de

Melo Franco. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1979. (Coleção alma do Tempo). p. XXVIII. p. XXVIII.

7 BARBOSA, Francisco de Assis. Nota. In: FRANCO, Afonso Arinos de Melo. A alma do tempo: memórias de

Afonso Arinos de Melo Franco. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1979. (Coleção Alma do Tempo). p. XXV.

8 SCHMIDT, Benito Bisso. Luz e papel, realidade e imaginação: as biografias na história, no jornalismo, na

literatura e no cinema. In: SCHMIDT, Benito Bisso (Org.). O biográfico: perspectivas interdisciplinares. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2000. p. 49-70. p. 57.

9 LIMA, Alceu Amoroso. Nota. In: FRANCO, Afonso Arinos de Melo. A alma do tempo: memórias de Afonso

Arinos de Melo Franco. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1979. (Coleção Alma do Tempo). p. XVIII.

O livro, todo ele rigoroso no respeito à verdade, com os bastidores da política exibidos à luz meridiana, torna-se, por tudo isso, imprescindível para melhor conhecimento da História do Brasil, da qual, nestes últimos tempos, como autêntico líder das forças democráticas, é ele dos maiores artífices.10

Os fatos são referências para a expressão poética, a sensibilidade artística, a agudeza crítica, a formulação política, a recriação histórica.

Neste livro registram-se emoções nos grandes cenários do Brasil e do mundo.11

Esses aspectos da obra de Afonso Arinos foram avaliados no estudo realizado por Grill12. Esse autor denominou a ampla atuação de Afonso Arinos de multinotabilidades, analisando as bases sociais e os suportes institucionais que as constituíram. Interessou-se pelo amálgama entre notoriedade social e reputação política ativados em estratégias discursivas em fontes biográficas, na produção memorialística do próprio Afonso Arinos, objetivando a atribuição/aquisição de estima social.

Grill13 destaca, no conjunto discursivo sobre Afonso Arinos, seja ele feito por terceiros ou pelo próprio, um aspecto, dentre vários outros, que nos interessa diretamente. Trata-se das estratégias de autoapresentação desse personagem da história política do Brasil, tomando-o, com base em Bourdieu14, como “ideólogo da sua própria vida” e como produtor de uma “apresentação oficial de si”.

Interessa-nos apresentar esse autor, mas, simultaneamente, demonstrar a complexidade de tal tarefa, pois, ao mesmo tempo em que esse intelectual é “alvo de um trabalho coletivo de eternização” por parte de instituições como o Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), da Fundação Getúlio Vargas, Senado Brasileiro e Academia Brasileira de Letras (ABL), também é um “controlador da transmissão da própria imagem”, como afirma Grill15. As epígrafes desta seção, bem como as que compõem as notas aqui referidas e ainda os discursos que serão tratados adiante, demonstram como esse controle condicionou o relato que muitos autores fizeram de sua vida e de sua atuação.

10 CARVALHO, Antônio Gontijo de. Nota. In: FRANCO, Afonso Arinos de Melo. A alma do tempo: memórias

de Afonso Arinos de Melo Franco. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: Instituto Nacional do Livro 1979. (Coleção Alma do Tempo). p. XXI.

11 PINHO, Péricles Madureira de. Nota. In: FRANCO, Afonso Arinos de Melo. A alma do tempo: memórias de

Afonso Arinos de Melo Franco. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1979. (Coleção Alma do Tempo). p. XXVII.

12 GRILL, Igor Gastal. As múltiplas notabilidades de Afonso Arinos: biografias, memórias e a condição de elite

no Brasil do século XX. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v. 23, n. 54, p. 21-42, jun. 2015. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rsocp/v23n54/0104-4478-rsocp-23-54-0021.pdf>. Acesso em: 25 jan. 2016.

13 Ibid.

14 BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaina (Org.). Usos

& abusos da história oral. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1996. p. 183-191.

Por outro lado, queremos também apontar, na construção desse conjunto discursivo, nossa concordância com Grill16, quando afirma ser possível

[...] perceber em sua produção autobiográfica profundos conflitos, ambivalências, dilemas e deslocamentos de sentidos decorrentes das responsabilidades herdadas, da divisão do trabalho político familiar, da inscrição em domínios diversos, da compatibilidade de gramáticas divergentes, etc.

Compreendemos que a percepção aludida só pode ser possível mediante um olhar cuidadoso e detalhado sobre o corpus discursivo que versa sobre esse intelectual, sobretudo os relatos autobiográficos. Do contrário, cairemos na armadilha de naturalizar sua condição de elite e de comprarmos a “ilusão autobiográfica” como ocorreu com alguns dos seus comentadores.

Antes, porém, de prosseguirmos com essa análise e seus desdobramentos, queremos apresentar Afonso Arinos com base nas narrativas biográficas e autobiográficas, mantendo as características definidoras da construção de sua imagem e autoimagem, incluindo a reprodução de fotografias, para exemplificar as considerações feitas até aqui. Os dados apresentados foram colhidos nas obras Dicionário Histórico e Biográfico Brasileiro17, do CPDOC da Fundação Getúlio Vargas e o livro O Intelectual e o Político: Encontros com Afonso Arinos18, já citado.

3.2 TRADIÇÃO FAMILIAR, HISTÓRIA DO BRASIL E A CONSTRUÇÃO DE UMA