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DEBATE INTELECTUAL NOS ANOS TRINTA E PRESSUPOSTOS DE UMA POLÍTICA INDIGENISTA

2 CENÁRIO DOS ESTUDOS BRASILEIROS E DA ATUAÇÃO DE AFONSO ARINOS NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO

2.6 DEBATE INTELECTUAL NOS ANOS TRINTA E PRESSUPOSTOS DE UMA POLÍTICA INDIGENISTA

A política indigenista empreendida nos anos 30 não pode ser desvinculada da ampliação dos debates em torno da identidade nacional e da busca de um caráter nacional. Muitos desses debates colocaram em evidência intelectuais de diversas áreas do conhecimento.

Como veremos nos próximos capítulos deste estudo, o tema da mestiçagem dava o tom desse debate. Embora os seus proponentes tenham tentado substituir o conteúdo fortemente racializado por uma visão mais cultural, muitos trabalhos permaneceram presos às lógicas racialistas que marcaram os estudos sobre indígenas e negros desde o século XIX. Questões relativas à civilização, primitivismo, atraso davam o tom das discussões ainda associadas a uma hierarquia em que se definia o lugar de cada grupo étnico e, consequentemente, essa definição ocorria com base nas dicotomias superior/inferior, civilizado/não civilizado.

A população indígena brasileira nesse período, apesar de invisibilizada, desafiava o pensamento da época que insistia na criação de uma imagem homogênea para a nação e que pudesse ser traduzida em uma única identidade, comum a todos os brasileiros. O desafio posto pelos indígenas residia na sua diversidade tanto do ponto de vista cultural quanto linguístico e até mesmo demográfico.

Essa heterogeneidade indígena obrigou os pensadores brasileiros a produzirem verdadeiros malabarismos ao interpretarem a realidade do país. Não obstante as diferenças que marcam cada período em que esse debate transcorreu, o ponto comum dele encontra-se na ideia de fusão das três raças como formadora do tipo brasileiro. Tal ideia forneceu instrumentos para que aqueles que construíram as imagens do país e do povo operassem essa fusão de forma que as hierarquias fossem mantidas.

Mesmo com a adesão ao chamado culturalismo que impregnou os estudos nos anos trinta, os povos indígenas e negros não foram pensados fora dos conceitos evolucionistas97. No

97 O evolucionismo foi uma perspectiva dominante na antropologia desde a metade do século XIX até a Primeira

Guerra Mundial (1914-1918) e engendrou uma disputa entre plurigenistas e monogenistas. Os primeiros defendiam uma origem plural da humanidade enquanto os segundos manifestavam-se em favor de uma única origem. Tais defesas também opunham progressistas versus degeneracionistas, dividindo aqueles que viam a

caso dos indígenas, a imagem de “incapazes”, cunhada desde tempos remotos e legitimada pelo Código Civil de 191698, criava espaço para que se reforçassem as referências a esses povos como “bandos de crianças grandes”, como atesta o clássico estudo de Gilberto Freyre, indicado como um dos pioneiros na mudança de perspectiva da mestiçagem.

Citamos aqui a obra de Freyre99, não só pelo fato de ser frequentemente indicada como responsável por positivar a mestiçagem, distanciando-se das análises que viam na mistura das raças um fator de degeneração, mas por entendermos que esse estudo teve uma grande repercussão tanto no período em que foi publicado quanto nos períodos posteriores em relação à formação de uma imagem sobre o Brasil. Entretanto, esse intelectual não foi o único a imprimir tais imagens.

Na impossibilidade de fazermos referências aos vários intelectuais e trabalhos que se inseriram nesse debate, nos ateremos a apontar em linhas gerais alguns aspectos que, no nosso entendimento, concorreram para o fortalecimento ou até mesmo forneceram elementos que culminaram na articulação das políticas indigenistas. Isto posto, voltemos à ideia dos indígenas enquanto “bando de crianças grandes”, pois ela é fundamental para indicarmos uma das características das políticas indigenistas no século XX. A ideia de tutela do Estado sobre os indígenas, nesse contexto, configurava-se num regime jurídico diferente da tutela anterior exercida pelos juízes de órfãos, conforme nos alerta Lima100.

humanidade em progressão/evolução e os que a viam em degeneração/degradação, respectivamente (SILVA, César Augusto de Assis. Edward Tylor (1932-1917). In: ROCHA, Everardo; FRID, Marina (Org.). Os

Antropólogos: clássicos das Ciências Sociais. Petrópolis, RJ: Vozes; Rio de Janeiro: EDPUC, 2015. p. 15-27).

O embate entre poligenistas e monogenistas tendeu a amenizar-se em 1859, com a publicação e divulgação da obra Origem das Espécies, quando Darwin passou a constituir uma espécie de paradigma de época, diluindo velhas disputas. Acomodados assim, os dois lados continuaram defendendo suas teses. A novidade estava no fato de estas interpretações assumirem o modelo evolucionista, mas também atribuírem ao conceito de raça uma conotação bastante original, que saía do campo biológico para adentrar as questões de cunho político e cultural (SCHWARCZ, Lília Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 47-55).

98 O artigo 6º do Código Civil incluía os indígenas entre os que eram considerados incapazes. Em parágrafo único

estabelecia: “Os silvícolas ficarão sujeitos a regime tutelar estabelecido em leis e regulamentos especiais, o qual cessará à medida que se forem adaptando à civilização do país.” (BRASIL. Presidência da República. Lei nº 3.071,

de 1º de janeiro de 1916. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro, 1916. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ leis/L3071.htm>. Acesso em: 18 fev. 2016). A Lei no 10.406, de 2002,

revogou a de 1916, modificando a redação do parágrafo único do artigo 6º para o seguinte: Art. 4º. Parágrafo único: “A capacidade dos índios será regulada por legislação especial.” (BRASIL. Senado Federal. Código Civil. Quadro comparativo 1916/2002. Brasília, 2003. Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/ bitstream/handle/id/70309/704509.pdf?sequence=2>. Acesso em: 18 fev. 2016. p. 7-8).

99 FREYRE, Gilberto. Casa grande e senzala. Rio de Janeiro: Record, 1989. p. 89. Uma discussão mais

circunstanciada desses aspectos e da própria obra de Gilberto Freyre será retomada na seção 5 deste estudo.

100 LIMA, Antonio Carlos de. Reconsiderando poder tutelar e formação do estado no Brasil: notas a partir da

criação do Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais. In: FREIRE, Carlos Augusto da Rocha (Org.). Memória do SPI: textos, imagens e documentos sobre o Serviço de Proteção aos Índios (1910-1967). Rio de Janeiro: Museu do Índio – FUNAI, 2011. p. 203-206. p. 203.

A percepção dos indígenas como crianças ou incapazes alicerçou a base da política do SPI, explícita na sua própria nomenclatura: a proteção. Todas as ações do órgão eram orientadas por essa premissa, e o Estado passava a ser o tutor legal dos indígenas. Em nome de uma proteção a esses povos considerados frágeis e inferiores, o Estado passou a intervir de forma drástica nas comunidades indígenas. A tutela foi então usada largamente, como instrumento de subordinação dos indígenas ao Estado, o que equivalia à manutenção de um princípio que conduziu as políticas a eles destinadas desde o século XVI.

A essa ideia juntava-se outra concepção que também se fizera presente desde o século XIX: a crença na inexorabilidade do fim dos índios101. Para isso, contribuíram, e muito, os estudos evolucionistas que concebiam a condição indígena como uma situação transitória. Mediante a inserção na sociedade civilizada, esses deixariam a condição de índios e se tornariam civilizados.

Com base nesse pressuposto, a política indigenista previa a nacionalização/ incorporação ou integração dos indígenas à sociedade brasileira. Com isso, dava continuidade a uma prática já existente desde o século XIX,102 numa tentativa de incorporá-los não mais como índios, mas sim como civilizados. Tal incorporação implicava numa série de medidas que, ao final, tentavam retirar todos os elementos que constituíam as identidades indígenas, num processo de imposição de valores e práticas próprias dos grupos não indígenas, tidos como hábitos civilizados. Nesse processo, tornava-se necessário “amansar o índio brabo”103

101 ROCHA, Leandro Mendes. A política indigenista no Brasil: 1930-1967. Goiânia: EDUFG, 2003. p. 48. 102 A questão do tratamento que deveria ser dispensado aos indígenas chamados “bárbaros” foi matéria tratada por

José Bonifácio de Andrada e Silva ao escrever Apontamentos para a Civilização dos Índios Bárbaros do Reino

do Brasil. Nele José Bonifácio propunha aos “representantes da Nação”, os meios que deveriam ser usados

para civilizar os índios e incorporá-los à sociedade. Foram 44 itens. No item 43, recomendava a criação de um

Tribunal Conservador dos Índios e indicava como deveria ser composto. O último item, o 44, definiu 12

competências desse Tribunal, na 6ª indicava: “[...] procurará com o andar do tempo e nas Aldeias já civilizadas introduzir brancos e mulatos morigerados para misturar as raças, ligar os interesses [Fólio 27] recíprocos dos Índios com a nossa gente e fazer deles todos um só Corpo da Nação, mais forte, instruída e empreendedora; e destas Aldeias assim amalgamadas irá convertendo algumas em Vilas como ordena a Lei já citada de 1755”.

(SILVA, José Bonifácio de Andrada e. Apontamentos para a civilização dos índios bárbaros do Reino do Brasil.

In: BOEHRER, George C. A. Edição crítica. Lisboa: Agência Geral do Ultramar 1963. p. 80-82. A grafia dessa obra foi atualizada). Sobre essa legislação, ver também: CUNHA, Manuela Carneiro da. Política indigenista no século XIX. In: CUNHA, Manuela Carneiro da (Org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras; Secretaria Municipal de Cultura; FAPESP, 1992. p. 133-154. p. 142-146.

103 Sobre a política de pacificação, Cf.: ROCHA, Leandro Mendes. A política indigenista no Brasil: 1930-1967.

Goiânia: EDUFG, 2003. p. 123-148; e FREIRE, Carlos Augusto da Rocha. Sobre os Sertanistas do SPI. In: FREIRE, Carlos Augusto da Rocha (Org.). Memória do SPI: textos, imagens e documentos sobre o Serviço de Proteção aos Índios (1910-1967). Rio de Janeiro: Museu do Índio; FUNAI, 2011. p. 255-265.

cujas imagens eram veiculadas em jornais e revistas da época, sempre enfatizando sua condição selvagem104.

A política de assimilação e de pacificação dos povos indígenas foi largamente subsidiada pelas ideias em torno do que era ser civilizado e do que era ser bárbaro ou primitivo. Esses conceitos foram largamente veiculados na produção intelectual do período, conforme veremos nos próximos capítulos deste estudo.

Na tentativa de forçar a incorporação dos indígenas à sociedade brasileira, o Estado desarticulava formas tradicionais de organização e vivências desses povos, impondo elementos completamente estranhos ao cotidiano das comunidades indígenas. Para alguns, os indígenas apresentavam-se como “degenerados”, na medida em que eram alcançados pelas transformações, na maioria impostas pelo Estado. Vejamos o que diz Estevão Pinto105 sobre esse aspecto, entre os Pankararu106 de Pernambuco, apoiado em um estudo que fez numa missão do SPHAN em 1937:

Sociologicamente falando, os pancarús estão degenerados, isto é, perderam o que Gilberto Freyre chama, com apoio em Pitt-Rivers, o “potencial, o élan, o ritmo, a capacidade construtora de cultura” [...]

Naturalmente vários desses traços culturais (tecelagem, técnicas de construção, etc.) desapareceram entre os pancarús, diluídos ou diferenciados [...]

Essa ideia de degeneração implicava na interpretação de que a condição indígena passava a ser diluída. Com isso, reforçava-se a ideia de desaparecimento desses, já defendida desde o século XIX, quando se afirmava que os índios encontravam-se “[...] confundidos com

104 Ver, dentre outras, a reportagem exibida na Revista O Cruzeiro, em que a antropóloga Elizabeth Steen, da

Universidade da Califórnia, contava sua experiência de passar um ano estudando os indígenas de Goiás e de Mato Grosso. A matéria apresenta muitas fotografias, e nela mesclam-se informações sobre o cotidiano de povos como os Carajá, por exemplo, com as considerações do entrevistador, nas quais a visão de “selvagens ingênuos” prevalece. (LELIS, Raul. Meio ano entre os selvagens do Brasil: Como Miss Elizabeth Steen viu a nossa terra, a nossa gente e os nossos índios. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, ed. 8, p. 43-45, 48, 27 dez. 1930. Disponível em: <http://memoria.bn.br/ hdb/periodico.aspx>. Acesso em: 5 mar. 2015).

105 PINTO, Estevão. Alguns aspectos da cultura artística dos Pancarús de Tacaratú (índios do sertão de

Pernambuco). Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, n. 2, p. 63, 1938. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/>. Acesso em: 20 abr. 2014.

106

O termo Pancarú usado por Estevão Pinto foi uma designação oficial do SPI no processo de reconhecimento desse grupo na década de 1930, passando depois a ser denominado de Pankararu. Entretanto, na memória desses povos está registrada a denominação “Pancarú Geritacó Cacalancó Umã Tatuxi de Fulô”, que antecede seu reconhecimento oficial. Os mais velhos, ao guardarem denominação tão ampla, demonstram que cada um desses nomes corresponde a uma das principais etnias que compuseram o grupo historicamente. Tamanha heterogeneidade abafada, na tentativa de unidade proposta pelo nome Pankararu, é fruto de desterritorializações, fusões e reclassificações operadas por agentes coloniais. Cf. ARRUTI, José Maurício Paiva Andion. O reencantamento do mundo: trama histórica e arranjos territoriais Pankararu. 1996. 219 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, Rio de Janeiro, 1996. Disponível em: <http://indiosnonordeste.com.br/wp- content/uploads/2014/01/1996-Arruti-Disserta%C3%A7%C3%A3ob.pdf>. Acesso em: 4 maio 2016. p. 33.

a massa da população”107. Os estudos da década de 1930 deram continuidade a essa visão, quando mantiveram a categoria herança ou legado para referir-se ao que denominavam de contribuições indígenas, enfatizando-as sempre no pretérito. Boa parte dos trabalhos sobre esses povos não só os localizaram no passado, como buscaram mapear suas influências para a cultura e o comportamento do brasileiro dos anos trinta. Tais escritos lidaram com os indígenas promovendo um silenciamento em torno deles.

Esse silenciamento não implicou na explicitação do tema, mas no não dito108. Ao tratarem dos povos indígenas sempre no passado, reforçando o seu legado para com os brasileiros, sugeriram uma ausência que reforçou a visão de que, no Brasil daquele contexto, os indígenas tinham desaparecido. Em seu lugar surgira outro tipo que poderia ser lido como genuinamente brasileiro, o caboclo. Silva109 constatou que os habitantes dos lugares onde existiram antigos aldeamentos passaram a ser chamados de caboclos. E que esses indivíduos, muitas vezes, acabavam assumindo essa condição como forma de omitir a identidade indígena diante de inúmeras perseguições. Nos trabalhos de Gilberto Freyre, Câmara Cascudo, Estevão Pinto, Afonso Arinos e muitos outros, encontramos referências ao legado dessas populações. Imagem que também pode ser constatada nas publicações do SPHAN.

Exibidos como componentes da herança nacional num contexto de intensos debates em torno da nacionalidade brasileira, os indígenas desapareciam na história escrita como miscigenados, caboclizados, “confundidos com a massa da população”. Os intelectuais, ao produzirem seus estudos, alimentavam pressupostos que embasavam as políticas indigenistas, num processo de retroalimentação desses dois níveis de tratamento atribuído aos povos indígenas que, no processo de construção da identidade nacional, tiveram suas próprias identidades negadas, silenciadas.

É importante ressaltar que esse processo de invisibilidade e de desaparecimento dos povos indígenas foi planejado e efetivado tendo como um dos motivos o projeto de colonização

107 SILVA, Edson. História Xucuru: por uma história indígena no Nordeste em novas abordagens. Cadernos do

LEME, Campina Grande, v. 1, n. 1, p. 28, jan./jun. 2009. Disponível em: <file:///C:/Users/ricardo/

Documents/2016/Aulas%20Hist%C3%B3ria%20Ind%C3%ADgena/Confundidos%20com%20a%20massa% 20da%20popula%C3%A7%C3%A3o.pdf>. Acesso em: 20 abr. 2014.

108 Usamos essa expressão com o sentido que lhe confere ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio: no

movimento dos sentidos. 6. ed. Campinas, SP: Edunicamp, 2007. p. 13-14.

109 SILVA, Edson. Os índios entre discursos e imagens: o lugar na História do Brasil. 2015. Disponível em:

<http://edmundomonte.com.br/wp-content/uploads/2015/02/OS-INDIOS-ENTRE-DISCURSOS-E- IMAGENS_EDSON-SILVA.pdf>. Acesso em: 10 jan. 2016.

concebido pelo Estado110. Seu recrudescimento pode ser localizado no que ficou conhecido com

Marcha para o Oeste, um projeto de ocupação do Centro-Oeste e da Amazônia, região em que

se localizavam vários povos indígenas, dos quais muitos não haviam sido ainda contatados, como os Xavante, Jurúna, Kamayurá, dentre muitos outros.

A Marcha para o Oeste intensificou a invasão das terras indígenas que já ocorria há muito tempo. E os pressupostos veiculados pelo debate intelectual e aplicados como base das políticas indigenistas ajudavam a legitimar esse processo111. Com a Marcha para o Oeste, o Estado Novo não só lançava um projeto político, mas também um discurso cultural sustentado por intelectuais, como Cassiano Ricardo e muitos outros. Esse discurso promovia uma invisibilidade dos grupos indígenas, legitimando um projeto que resultou na intervenção direta sobre as comunidades indígenas, que tiveram seus modos de vida devassados e suas terras espoliadas.

Por outro lado, não podemos deixar de ressaltar que, não obstante todas as relações de poder que determinavam a política indigenista, como também o alcance e a longevidade das ideias protagonizadas e veiculadas pelo debate intelectual, como apontamos aqui, os povos indígenas não figuraram apenas como vítimas desse processo. Os estudos sobre a presença do SPI em várias comunidades indígenas apontam o fracasso de suas medidas. Fracasso que não pode ser localizado só nas questões internas desse órgão ou do Estado, mas na própria ação desses povos que defenderam seus estilos de vida tradicionais, demonstrando os limites dessa política por meio de um histórico processo de lutas presente até hoje.

Ao oferecermos esse panorama do cenário intelectual dos anos trinta e sua conexão com as políticas indigenistas, buscamos, sobretudo, demonstrar que foi nesse ambiente, profundamente favorável aos intelectuais, que Afonso Arinos encontrou espaço para formular e divulgar suas concepções de história, especialmente sua visão sobre os indígenas. Vejamos quem foi esse intelectual, de que lugar ele falava, qual grupo representava e quais ideias ele formulou sobre o Brasil e sobre seu povo, sobretudo os indígenas.

110 O jornal A Manhã, de circulação diária no Rio de Janeiro, publicou, no período de 1941 até 1945, uma coluna

intitulada Marcha para o Oeste. Sob a direção de Cassiano Ricardo, esse periódico enfatizou a Marcha para o

Oeste, fazendo uma ampla propaganda desse projeto e legitimando as ações ideológicas do Estado. Em suas

matérias, torna-se patente o silenciamento que o jornal promoveu em relação à presença das populações indígenas nos territórios devassados pela Marcha, largamente referidos como “espaços vazios”. A última aparição da Coluna Marcha para o Oeste nesse jornal foi em 7 de março de 1945. Cf. O I CONGRESSO econômico do Oeste e as classes produtoras do Brasil Central. A Manhã, Rio de Janeiro, Ano IV, 7 mar. 1945. Marcha para o Oeste, p. 8. Disponível em: <http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx>. Acesso em: 10 mar. 2016. Depois disso, as referências a ela continuaram aparecendo, porém de forma bastante irregular e sem constituir um espaço específico. Todas as edições desse jornal estão disponíveis na Biblioteca Nacional Digital: <http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx>.

111 Sobre esse aspecto ver GARFIELD, Seth. A luta indígena no coração do Brasil: política indigenista a Marcha