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INTELECTUAIS BRASILEIROS: BUSCA PELO PASSADO, VALORIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO NACIONAL E ATUAÇÃO JUNTO AO ESTADO

2 CENÁRIO DOS ESTUDOS BRASILEIROS E DA ATUAÇÃO DE AFONSO ARINOS NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO

2.3 INTELECTUAIS BRASILEIROS: BUSCA PELO PASSADO, VALORIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO NACIONAL E ATUAÇÃO JUNTO AO ESTADO

Considerando que a parceria dos intelectuais com o Estado dava-se em variados espaços de atuação, para os objetivos deste estudo, privilegiamos as atuações que corroboram o debate em torno da identidade nacional. Grande parte desses intelectuais envolveu-se em diversos projetos, ocupando cargos ou não, colocando-se direta ou indiretamente a serviço de uma política que visava pensar o país em prol da afirmação de uma nacionalidade.

Dentre os muitos intelectuais atuantes nesse período, o antropólogo José Bastos de Ávila é um exemplo que reúne tanto o intelectual inserido nos debates sobre identidade quanto o que ocupava cargos no governo. Destacou-se por refletir sobre o Brasil, por meio da antropologia e por sua atuação como pesquisador, professor naturalista e ocupante de cargo no Instituto de Pesquisas Educacionais (IPE). José Bastos de Ávila integrou o quadro de intelectuais que atuaram junto ao governo Vargas, ao aceitar o convite de Anísio Teixeira para trabalhar no recém-criado instituto. Tarefa à qual se dedicou entre 1935-1938, dividindo com sua atuação no Museu Nacional47.

A experiência acumulada na atuação como naturalista possibilitou a Ávila o diálogo com os debates em torno da criação de uma política cultural e as preocupações com as formulações de uma política nacional de preservação do Patrimônio Cultural Brasileiro. Ao excursionar pelo país

46 FALCON, Francisco José Calazans. História e cultura histórica. (Resenha da obra História e Historiadores, de

Angela de Castro Gomes. Rio de Janeiro, Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1996). Revista Estudos

Históricos, Rio de Janeiro, v. 10, n. 19, p. 141-144, 1997. p. 143.

47 GONÇALVES, Assis da Silva; MAIO, Marcos Chor; SANTOS, Ricardo Ventura. Entre o laboratório de

antropometria e a escola: a antropologia física de José Bastos de Ávila nas décadas 1920 e 1930. Boletim Museu

em busca de objetos produzidos por indígenas, bem como de outras procedências, Ávila entrou em contato com problemas relativos à preservação de sítios arqueológicos. Ao escrever a obra No

Pacoval de Carimbé48, expondo suas considerações sobre os males do país, produziu uma

interpretação do Brasil e apontou ideias de como o Brasil deveria ser organizado, quais investimentos prioritários deveriam ser feitos tanto para a resolução dos problemas de saúde e educação quanto para a implementação de uma política de reconhecimento, valorização e preservação do patrimônio, conforme demonstraram Gonçalves, Maio e Santos49.

O empenho de vários intelectuais para a consolidação de uma política cultural com base em uma valorização do passado levou o Estado a conceder subsídios a instituições históricas, incentivou publicações e implantou uma agenda de comemorações50 que contou com o envolvimento de intelectuais de várias áreas, especialmente do Ministério de Educação e Saúde. Essas ações foram fortalecidas por condições editoriais favoráveis que impulsionaram, como vimos, publicações tanto no âmbito das editoras privadas quanto no âmbito oficial.

Foi durante o governo de Getúlio Vargas que ocorreu um maior dinamismo das políticas culturais governamentais. A área da cultura ficava sob a responsabilidade do Ministério da Educação e Saúde Pública, criado em 1930, e teve o mineiro Francisco Campos como ministro. Sua atuação encerrou-se em setembro de 1932, sendo substituído por Washington Pires, que o comandou até julho de 1934. O período de grande destaque desse Ministério ocorreu nos anos de 1934-1945, na gestão do ministro Gustavo Capanema.51 No âmbito da política cultural a cargo do referido Ministério, localizamos a destacada preocupação em torno da identificação, valorização e preservação do patrimônio nacional, que ganhou força nesse contexto, especialmente com a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN)52.

48 ÁVILA, José Bastos de. No Pacoval de Carimbé. Rio de Janeiro: Calvino, 1933. (Apud GONÇALVES, Assis

da Silva; MAIO, Marcos Chor; SANTOS, Ricardo Ventura. Entre o laboratório de antropometria e a escola: a antropologia física de José Bastos de Ávila nas décadas 1920 e 1930. Boletim Museu Paraense Emílio Goeldi, Belém, v. 7, n. 3, p. 671-686, 2012. p. 685).

49 GONÇALVES; MAIO; SANTOS, op. cit.

50 GOMES, Ângela de Castro. Cultura política e cultura histórica no Estado Novo. In: ABREU, Martha; SOIHET,

Rachel; GONTIJO, Rebeca (Org.). Cultura política e leituras do passado: historiografia e ensino de história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. p. 43-63. p. 58.

51 Cf.: BRASIL. Ministério da Educação. Anos de incertezas (1930-1937). Rio de Janeiro, [20--]. Disponível em:

<http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas1/anos30-37/IntelectuaisEstado/MinisterioEducacao>. Acesso em: 13 abr. 2015.

52 Para maior compreensão do processo de criação desse órgão, ver: BONAMIM, Giovana. Elites intelectuais e

nation building: conflitos na organização e funcionamento do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico

Nacional durante o Estado Novo. 2011. 151 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2011. Disponível em: <http://www. revistacienciapolitica.ufpr.br/off/dissertacao_bonamimgiovana2.pdf>. Acesso em: 3 maio 2016.

Em janeiro de 1936, Rodrigo Melo Franco de Andrade, que atuou durante cinco anos como chefe de gabinete do Ministério da Educação e Saúde Pública desde o período de Francisco Campos, recebeu de Gustavo Capanema o convite para organizar e dirigir o então nascente SPHAN53, implantado em 1937 com o objetivo de sanar a ausência de uma política de preservação do patrimônio.

O SPHAN constituiu-se em mais um espaço privilegiado para atuação dos intelectuais, especialmente dos que tiveram uma ativa participação no movimento modernista, a exemplo de Mário de Andrade. Atendendo ao pedido de Gustavo Capanema, então Ministro da Educação e Saúde, esse escritor brasileiro elaborou, em 1936, uma espécie de anteprojeto para a preservação dos bens culturais do país.

Rodrigo Melo Franco de Andrade era também vinculado ao movimento modernista e foi responsável pela implantação e condução dos trabalhos do SPHAN durante três longas décadas. Na condição de diretor desse órgão, também agregou outros intelectuais em torno do Instituto. Atendendo a seu convite, nomes como Lúcio Costa, Carlos Drummond de Andrade, Manoel Bandeira, Oswald de Andrade e Afonso Arinos – primo de Rodrigo –, entre outros colaboradores, ajudaram na tarefa de implantar o Serviço do Patrimônio.

Esses intelectuais ministraram cursos que visavam à preparação de um quadro técnico apto à realização dos trabalhos de tombamento, restauração e revitalização dos acervos arquitetônicos e urbanísticos, bem como dos acervos documentais e etnográficos e de obras de arte. Também escreveram para a Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico

Nacional, que passou a ser publicada a partir de 1937.

Os cursos promovidos pelo IPHAN e pela Revista constituíram espaços de discussões sobre o passado brasileiro e reforçaram a tarefa de construção de uma identidade nacional. Ao mesmo tempo, elegeram quais patrimônios eram representativos da nacionalidade do país, as influências e contribuições na construção desse patrimônio, bem como os passíveis de serem preservados. Na apresentação do número 1 da Revista, Rodrigo Melo Franco de Andrade ressaltava que o objetivo da publicação não era fazer propaganda do SPHAN, mas “[...] divulgar [semestralmente] o conhecimento dos valores de arte e de história que o Brasil possui e contribuir [...] para o seu estudo.”54 Reconhecendo a grandeza da proposta do SPHAN que,

53 Cf.: VELOSO, Mariza. Intrépido Rodrigo. Revista de História da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, n. 26.

Seção Retrato, p. 1, jun. 2007. Disponível em: <http://www.revistadehistoria.com.br/ secao/retrato/intrepido- rodrigo>. Acesso em: 25 abr. 2015.

54 ANDRADE, Rodrigo Melo Franco de. Programa. Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico

Nacional. Rio de Janeiro, n. 1, p. 2-3, 1937. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/uploads/publicacao/

ancorada num vasto conceito de patrimônio55, requeria um amplo domínio e muitos anos de trabalho, Rodrigo Melo Franco de Andrade apontava as limitações desse primeiro número cujo foco recaiu sobre patrimônio arquitetônico, o que, segundo ele, dava a impressão de que patrimônio histórico e artístico nacional restringia-se a esse aspecto.

Entre os intelectuais que atuaram junto ao SPHAN e especialmente os que ministraram os cursos destacamos Afonso Arinos. As cinco conferências que ele fez para esse propósito, em 1941, resultaram na publicação do livro Desenvolvimento da Civilização Material no Brasil, cuja terceira edição foi publicada em 2005 pela Topbooks56. No prefácio à 1ª edição, Andrade57 explicitou que o objetivo do curso foi proporcionar ao pessoal técnico do Instituto maior conhecimento acerca dos aspectos materiais do processo histórico do desenvolvimento da civilização no Brasil.

O trabalho realizado por Afonso Arinos foi considerado diferenciado pelo diretor do SPHAN, apesar de não se basear em fontes inéditas, uma vez que o aspecto material da civilização brasileira constituía uma lacuna em nossa historiografia. Por isso, decidiu-se publicá-lo como parte da coleção de monografias editada no Instituto sob o título geral de Publicações do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Aliás, a edição dessas monografias foi sugestão do próprio Afonso Arinos.

Em 1944 a monografia virou livro, sendo publicado como 1ª edição. Uma 2ª edição foi feita em 1971. Nessa obra ele retoma as discussões sobre civilização já realizadas no livro

Conceito de Civilização Brasileira, de 1936, explicando que a base da nossa civilização “[...]

era portuguesa entendida no seu complexo luso-afro-asiático”58. Referia-se ao que denominou anteriormente de triângulo brasileiro e seus três lados – o indo-africano-europeu –, insistindo também na ideia dos resíduos.

55 Conforme Rodrigo Melo Franco de Andrade, o Decreto-Lei de 30 de novembro de 1937 definia patrimônio

como “[...] conjunto dos bens moveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interesse público, quer por se acharem vinculados a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico”. Ainda segundo ele, equiparavam-se a esses valores “[...] os monumentos naturais, bem como sítios e paisagens que importe conservar e proteger pela feição notável com que tenham sido dotados pela natureza ou agenciados pela indústria humana”. (ANDRADE, Rodrigo Melo Franco de. Programa. Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro, n. 1, p. 2-3, 1937. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/uploads/publicacao/ RevPat01_m.pdf>. Acesso em: 18 abr. 2014. p. 3).

56 FRANCO, Afonso Arinos de Melo. Desenvolvimento da civilização material no Brasil. 3.ed. Rio de Janeiro:

Topbooks, 2005.

57 ANDRADE, Rodrigo M. F. de. Prefácio à 1ª edição. In: FRANCO, Afonso Arinos de Melo. Desenvolvimento

da civilização material no Brasil. 3.ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 2005. p. 19.

58 FRANCO, op. cit., p. 26-37. “Resíduos” foi o termo usado por este autor para denominar as influências que

ajudaram a construir um comportamento dos brasileiros por meio das influências de indígenas e negros. Na seção 7 deste estudo, discutiremos sobre esses resíduos, indicando a origem desse termo e as implicações em torno das formulações feitas por Afonso Arinos.

Nas palestras proferidas, Afonso Arinos informava aos técnicos do SPHAN que era “[...] muito difícil precisar com segurança quais foram os elementos negros e índios, incluídos diretamente na nossa civilização material”59. Para ele, os processos culturais de indígenas e negros alteravam-se com muita rapidez em contato com os brancos e isso tornava difícil a defesa da pureza cultural dos processos desses dois grupos étnicos. Provavelmente baseado na divisão tupy/tapuia, acreditava que as culturas negras transplantadas pelo tráfico eram portadoras de uma diversidade ainda maior do que as culturas indígenas do litoral, argumento usado para negar uma possível influência do negro em nosso patrimônio material. Afirmava que, caso existisse, seria perceptível, na medida em que as diferenças originárias poderiam ser verificadas pela ótica dessa diversidade.60

Concluía que, apesar da importância do negro na nossa formação, no plano da civilização material, essa influência praticamente não existia. A influência do negro fazia-se sentir quase exclusivamente no terreno da psicologia social61, isto é, na formação da personalidade do brasileiro, como veremos na seção em que trataremos do que esse autor denominou de “resíduos índio-afro”.

Em relação aos indígenas, nota-se um esforço do autor em desconstruir qualquer aspecto que tenha sido atribuído como originário desses povos no processo de formação desse patrimônio material. Para isso, usou como exemplos as queimadas, as casas cobertas com palhas, os caminhos abertos, entre outros, para afirmar que, equivocadamente, lhes atribuíam influências indígenas. Nosso autor esmerava-se em atestar a “pequenez da contribuição” de indígenas e de negros para a nossa civilização material62.

A mensagem de Afonso Arinos nesse curso foi precisa: indígenas e negros teriam exercido influência no psiquismo nacional, conforme afirmou na obra Conceito de Civilização

Brasileira.63 No que se refere ao patrimônio material, dificilmente, segundo ele, se poderia identificar influências desses, sobretudo pelo fato de possíveis contribuições terem sido “[...] absorvidas no choque com um meio muito mais evoluído, mas também porque as condições de sujeição em que viviam as raças negra e vermelha não permitiam a expansão plena de suas respectivas formas de cultura”.64 Coerente com o pensamento da época, indígenas e negros

59 FRANCO, Afonso Arinos de Melo. Desenvolvimento da civilização material no Brasil. 3.ed. Rio de Janeiro:

Topbooks, 2005. p. 30.

60 Ibid., p. 30. 61 Ibid., p. 30. 62 Ibid., p. 37.

63 FRANCO, Afonso Arinos de Melo. Conceito de civilização brasileira. Rio de Janeiro: Companhia da Editora

Nacional, 1936. (Coleção Brasiliana).

eram apresentados como indivíduos imobilizados pelas teias de um sistema colonial em que a superioridade do branco português era inquestionável.

Juntamente com outros intelectuais, Afonso Arinos demarcou o que era importante para ser preservado como elementos construtores da nossa civilização material, afirmou a superioridade da cultura branca europeia e circulou suas concepções para além das dependências do SPHAN, ao transformar suas palavras em livro editado três vezes em diferentes contextos.