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PERIGOS DA ESQUERDA E DA DIREITA: UM ALERTA AOS INTELECTUAIS

4 LEITURAS DO BRASIL: VISÕES DE AFONSO ARINOS

4.1 PERIGOS DA ESQUERDA E DA DIREITA: UM ALERTA AOS INTELECTUAIS

No livro Introdução à Realidade Brasileira, Afonso Arinos substituiu o prefácio da obra por uma “advertência” direcionada aos intelectuais de sua geração. Ao reconhecer como pertinente mais uma das questões que perpassavam o debate sobre o intelectual brasileiro – a dificuldade de sobreviver dessa atividade –, ele esclarecia que seu conceito de intelectual não estava restrito aos homens de letra no sentido estreito da expressão, pois os considerava pouco numerosos diante da quase impossibilidade de sobreviverem apenas com a atividade literária. Curiosamente, também achava que os literatos não possuíam muita influência na formação da opinião nacional. Daí a amplitude do seu conceito de intelectual.

Além dos homens de letras, também considerava intelectuais todos aqueles que viviam das profissões liberais: professores, jornalistas, administradores do setor público e privado, advogados, médicos, engenheiros, militares, entre outros2. Demonstrava que suas expectativas eram de que sua advertência alcançasse um número considerável desses intelectuais.

Alertava que o seu propósito era discutir e definir o papel dos intelectuais brasileiros cujas ações seriam imprescindíveis para influenciar na condução dos rumos do Brasil. Considerava que aquele era um momento conturbado, em que o país tinha passado pela experiência de um movimento conspiratório que culminou com a tomada do poder por meio das armas. Referia-se ao Movimento de Trinta que colocou Getúlio Vargas no poder, mas também a um contexto de inserção e crescimento dos regimes autoritários, como o fascismo e o comunismo. Este último apresentava-se para Afonso Arinos e muitos dos seus contemporâneos como uma grande ameaça.

1 FRANCO, Afonso Arinos de Melo. Introdução à realidade brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

1933. p. 53-54.

Ao identificar as ameaças, principalmente de crescimento da esquerda e uma provável tomada de poder pelos comunistas, Afonso Arinos3 inquietava-se, argumentando que o povo brasileiro era incapaz de se defender, de reagir; por isso, necessitava do intelectual para indicar- lhe o destino, os caminhos a serem trilhados. Nesse caso, o intelectual era colocado como portador de uma missão e única força ativa da sociedade definida como a força espiritual.

Referências ao espírito e a seus valores era tema recorrente no tratamento das questões relativas à intelectualidade, conforme observou Luca4, quando analisou as revistas que circulavam na época. Essa autora concluiu que as referências ao espírito não indicavam um distanciamento das questões do presente, mas uma espécie de “chamamento ao compromisso”. Segundo Afonso Arinos, havia uma curta distância entre uma ideia e uma ação, mas havia também o risco de a ação resultante divergir da ideia inicial. Daí a importância de o intelectual preocupar-se com os resultados que as suas ideias poderiam trazer.

Abrimos aqui um parêntese para nos lembrar das discussões da seção anterior, quando nos referimos à construção de uma autoimagem, em que Afonso Arinos fazia uma oposição entre palavras e ações, dando a entender que, ao expressar palavras, não teria responsabilidades com as ações ou reações que elas provocavam. Observamos, nessas argumentações sobre o papel dos intelectuais, preocupações com os resultados que poderiam advir das ideias expressas por esses. Diferente do que expressou em seus depoimentos, Afonso Arinos conclamava seus pares a se preocuparem com as ideias que defendiam e demonstrava uma correlação entre palavras e ações. Na literatura sobre essa temática é reconhecida a existência de diálogos entre os intelectuais brasileiros e os movimentos filosóficos e artísticos que agitaram o período entre guerras em todo o mundo. Voltados para o processo de modernização do Brasil, levando em conta suas especificidades, esses intelectuais mantiveram um contato permanente com os debates internacionais.

No caso das preocupações de Afonso Arinos, esse diálogo inicia-se com Julien Benda5, autor do clássico La Trahison des Clercs, de 1927, obra de grande repercussão na época6.

3 FRANCO, Afonso Arinos de Melo. Introdução à realidade brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

1933. p. 6.

4 LUCA, Tania Regina de. Leituras, projetos e (re)vista(s) do Brasil (1916-1944). São Paulo: Edunesp, 2011. p. 268. 5 BENDA, Julien. La trahison des clercs. Paris: Grasset, 1927. (Collection Les Cahiers Rouges). (Première édition,

Collection les Cahiers Verts, Grasset, Paris, 1927). Disponível em: <http://classiques.uqac.ca/ classiques/benda_julien/trahison_des_clercs/benda_trahison_clercs.pdf>. Acesso em: 10 dez. 2015.

6 Cf. BOMENY, Helena. Infidelidades eletivas: intelectuais e política. In: BOMENY, Helena (Org.). Constelação

Capanema: intelectuais e políticas. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas; Bragança Paulista, SP:

Universidade de São Francisco, 2001. p. 11-35; BOTO, Carlota. Traição dos intelectuais: um tema nosso, contemporâneo. Revista USP, São Paulo, n. 80, p. 161-171, dez./fev. 2008-2009; BOBBIO, Norberto. Os

intelectuais e o poder: dúvidas e opções dos homens de cultura na sociedade contemporânea. Tradução Marco

Interessado em mostrar aos seus contemporâneos a responsabilidade que tinha o intelectual na condução dos rumos do país, ele discordava da tese principal da obra de Benda, que afirmava a necessidade de o intelectual despojar-se de paixões, como o amor familiar, interesses de raça e de classe. Segundo Benda7, o intelectual deveria voltar-se para a busca de valores universais e desprezar interesses práticos, particulares. Suas ações estariam balizadas pelo tripé: justiça, verdade e razão. Qualquer outro interesse que extrapolasse esses valores seria considerado traição. Afonso Arinos discordava de Benda, expressando seu entendimento de outra forma:

Ao contrário do que pensa o sutil israelita Julien Benda, este pregador da passividade contemplativa no reino do espírito, tenho para mim que traidor é o intelectual que não toma posição, que não se define na luta. Traidor é aquele que, segundo a palavra do Evangelho, tendo na mão a lâmpada, esconde-a debaixo do leito. Traidor o que, possuindo força condutora, encerra-se no jardim fechado, na torre ebúrnea da indagação desinteressada8.

Ao se posicionar contrário a Benda, Afonso Arinos certamente percebia a complexidade dessas aproximações entre intelectuais e poder. Também tinha consciência dos interesses que as permeavam e via, com bastante naturalidade, a inserção desse grupo nos projetos políticos. Afinal, sua trajetória familiar, que foi marcada, como vimos, pela atuação política de várias gerações, tanto da via paterna quanto materna, aliada à sua condição classista, o habilitava a reivindicar lugar privilegiado nas decisões e projetos do país.

A defesa de Afonso Arinos em relação ao papel que o intelectual deveria assumir na sociedade pode ser explicada por meio da concepção de Bobbio, quando analisou as relações entre os intelectuais e a vida política na Itália. Suas considerações são aqui apresentadas por Bastos9. Conforme esta autora, para Bobbio, “[...] numa sociedade funcional, resultado do atraso, atribui-se aos intelectuais missão organizativa”10. Contrapondo-se a Benda, Afonso Arinos afirmava que a indiferença proposta por ele seria insuportável num país como o Brasil que, naquele momento, iniciava sua reconstrução após a convulsão do golpe de trinta. Atribuía aos intelectuais a missão organizativa referida por Bobbio.

7 BENDA, Julien. La trahison des clercs. Paris: Grasset, 1927. (Collection Les Cahiers Rouges). (Première

édition, Collection les Cahiers Verts, Grasset, Paris, 1927). Disponível em: <http://classiques.uqac.ca/ classiques/ benda_julien/trahison_des_clercs/ benda_trahison_clercs.pdf>. Acesso em: 10 dez. 2015. p. 7.

8 FRANCO, Afonso Arinos de Melo. Introdução à realidade brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

1933. p. 9.

9 BASTOS, Elide Rugai. A Revista Cultura Política e a influência de Ortega y Gasset. In: BASTOS, Elide Rugai;

RIDENTI, Marcelo; ROLLAND Denis (Org.). Intelectuais: sociedade e política. São Paulo: Cortez, 2003. p. 146-171. p. 171.

Ainda de acordo com Bastos11, para Bobbio “[...] numa sociedade inorgânica, em processo de reorganização e emergência, são dois os momentos típicos em que as minorias intelectuais assumem papel político”. O primeiro momento seria o da preparação ideológica do processo de transformação; e o segundo, seria o momento do processo revolucionário em ato, equivalendo à passagem da consciência moral à ação.

Considerando que o momento de “preparação ideológica” proposto por Bobbio possui muito mais um sentido de exemplo moral do que de ação diretamente política, acreditamos que essa categoria também corrobora as considerações de Afonso Arinos, pois, conforme Bastos12, para Bobbio, esse momento é “[...] carregado de convicção de que o indivíduo assume significado com base em seu próprio valor de consciência moral”. É a sua consciência moral que Afonso Arinos13 apresenta como argumento para convencer os intelectuais aos quais se dirige, colocando suas decisões e convicções como exemplos a serem seguidos.

Ao se colocar como exemplo, Afonso Arinos insiste em valorizar a sua consciência moral, ao afirmar que se sentiu atraído pelas ideias tanto do fascismo quanto do comunismo e que, por muito tempo, se defendeu das críticas que fez aos dois regimes no livro que, naquele momento, apresentava. No entanto, foi capaz de livrar-se do fascínio exercido pelos regimes citados e expressar as críticas que anteriormente refutava. Essa mudança de atitude só se tornou possível, conforme declarou, após observar, ler, refletir, viajar, penetrar mais fundo as realidades daqueles dois regimes. Segundo ele, esse exercício possibilitou-lhe ser sincero consigo mesmo e conquistar a “verdade”, rejeitando as teorias que o preocupavam.

Para Afonso Arinos, eram muitos os que se contrapunham ao seu entendimento, e isso decorria do fato desses divergentes viverem em condições diferentes, impossibilitados materialmente de verem as coisas como elas eram e não como diziam que eram. Essa impossibilidade material referia-se às condições citadas anteriormente, que ele elencou como as que lhe proporcionaram a “conquista da verdade”? Referia-se ao seu cabedal econômico, político, social e intelectual como o elemento diferenciador? Não fica claro o que ele quer dizer com esse impedimento material, entretanto fica evidente a crença de que ele era o portador do pensamento correto, bem como sua convicção de que era um exemplo a ser seguido, quando afirma:

11 BASTOS, Elide Rugai. A Revista Cultura Política e a influência de Ortega y Gasset. In: BASTOS, Elide Rugai;

RIDENTI, Marcelo; ROLLAND Denis (Org.). Intelectuais: sociedade e política. São Paulo: Cortez, 2003. p. 146-171. p. 171.

12 Ibid., p. 171.

13 FRANCO, Afonso Arinos de Melo. Introdução à realidade brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

O meu intuito é preciso, e talvez seja melhor defini-lo em poucas linhas, antes de iniciar o livro. Desejo mostrar aos meus companheiros brasileiros, o roteiro que acompanhei, a série de argumentos e de razões que, pouco a pouco, me fizeram abandonar as ideologias em que muitos deles ainda hoje se comprazem, e das quais eu próprio, por algum tempo me nutri [...] Quero mostrar como me convenci de que o espírito criador da religião da força, é sempre a sua primeira vítima, e no monstruoso reino que ele forma, perde a única condição essencial para a sua atividade, e até para a sua vida, e que representa ao mesmo tempo um dever e um direito. O direto e o dever de ser livre14.

Escrevendo em um contexto difícil e de muitas transformações, marcado por crises e incertezas tanto no plano interno quanto no plano internacional, Afonso Arinos respondia às demandas dos efeitos advindos das situações específicas desse período entre guerras, marcado por crise econômica e intenso conflito político-ideológico com a presença de fascistas, liberais, anarquistas, sociais democratas, socialistas e comunistas.

Por um lado, foi justamente em virtude da complexidade do momento, da profusão de tendências políticas e ideológicas, da diversidade de problemas e, especialmente, das transformações que vieram no bojo do Movimento de 1930 que esse intelectual sentiu-se na condição de fazer um chamamento aos seus pares, alertando-os para o perigo de, “[...] diante da confusão, da imprecisão, tomarem a rota errada, precipitando-se nela com o desespero de convictos”15. Por outro lado, as questões postas por Afonso Arinos ligam-se diretamente à defesa do primado das elites16, teoria que utilizou para embasar suas concepções acerca do papel que teriam os intelectuais na condução dos rumos do país.

A crise mundial que se instalara no entre guerras, aliada aos seus reflexos no Brasil, forneciam as condições que, na percepção de Afonso Arinos17, faziam ressurgir a necessidade e a capacidade da fé. Segundo ele, nesse ambiente conturbado, razão e fé confundir-se-iam, fazendo com que convicções políticas adquirissem uma intransigência total que, por sua vez, promoveria uma aproximação entre essas convicções e as religiões.

Ao analisar o campo político, argumentava que nele se experimentava uma fé nacionalista ou uma religião do nacionalismo cuja defesa, independente do sistema político, era feita com furor. Exemplificava seus argumentos com as referências de que, naquele contexto, nações no Ocidente e no Oriente moviam guerras cada qual convencida da superioridade da respectiva raça.

14 FRANCO, Afonso Arinos de Melo. Introdução à realidade brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

1933. p. 7-10.

15 Ibid. p. 11-12.

16 Trata-se da teoria defendida pelo sociólogo Vilfredo Pareto, que afirmava haver, em todas as áreas da ação

humana, indivíduos diferenciados que se destacavam por seus dons, por sua superioridade. Esse aspecto será aprofundado na seção 7 deste estudo, quando apresentaremos a apropriação das ideias desse sociólogo por Afonso Arinos.

Afirmava que a intransigência marcava a aceitação de qualquer “verdade” que se escolhesse, fosse ela identificada ao monarquismo, fascismo ou comunismo18.

Conforme avaliou Afonso Arinos19, nesse quadro marcado pela intransigência e fusão entre razão e fé, Maurras20, Mussolini e Stalin, seriam pregadores e apóstolos que exigiam dos seus discípulos submissão e disciplina, em detrimento de compreensão e do acordo. Essa afirmação leva-nos a retornar ao seu entendimento acerca da tese de Benda. Este filósofo criticava o que denominou de predomínio da paixão política, que fez com que os intelectuais começassem a subordinar as verdades eternas aos contingentes interesses da nação, do grupo ou da classe. Na avaliação de Benda, os intelectuais traíam sua tarefa, ao submeterem a razão da justiça à razão do Estado21. Ao criticar essa defesa de Benda, Afonso Arinos contrapôs o argumento de que os intelectuais deveriam engajar-se na defesa dos projetos em que acreditavam. Entretanto, ao se referir a Maurras, Mussolini e Stalin, criticou-os exatamente por esse engajamento.

A leitura de Afonso Arinos contém uma crítica parcial ao embasamento positivista das ideias de Benda, que, aliás, conforme Bobbio22, se considerava um “racionalista absoluto”. É uma crítica parcial no sentido de que, ao mesmo tempo em que defende que o intelectual deve tomar partido, assumir seu papel de condutor nos projetos políticos do país, portanto, contrariando Benda, aproxima-se das ideias defendidas por esse pensador no que diz respeito à crítica da paixão política entre os intelectuais, quando Benda os acusa de adotarem as mesmas paixões dos homens de facção. Foi com o mesmo raciocínio de Benda que interpretou os

18 FRANCO, Afonso Arinos de Melo. Introdução à realidade brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

1933. p. 13.

19 Ibid., p. 13.

20 Charles Maurras (1868-1952), escritor francês, filiado à L’Action Française, movimento político e de ideias

fundado em 1899 por Henri Vaugeois, que se tornou lugar de encontro de conservadores, inimigos declarados da democracia. Seus integrantes, por meio do nacionalismo, buscavam uma alternativa ao liberalismo. As propostas de Maurras ancoravam-se no tradicionalismo e no catolicismo. Maurras e seus “simpatizantes” e/ou seguidores, insurgiam-se contra os resultados advindos da Revolução Francesa e, ao buscarem “uma essência patriótica”, percebiam como único “antídoto para a democracia” o “retorno das elites nobiliárquicas ao controle dos rumos políticos nacionais”. Esta seria uma forma de evitar o que Maurras definia como “barbárie estrangeira” praticada por judeus, protestantes e francos-maçons. Apesar da relação com o catolicismo, a ideia de que “um verdadeiro nacionalista coloca a pátria acima de tudo” rendeu a Maurras uma condenação pelo Papa Pio XII em julho de 1939. Cf. GONÇALVES, Leandro Pereira. Plínio Salgado e Integralismo: relação franco- luso-italiana. Revista Lusitânia Sacra, Lisboa, 2. série, tomo XXVI, v. 26, p. 133-154, jul./dez. 2012. Disponível em: <http://portal.cehr.ft.lisboa.ucp.pt/LusitaniaSacra/index.php/journal/article/view/18>. Acesso em: 26 maio 2016; e CAZETTA, Felipe A. Charles Maurras e o surgimento do integralismo lusitano: teorias e apropriações doutrinárias. Revista Cantareira, Rio de Janeiro, ed. 17, p. 40-56, jul./dez. 2012. Disponível em: <http://www.historia.uff.br/cantareira/v3/wp-content/uploads/2013/05/e17a3.pdf>. Acesso em: 26 maio 2016.

21 Cf. BOBBIO, Norberto. Os intelectuais e o poder: dúvidas e opções dos homens de cultura na sociedade

contemporânea. Tradução Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Editora Unesp, 1997. p. 45.

22 BOBBIO, Norberto. Os intelectuais e o poder: dúvidas e opções dos homens de cultura na sociedade

posicionamentos ideológicos de Maurras, Mussolini e Stalin, demonstrando que as ideias de Benda não se aplicavam a sua postura, só à dos que divergiam do seu entendimento.

Há, sem dúvida, uma seletividade e adaptação de Afonso Arinos em relação às leituras que fez de Benda. Ao caracterizar o intelectual moderno agindo no momento de crise, especialmente aqueles que apresentavam um pensamento discordante do seu, utilizou os argumentos de Benda para afirmar que esse tipo de intelectual transferia suas convicções políticas e sociais do campo da razão para o campo do sentimento. Argumentava que as convicções eram transformadas em religiões, aumentando consideravelmente o poder construtor ou destruidor que elas possuíam na origem. E acrescentava que todas as religiões23 criadas nos campos das atividades políticas e sociais baseavam-se na força, na apologia da violência. Os regimes que decorriam do que ele denominava de religiões atribuíam-se um destino condutor capaz de organizar os valores mundiais, tendência que se afirmava na suposição de que esses valores estavam desorganizados24.

Cabe ainda enfatizar que, ao definir o posicionamento dos que defendiam o fascismo ou o comunismo como um equívoco, Afonso Arinos permite-nos duas constatações. A primeira diz respeito ao questionamento da condição de intelectual daqueles que, na sua concepção, misturavam fé e razão, exibindo suas convicções ideológicas e paixões políticas quando os denominava de pregadores e apóstolos. Aproximava-se de um dos aspectos das interpretações de Benda, cuja obra, conforme Bobbio25, “[...] estabeleceu as bases de uma guerra sem tréguas entre os verdadeiros e os falsos intelectuais: de um lado está a cultura desinteressada, de outro, irremediavelmente inimiga, a cultura serviçal”.

A segunda constatação é a de que Afonso Arinos elevava as análises que fazia desses temas à condição de verdade absoluta e incontestável. Colocando-se acima de qualquer possibilidade de erro, autodefinia-se como um intelectual capaz de conduzir os seus pares, cumprindo com o que acreditava ser a sua função. Seus argumentos sobre a forma como o intelectual brasileiro deveria lidar com as adversidades e demandas daquele contexto também se baseavam nos parâmetros de Benda, como podemos observar na proposição que fez aos seus pares:

23 O termo religião foi usado por Afonso Arinos para definir as ideologias que sustentavam os argumentos dos

pensadores citados.

24 FRANCO, Afonso Arinos de Melo. Introdução à realidade brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

1933.

25 BOBBIO, Norberto. Os intelectuais e o poder: dúvidas e opções dos homens de cultura na sociedade

Sem paixão, sem desespero, sem ilusão deformadora, otimista ou pessimista, cumprindo serenamente a sua função de condutor, deve o intelectual brasileiro levantar bem alto, dentro do seu país, nesta época de tormentosa inquietação, a luz que Deus lhe deu para iluminar os caminhos do mundo [...] Que seja o intelectual o portador e o investigador da verdade, que ele a conquiste pessoalmente, por diligência própria, e não confie nas soluções apressadas; impostas pela indústria alheia26.

O texto citado permite-nos verificar que a discordância de Afonso Arinos em relação à tese de Benda diz respeito tão somente à ideia de traição e à necessidade de o intelectual engajar- se, permanecendo receptivo aos demais aspectos defendidos por Benda. Isto porque, se o