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NAÇÃO E MESTIÇAGEM EM PAUTA

5 RIOS VERDE E NEGRO E A POLUIÇÃO DAS CRISTALINAS ÁGUAS DO LAGO PORTUGUÊS

5.2 NAÇÃO E MESTIÇAGEM EM PAUTA

No Brasil, as inquietações evidenciadas pela mestiçagem fizeram-se presentes desde o período colonial, atravessando os séculos, envolvendo diferentes circunstâncias e fomentando um acalorado debate que envolvia especialmente os intelectuais e os políticos.

Nos séculos XIX e XX, esse tema ocupou amplo destaque nos debates que irradiavam de diversas instituições de saber no Brasil. Se, na segunda metade do século XIX, raça e meio geográfico foram relevantes para pensar a nação, nas primeiras décadas do século XX, as noções de cultura e civilização concederam os parâmetros para a construção da identidade nacional, demonstrando que raça e mestiçagem não são conceitos atemporais e estáticos. Suas definições e seus sentidos percorreram caminhos longos e múltiplos, bem como contextos e momentos históricos variados. Também demonstram que os debates sobre esses temas nem sempre foram homogêneos e consensuais.

Diante da longevidade e das nuances desse debate, importa, para um dos objetivos deste estudo, situar Afonso Arinos nessas discussões e desenvolver reflexões acerca do momento em que esse autor insere-se nessa seara. Como o seu trabalho mantém uma breve conexão com as fronteiras das discussões ambientadas em período anterior a 1930, faremos referências às questões relativas à mestiçagem no contexto do século XIX e nos primeiros anos do século XX, apontando as transformações que culminaram na consolidação do mito das três raças fundadoras da nossa nacionalidade, que se farão mais fortes a partir dos anos 1930.

De forma mais ou menos consensual, os autores21, ao tratarem dessa temática, situam três momentos significativos nos quais a ideia do Brasil enquanto uma nação mestiça formou-se e transformou-se. O primeiro momento, diz respeito a uma produção realizada no interior do IHGB, quando, pouco depois da independência, as discussões voltaram-se para a confluência das três raças, visando um entendimento das especificidades do Brasil. O segundo localiza-se nos anos finais da escravatura, contexto no qual as teorias racistas foram veiculadas e a questão da mestiçagem foi reelaborada. O terceiro trata das discussões realizadas no pós 1930, período

21 Ver, por exemplo, MOREIRA, Vânia Maria Losada. História, etnia e nação: o índio e a formação nacional sob

a ótica de caio Prado Júnior. Memória Americana, Cuadernos de Etnohistória, Buenos Aires, v. 16, n.1, p. 63-84, 2008. p. 67. Disponível em: <http://antropologia.institutos.filo.uba.ar/sites/antropologia.institutos.filo.uba.ar/ files/revistas/adjuntos/Memoria_Americana_16.pdf>. Acesso em: 29 maio 2016.

de intensificação da modernização do país, cujos debates consolidaram o mito das três raças como fundador da nação brasileira.

As discussões sobre a mestiçagem estiveram associadas à ideia de nacionalidade. As questões raciais constituíram-se elementos que desenhavam difíceis equações. No pós- independência, a construção de uma nacionalidade orientou-se pela defesa preponderante de que o Brasil era continuidade de Portugal, salvo poucas vozes contrárias. De acordo com Schwarcz22, a partir de 1839, o IHGB passou a publicar trimestralmente uma revista, na qual a Antropologia e a Etnologia assumiram importância crescente, sobretudo no tratamento das questões raciais. Para essa autora, era uma questão que se difundia de forma “dúbia, na medida em que um projeto de centralização nacional implicava também pensar naqueles que ficariam excluídos desse processo, isto é, negros e indígenas”.

Segundo Schwarcz23, nessas discussões, não havia um consenso quanto às impressões acerca desses dois grupos. Em relação aos negros sobressaía a percepção de que se tratava de um grupo com baixo “potencial civilizatório”; quanto aos indígenas, as opiniões eram variadas, tornando possível acomodar, no Instituto, perspectivas positivas e evolucionistas, um discurso religioso católico e também uma visão romântica, que colocava o indígena na condição de símbolo de identidade nacional.

Ainda conforme Schwarcz24, o resultado desse arranjo, em que se combinava um saber evolucionista com a doutrina católica, permitiu que surgissem posturas que, ao mesmo tempo em que condenavam nossa condição racial, também ofereciam soluções. Os indígenas tornavam-se redimíveis mediante a catequese. Já o negro, não obstante ser visto como integrante de um “estado ainda mais inferior”, também poderia ser inserido na civilização. Havia “[...] um modelo evolucionista social e monogenista que predominava, coerente com a marcada influência católica no local”25.

Essas discussões davam-se no âmbito de uma escrita da história da nação, momento em que, de acordo com Guimarães26, tornar o outro visível, por meio de diferentes narrativas, tornou-se tarefa indispensável aos construtores do Império brasileiro. Por meio de

22 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas instituições e questão racial no Brasil 1870-1930.

São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 111.

23 Ibid., p. 111. 24 Ibid., p. 111. 25 Ibid., p. 112.

26 GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Definir o outro: a complexa tarefa para a escrita da história nacional.

(Prefácio). In: KODAMA, Kaori. Os índios no Império do Brasil: a etnografia do IHGB entre as décadas de 1840 e 1860. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ; São Paulo: EDUSP, 2009. p. 9-12. p.10.

um concurso promovido pelo IHGB, Karl Friedrich Philipp Von Martius marcou sua incursão nesse debate historiográfico com o texto Como se Deve Escrever a História do Brasil. Apesar das ideias gerais contidas no estudo, destacamos aqui o tema das relações raciais e a história nacional, evidenciado por Martius, ao propor que se correlacionasse o desenvolvimento do país com o aperfeiçoamento específico das três raças que o formavam, conforme observou Schwarcz27. Para essa autora, Martius definiu o que cabia a cada um dos três grupos: ao branco, cabia representar o papel de elemento civilizador; ao índio, era preciso que lhe fosse restituída a dignidade original, ajudando-o a trilhar os degraus da civilização; já ao negro, restou a detração, pois era visto como obstáculo ao progresso da nação. Nessa hierarquização proposta, disseminou-se a ideia da impossibilidade de adaptação do negro, enquanto se construía uma visão romântica sobre o indígena28.

Segundo Kodama29, os aspectos da história nacional levantados por Martius lidava com questões conhecidas no Brasil e trazia para o campo historiográfico temas que já se esboçavam na literatura. Para essa autora, o interesse do IHGB sobre os indígenas revelava as simetrias entre o indianismo e a etnografia. Ela avalia que o trabalho de Martius “[...] fomentava uma ampliação das definições sobre a nação brasileira, as quais já não se referiam apenas à temática dos índios para a poesia nacional, mas à constituição de uma população brasileira a partir da qual aquela nação pudesse se erigir”30.

Avaliando a influência do romantismo, do indianismo e das teses de Martius no interior do IHGB, Moreira31 acredita que Francisco Adolfo Varnhagen foi quem, de fato, acabou exercendo ampla influência na história do Brasil, pois forneceu, por meio dos seus escritos, um modelo duradouro para a historiografia nacional. Argumenta ainda que a obra desse historiador aproxima-se de Martius, na medida em que oferece uma história oficial e a serviço da monarquia constitucional. Os argumentos de Moreira32 reforçam a afirmação de que a construção de uma nacionalidade nesse momento baseava-se numa história em que o Brasil era visto como uma extensão de Portugal. Para ela, a historiografia de Varnhagen passava muito

27 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas instituições e questão racial no Brasil 1870-

1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 112-113.

28 Ibid., p. 112-113.

29 KODAMA, Kaori. Os índios no Império do Brasil: a etnografia do IHGB entre as décadas de 1840 e 1860. Rio

de Janeiro: Editora FIOCRUZ; São Paulo: EDUSP, 2009. p. 154.

30 Ibid., p. 158.

31 MOREIRA, Vânia Maria Losada. História, etnia e nação: o índio e a formação nacional sob a ótica de caio Prado

Júnior. Memória Americana, Cuadernos de Etnohistória, Buenos Aires, v. 16, n. 1, p. 63-84, 2008. Disponível em: <http://antropologia.institutos.filo.uba.ar/sites/antropologia.institutos.filo.uba.ar/files/revistas/ adjuntos/ Memoria_Americana_16.pdf>. Acesso em: 29 maio 2016. p. 68.

longe do nativismo que opunha brasileiros e portugueses, uma vez que esse historiador desmontava os argumentos indianistas e demonstrava seu horror aos indígenas, ao afirmar que eles não poderiam ser considerados nem mesmo americanos, julgando-os originários de algum lugar da Ásia Menor ou do Egito33. Com tal percepção, para Varnhagen, os indígenas jamais poderiam ser símbolos de nacionalidade.

Para Schwarcz e Starling34, apesar dos ataques feitos por Varnhagen aos estudos que viam o índio como forma de expressar as especificidades do Brasil, os indigenistas brasileiros tiveram sucesso na imposição romântica do indígena como símbolo nacional, pois, “[...] fazendo da literatura um exercício de patriotismo, esse gênero ganharia lugar oficial nos planos do Estado”. Para as autoras, a imagem idealizada do indígena fazia oposição aos africanos, visto que, no entendimento dos que se inseriram nesse debate, a população negra remetia à vergonhosa instituição escravocrata. O indígena permitia a seleção de uma origem mítica e estetizada.

Conforme Almeida35, esse debate, ao enfatizar a imagem idealizada dos indígenas, promoveu o apagamento das diferenças e da pluralidade que caracterizavam a população brasileira e os próprios grupos indígenas. As afirmações de Almeida são evidenciadas, na medida em que, nesse debate, os grupos indígenas foram reduzidos de forma binária a tupis e tapuias36, que corresponderiam também às denominações de “bravos” e “domésticos ou mansos”37.

Segundo Cunha38, as categorias de índios domésticos ou mansos e bravos destacavam-se pela sua finalidade prática e administrativa, entretanto as denominações Tupi e Guarani distinguiam-se por outros critérios, como a condição de extintos ou supostamente assimilados, sendo apontados como emblema da nova nação. Na categoria bravos, estavam os chamados

33 MOREIRA, Vânia Maria Losada. História, etnia e nação: o índio e a formação nacional sob a ótica de caio Prado

Júnior. Memória Americana, Cuadernos de Etnohistória, Buenos Aires, v. 16, n. 1, p. 63-84, 2008. Disponível em: <http://antropologia.institutos.filo.uba.ar/sites/antropologia.institutos.filo.uba.ar/files/revistas/ adjuntos/ Memoria_Americana_16.pdf>. Acesso em: 29 maio 2016. p. 69.

34 SCHWARCZ, Lilia M.; STARLING, Heloisa M. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras,

2015. p. 288.

35 ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Comunidades indígenas e Estado Nacional: histórias, memórias e

identidades em construção (Rio de Janeiro e México - séculos XVIII e XIX). In: ABREU, Martha; SOIHET, Raquel; GONTIJO, Rebeca (Org.). Culturas política e leituras do passado: historiografia e ensino de história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. p. 189-212. p. 192.

36 Cf. KODAMA Kaori. O Tupi e o sabiá: Gonçalves Dias e a etnografia do IHGB em Brasil e Oceania. Fênix –

Revista de História e Estudos Culturais, Uberlândia, 4. Ano, v. IV, n. 3, p. 1-14, jul./ago./set 2007. Disponível

em: <http://www.revistafenix.pro.br/PDF12/secaolivre.artigo.7-Kaori.Kodama.pdf>. Acesso em: 01 jun. 2016. p. 8.

37 Cf. CUNHA, Manuela Carneiro da. Política indigenista no século XIX. In: CUNHA, Manuela Carneiro da.

(Org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 133-154. p. 136.

genericamente de Botocudo, que não era apenas o índio vivo, mas também aqueles com quem se guerreava nas primeiras décadas do século.

Conforme Paraíso39, as referências aos Botocudos podem ser localizadas desde o século XVI com as primeiras tentativas de estabelecimento das capitanias hereditárias, quando os Tupi os denominaram inicialmente de Tapuio. Depois passaram a ser designados de Aimoré, Ambaré, Guaimuré ou Embaré. No século XVII, passaram a ser chamados de Guéren, Gren ou Kren, denominações que corresponderiam à autodenominação do grupo. No século XIX, essas denominações foram substituídas por Botocudo, nome dado pelo colonizador em alusão ao uso de botoques labiais e auriculares.

Ao examinar as políticas indigenistas destinadas aos Botocudos no século XIX, Paraíso chama a atenção para a visão estereotipada que circulava sobre esse grupo definindo-os como “[...] antropófagos, rebeldes contumazes, agressivos, incivilizáveis e refratários aos meios brandos de relação”40. Ao demonstrar as ações dos Botocudos no contexto das políticas que lhes foram destinadas, a autora também torna visível os motivos que levaram intelectuais e políticos, nesse contexto, a generalizarem a denominação Botocudo, para se referirem aos indígenas vivos e considerados “bravos”.

Ainda que desse debate tenha resultado a noção genérica sobre o indígena e o apagamento das diversidades, é preciso ressaltar que as narrativas e as imagens relativas aos indígenas, construídas no contexto de formação da nacionalidade, não são uniformes e nem remetem a uma única representação, como nos alerta Oliveira41. Esse autor ressalta os múltiplos efeitos produzidos pelo esquecimento gerado por meio desse conjunto narrativo e imagético, mas afirma que a noção de índio genérico não deve ser tomada como “[...] algo monolítico, e, sim, como um repositório de inúmeras imagens e significados, engendrados por diferentes formações discursivas e acionadas em contextos históricos variados”42.

Quanto ao segundo momento em que a nacionalidade foi debatida, Moreira43 indica o ano de 1868 como um marco unânime da historiografia, enquanto um divisor de águas entre a

39 PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. Repensando a política indigenista para os Botocudos no século XIX. Revista

de Antropologia, São Paulo, v. 35, p. 75-90, 1992. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/

ra/article/view/111329/109545>. Acesso em: 25 maio 2016. p. 77-78.

40 Ibid., p. 83.

41 OLIVEIRA, João Pacheco de. As mortes do indígena no Império do Brasil: o indianismo, a formação da

nacionalidade e seus esquecimentos. In: AZEVEDO, Cecília et al. (Org.). Cultura política, memória e

historiografia. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009. p. 229-268.

42 Ibid., p. 231.

43 MOREIRA, Vânia Maria Losada. História, etnia e nação: o índio e a formação nacional sob a ótica de caio Prado

Júnior. Memória Americana, Cuadernos de Etnohistória, Buenos Aires, v. 16, n. 1, p. 63-84, 2008. Disponível em: <http://antropologia.institutos.filo.uba.ar/sites/antropologia.institutos.filo.uba.ar/files/revistas/adjuntos/Memor ia_Americana_16.pdf>. Acesso em: 29 maio 2016. p. 70.

fase estável do Segundo Reinado e o espaço de longa crise que culminou na abolição da escravidão e na República, ressaltando que, nesse período, ideias liberais e democráticas que circulavam na Europa permitiram vários questionamentos sobre as hierarquias que prevaleciam na estrutura social do Império.

Para Joanilho44 esse foi um momento de certa dissidência, sobretudo a partir de 1870, em que uma geração marcada especialmente pelo cientificismo em voga achava que a crença na razão poderia elucidar e propor soluções. Para esse autor, essa razão cientificista provocou uma forte tensão entre a noção de indivíduo e a de sociedade no ideário das elites brasileiras no período de 1890 a 1920. Entre os que se consideravam letrados, as discussões que então se iniciaram sobre a formação e a situação do país resultaram em críticas contundentes ao passado colonial, que ressaltaram, por meio do cientificismo, a má formação racial do Brasil.

Ainda conforme Moreira45, o evolucionismo, o positivismo e o social-darwinismo passaram a ser discutidos no Brasil num ambiente de crise, em que a escravidão e as hierarquias sociais foram postas em xeque. Os dilemas e as perspectivas da nação foram debatidos por meio das teorias racialistas, que serviram para justificar tanto as supostas diferenças raciais quanto as hierarquias sociais que caracterizavam a sociedade.

A parte da população do Brasil composta por indígenas, mestiços e negros preocupava aos que imaginavam46 uma nação civilizada. De acordo com Joanilho47, “[...] os ‘intelectuais’ do período olhavam para o povo e viam uma massa de mestiços e negros”. Essa percepção

44 JOANILHO, André Luiz. A construção da nacionalidade. Hist. Ensino, Londrina, v. 6, p. 131-140, out. 2000.

Disponível em: <http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/histensino/article/viewFile/12395/10861>. Acesso em: 30 maio 2016. p. 132.

45 MOREIRA, Vânia Maria Losada. História, etnia e nação: o índio e a formação nacional sob a ótica de caio Prado

Júnior. Memória Americana, Cuadernos de Etnohistória, Buenos Aires, v. 16, n. 1, p. 63-84, 2008. Disponível em: <http://antropologia.institutos.filo.uba.ar/sites/antropologia.institutos.filo.uba.ar/files/revistas/ adjuntos/ Memoria_Americana_16.pdf>. Acesso em: 29 maio 2016. p. 70.

46 Usamos o termo “imaginavam” numa alusão ao conceito de nação formulado por Benedict Anderson:

“comunidade imaginada, limitada e, ao mesmo tempo, soberana”. Para esse autor é uma comunidade imaginada porque, mesmo os membros da menor das nações jamais conhecerão, encontrarão ou sequer ouvirão falar da maioria dos seus companheiros, mas, ainda assim, compartilham a ideia de comunhão entre eles. É limitada porque, mesmo a maior delas, ainda que abrigue um bilhão de habitantes, possui fronteiras finitas, mesmo que elásticas, para além das quais existem outras nações. E, finalmente, é soberana porque o nacionalismo nasceu na época em que o iluminismo e a Revolução Francesa estavam destruindo a legitimidade do reino dinástico de ordem divina. Portanto, as nações sonham em ser livres e a garantia dessa liberdade é o Estado Soberano. ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas. Reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. Tradução Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 32-34.

levava-os a fazerem questionamentos do tipo: “[...] como atingir o progresso e a civilização com essa população?”48.

Nesse debate, marcado por determinismos climáticos e raciais e pela ideia de evolução, as doutrinas racialistas49 que o embasavam estavam sustentadas por, pelo menos, três pressupostos, conforme Ramos e Maio50: o primeiro, consistia na afirmação de que os homens diferenciavam-se em grandes grupos chamados “raças” cuja unidade física conferia-lhes características psicológicas e culturais; o segundo pressuposto afirmava o predomínio do grupo sobre o indivíduo, o que equivalia à afirmação de que o comportamento do indivíduo era determinado pelo comportamento do grupo ao qual ele pertencia; o terceiro, difundia a crença de que as raças eram não apenas diferentes, mas, sobretudo, desiguais. Estabelecia-se uma hierarquização sobre elas, tornando aceitável, e até mesmo necessária, a dominação de um povo sobre outros.

Essas ideias influenciaram as discussões travadas pelos intelectuais brasileiros que ficaram, em sua maioria, conhecidos como integrantes da “Geração de 1870”51, por meio de diferentes modelos, de diversas decorrências teóricas e contextos específicos. Esses intelectuais utilizaram, em suas análises sobre o Brasil, um discurso determinista e científico com forte preponderância do argumento racial. Este argumento, conforme demonstrou Schwarcz52, foi política e historicamente construído, bem como o conceito raça que, para além das definições biológicas, ganhou interpretações, sobretudo sociais, tendo seu significado constantemente renegociado e experimentado.

48 JOANILHO, André Luiz. A construção da nacionalidade. Hist. Ensino, Londrina, v. 6, p. 131-140, out. 2000.

Disponível em: <http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/histensino/article/viewFile/12395/10861>. Acesso em: 30 maio 2016. p. 133.

49 Ramos e Maio, baseados em Todorov, alertam que, de forma geral, o termo racismo é usado para designar dois

domínios diferentes, ainda que articulados. De um lado, o comportamento marcado pelo ódio e desprezo para os que possuem características físicas bem definidas e distintas das nossas; do outro, a existência de uma ideologia, de uma doutrina sobre as diferenças humanas. A esse último comportamento, ele denominou de

racialismo. O racismo passa a ser identificado como um comportamento antigo e amplamente difundido. Já as doutrinas racialistas passam a ser entendidas enquanto um conjunto de ideias originado na Europa ocidental e

difundido desde a metade do século XIX até meados do XX. Cf. RAMOS, Jair de Souza; MAIO, Marcos Chor. Entre a riqueza natural, a pobreza humana e os imperativos da civilização, inventa-se a investigação do povo brasileiro. In: MAIO, Marcos Chor; SANTOS, Ricardo Ventura. Raça como questão: história, ciência e identidades no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2010. p. 5-49. p. 28-29.

50 Ibid., p. 29.

51 Termo geralmente usado para definir o heterogêneo grupo de intelectuais que atuou nas últimas décadas do

século XIX, mas também no início do século XX. Eis alguns deles: Joaquim Nabuco, Silvio Romero, Lopes Trovão, Alberto Sales, André Rebouças, Quintino Bocaiuva, Euclides da Cunha.

52 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas instituições e questão racial no Brasil 1870-1930.

Nesse contexto ocorreu uma intensificação nas discussões que envolveram a temática da mestiçagem53. Ao tomar como referência modelos deterministas em que o clima, a raça e os aspectos geográficos poderiam ser considerados entraves para que o país atingisse a civilização, os chamados “homens de Ciências” reelaboraram esses pressupostos, adaptando-os para a maior compreensão de uma sociedade que já era miscigenada. Destacam-se, entre esses intelectuais,